Uma façanha exemplar 16 anos após o Argentinazo

A Argentina é um exemplo para os trabalhadores e também marca uma dinâmica na direção de um maior confronto, uma guerra social para a qual temos que nos preparar.

Pedro Fuentes 4 jan 2018, 07:58

A reforma da previdência, trabalhista e tributária não está só na agenda do governo golpista neoliberal de Temer, mas em toda a América Latina e em grande parte do mundo. (Bélgica, França…) É um plano mundial de apropriação de uma porção da renda pública diminuindo o salário dos trabalhadores. Trata-se de um pacote de medidas para favorecer a grande burguesia e o capital financeiro que inclui também as reformas impostas da qual a mais impiedosa foi a que nestes dias o governo Trump conseguiu impor.

Neste contexto há que se observar a reforma que acaba de ser votada na Câmara dos Deputados da Argentina na madrugada do dia 19 logo com uma jornada exemplar de mobilização dos trabalhadores e setores populares. Apesar do governo ter obtido maioria para votar, saiu abalado e veremos se tem a mesma capacidade para conseguir aprovar a reforma trabalhista e tributária.

A situação da Argentina mudou; os trabalhadores abriram um novo caminho, uma nova situação política, uma mudança na correlação de forças. E nesse contexto mundial (e em especial no que pode acontecer no Brasil) há que se observar a grande jornada do 18 de dezembro. Sem dúvida é um exemplo de combatividade que servirá para os outros países e Brasil entre eles. Aqui no Brasil essa maldita lei de reforma foi postergada até fevereiro. Um governo mais débil que o da Argentina e um parlamento mais temeroso de votar este roubo aos trabalhadores decidiu postergar diante do temor de perder em um congresso cheio de bandidos oportunistas que especulam com a reeleição nas próximas eleições.

Na Argentina, o presidente Macri, fortalecido com o importante triunfo eleitoral que havia obtido meses atrás, pensou que tinha consenso social para aplicá-la. Calculou mal. Esqueceu-se das grandes mobilizações que sempre têm marcado a vida dos argentinos, e que muitas vezes ocorrem no fim do ano. Seguramente o governo e as classes dominantes não vão ter de novo, como em outras vezes, um feliz natal.

Começou no dia 18 às 8 da manhã com os piquetes de organizações sociais que se mobilizaram sobre as rotas de acesso à Capital; seguiu logo com uma multitudinária mobilização dos trabalhadores na praça dos Congressos; dezenas de milhares, pode-se calcular em 500.000 já que não só se via que a praça estava cheia, mas também que se estendia por várias quadras pela Avenida de Mayo até perto da 9 de Julio, e com várias ruas laterais, especialmente a Avenida Callao repleta de manifestantes.

A CGT viu-se obrigada a chamar uma greve de 24 horas. Enquanto os metrôs e trens o fizeram a partir das 24h da noite para permitir o deslocamento dos manifestantes o resto dos trabalhadores iniciou ao meio-dia do dia 18. A greve foi total em bancos, hospitais, dependências públicas, professores… A burocracia do sindicato dos transportes, – que havia votado isso – recuou, assim que os ônibus andaram. Os pelegos/fura-greve/traidores da burocracia da UTA não estimularam a jornada.

A burocracia sindical argentina teve que responder à pressão das bases e da decisão dos sindicatos mais combativos, mais permeáveis à opinião dos delegados seccionais e às comissões internas. A burocracia sindical argentina está localizada em uma classe trabalhadora de grande tradição de luta e organização, que conserva os delegados por seção, os corpos de delegados e as comissões internas. Esta força da classe faz com que a burocracia, apesar de ser tão traidora como a que conhecemos em muitas partes do mundo – como no Brasil -, tenha um papel importante na superestrutura do país. É muito difícil governar na Argentina sem ter um pacto sólido com a burocracia sindical e os sindicatos, e muito menos no atual período da luta de classes. E a burocracia vendida quando há ascenso, fica como um sanduíche entre sua política de defesa de seus privilégios e portanto do regime e a força e pressão dos trabalhadores e suas organizações de base.

Ao meio-dia os trabalhadores com seus tambores e a esquerda, à noite a juventude popular e famílias com as panelas.

A jornada teve dois grandes feitos. O mais importante e determinante foi a concentração diante do congresso que dominou o centro da cidade e resistiu quatro horas à repressão policial, e o panelaço de noite. A primeira foi uma autêntica mobilização dos trabalhadores; colunas vindas de todos os lados de professores, funcionários públicos, metalúrgicos, bancários, movimentos sociais, partidos de esquerda trotskista e setores kirchneristas. Muitas repartições públicas (hospitais, escolas …) se mobilizaram por conta própria. As colunas de trabalhadores dos sindicatos e dos trabalhadores que se organizaram por conta própria eram a ampla maioria da manifestação. Os tambores das colunas sindicais, as bandas e trompetes atravessavam com seu barulho o centro da cidade e a praça dos congressos. A esquerda trotskista do MST, MAS e a FIT estavam presentes na primeira fileira da manifestação.

A repressão desatou uma verdadeira batalha campal. Iniciou-se às 13h30 antes que as colunas dos trabalhadores entrassem na praça. O pretexto foi a valentia demonstrada pelos manifestantes que encabeçavam que tiraram várias vezes as grades de contenção. Do lado dos manifestantes também havia provocadores. (Circula na web uma foto de um “manifestante” que atirava pedras que depois descobriu-se ser um policial).

Uma juíza havia determinado que não poderiam usar balas de borracha salvo em caso extremo. Mas é claro que não foi assim. A polícia atirava bombas de gás e balas de borracha sobre os manifestantes. A resposta dos manifestantes foram as pedras. Uma chuva de pedras lançadas pelos trabalhadores e colunas sindicais e os partidos de esquerda. Grande valentia para enfrentar um gás paralisante e balas atiradas a queima-roupa. Houve momentos em que os avanços dos manifestantes fizeram recuar e dispersar a polícia que só conseguiu dominar depois de várias horas e quando entrou em ação a gendarmería [tropa de choque].

A força e coragem do ativismo trabalhador e dos militantes da esquerda trotskista, entre os quais estavam os companheiros do MST, foi exemplar. Parecido com o que viveu-se no argentinazo com a diferença que neste caso o processo foi menos massivo, mas com substância, protagonizado por uma franja de vanguarda da classe trabalhadora. Não foi a reação popular massiva ao “corralito” e à repressão, agora foi a ação dos trabalhadores, que apesar de não ter a massividade daquele acontecimetno tem como vanguarda a classe mais consistente, organizada e mais decisiva na luta contra o capitalismo. Isto é o novo; a classe trabalhadora argentina deu um passo qualitativo em sua ação.E esta nova jornada de mobilização e coragem não poderia ser entendida se não tivesse existido o argentinazo. É, nesse sentido, sua continuidade, mostra a cultura de rebeldia dos trabalhadores e o povo argentino que a cada dez anos complica o governo da burguesia.

A repressão indignou um setor importante da população, com certeza inclusive um setor social que havia votado em Macri há alguns meses. Por isso, à noite começaram os panelaços nos bairros, nos lugares emblemáticos das assembleias populares do argentinazo e foram se organizando as colunas de manifestantes espontâneas, (famílias, muitíssimos grupos de jovens) que dirigiram-se até a Plaza de Mayo e o congresso enquanto outras permaneciam parando avenidas importantes e vários milhares fazendo o panelaço também na residência do presidente Macri em Olivos.

A explicação a esta reação popular é simples. O povo argentino tornou real a defesa das liberdades democráticas e não se deixa atropelar. Nem bem Macri triunfou nas eleições começou a falar novamente dos “dois demônios” (referindo-se às ações da guerrilha e à repressão dos militares) para tentar lavar a cara da ditadura da qual seu pai havia sido um importante sócio. Foi amplamente repudiado. Mas insistiu e em maio o governo Macri apoiou um decreto da “justiça do 2×1” que pretendia encurtar a pena dos militares genocidas na prisão. Mas a massiva mobilização popular o fez dar um passo atrás. O sentimento democrático do povo argentino registrado durante a luta contra os militares argentinos e pela posterior punição aos genocidas que mandou centenas ao cárcere, é também muito forte. E uma vez mais no dia 19 à noite, e depois de uma brutal repressão, voltou a manifestar-se.

Um novo classismo nas organizações dos trabalhadores?

O governo aprovou a lei, mas como comentavam muitos ativistas depois da memorável jornada, ele obteve um triunfo pírrico [com mais danos ao vencedor que ao vencido]; ou seja, sai desgastado. Seu bloco de dominação foi estilhaçado em um momento em que precisa aplicar novos ajustes e entre eles a reforma trabalhista. E seguramente se encontrará com esta nova disposição de luta dos trabalhadores.

Mas talvez a consequência mais importante desta jornada seja a acumulação que estão fazendo os trabalhadores; as mudanças que se anunciam na classe trabalhadora. É provável que haja uma aceleração do processo do classismo, de novas direções na classe trabalhadora. Produto de suas inconsequências e entregas, a burocracia sindical já tem suas divisões internas, se formaram novos blocos como o da corrente nacional que se localiza em uma linha diferenciada da tradicional burocracia dos denominados “gordos”. A traição da UTA (sindicato dos motoristas de ônibus), que levantou a greve dos transportes será repudiada uma e outra vez pelos trabalhadores e os setores combativos dando abertura para que avance o classismo.

Na Argentina houve uma certa renovação na classe trabalhadora produto da recuperação da indústria que viveu na década kirchnerista. Essa renovação seguramente também existe nos organismos de base dos sindicatos; há um terreno para uma nova vanguarda sindical ampla e não é por coincidência que surgiram dirigentes trabalhadores que militam nos partidos da esquerda trotskista, e que sejam estas organizações as que dirigiram conflitos dos trabalhadores a nível de fábrica.

Na década de 70 surgiram numerosas direções sindicais classistas que conseguiram ganhar um importante espaço à burocracia sindical. O golpe militar de 76 teve o objetivo de combater a guerrilha, mas também destruir esse processo de direções classistas que se viveu no país. Agora o processo não se dá da mesma maneira, mas já existe, e seguramente se estenderá com esta mudança que trouxa a jornada do dia 19 de dezembro. E as organizações da esquerda, que como foi demonstrado no dia 19 de dezembro, são parte desta frente de luta contra o governo, podem ser um fator do desenvolvimento de novas direções e podem favorecer o surgimento de um pólo comum de luta contra a velha burocracia sindical. Este seria um passo importante para o avanço na consciência dos trabalhadores e explorados.

A mobilização empurra para a frente, na direção de um novo programa e uma nova alternativa e também para uma reflexão do que ocorreu. Um discurso que foi comum nestes dias nos quais se repudiava nas ruas e em todos os lados era que havia que se retirar dos que têm mais e não dos trabalhadores e dos aposentados. Um discurso classista que leva em si mesmo um programa de taxar as grandes fortunas, as corporações e o capital financeiro que apropriou-se do país. Avançar a um programa de ruptura que seja tomado por setores da classe trabalhadora é a tarefa que está colocada.

Os setores mais esclarecidos que em seu momento apoiaram o kirchnerismo (há que se notar que setores kirchneristas foram parte da mobilização e os dirigentes da Frente Para la Victoria se opuseram no congresso), se perguntarão por que se chegou a esta situação; em outras palavras, por que o kirchnerismo não pode resolver os problemas estruturais do país para que agora regresse o neoliberalismo selvagem. A unidade de ação contra o ajuste neoliberal que já se deu no 18D pode facilitar que este processo avance.

A situação argentina mudou e repercutirá na América Latina

A nova situação argentina e o processo de desgaste do governo Macri produto da mobilização dos trabalhadores não é um feito isolado e trará consequências no continente. Os governos neoliberais latino-americanos (Temer, Pineda, Kuczynski, Santos, Nieto…) muitos deles surgidos a partir do desgaste e fracasso da centro-esquerda e da degeneração do bolivarianismo estão aplicando ajustes muito parecidos em todos os países. Essa tentativa de voltar à ordem neoliberal que teve seu auge na década de 90, não conta com as mesmas condições de então.

A situação é diferente. Os governos carecem da estabilidade daqueles para aplicar os planos de ajustes (leia-se contrarrevolução econômica permanente), que necessitam para enfrentar a crise econômica. São governos que não têm credibilidade, em sua maioria estão envoltos em profundos casos de corrupção, e apesar de poderem ganhar eleições não têm recursos para controlar o movimento de massas salvo utilizando a repressão, que como vimos na Argentina é enfrentada pelos trabalhadores e o povo. Tampouco os ajuda a política protecionista de Trump, e por outro lado, começam a sofrer uma maior resistência trabalhadora e popular. Talvez os outros exemplos além da Argentina com esta situação sejam o Peru, onde a resistência popular fez história e onde há uma profunda crise política no governo e regime. E é o caso também de Honduras, onde a fraude “golpista” segue sendo resistida nas ruas cheias de barricadas. Nestes marcos seria também equivocado fazer uma leitura unilateral do triunfo de Piñera no Chile; seu governo se inscreve neste contexto e não no de um avanço contundente da direita.

Daí também que estes governos recorram a uma repressão muito superior à dos anos 90 que não podemos menosprezar. Na Argentina foi brutal, como a ofensiva midiática também foi muito forte, um bombardeio permanente pós 18D, deformando a realidade, pretendendo mostrar que en vez de repressão a agressão e os destroços foram causados pelos trabalhadores. Muitos dos presos do 18D continuam na prisão e serão julgados por supostos crimes cometidos.

A Argentina é um exemplo para os trabalhadores e também marca uma dinâmica na direção de um maior confronto, uma guerra social para a qual temos que nos preparar.


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