Os democratas americanos seduzidos pelo Vale do Silício
O Partido Democrata dos EUA estabelece relações promíscuas com um setor da economia estadunidense que superexplora a mão-de-obra em seu país.
Em seu discurso sobre o Estado da União de 2011, o ex-presidente dos EUA Barack Obama evocava com eloquência o fardo suportado pelos trabalhadores do país, os americanos sem diploma que puderam anteriormente ter um emprego e que agora pagavam caro pela desindustrialização: cidades dilapidadas, existências em ruína e salários famélicos.
Logicamente, nesse estágio do discurso, nós teríamos esperado do autor que ele detalhasse o que esperava fazer para remediar tal desastre – lançar um programa de empregos, por exemplo, ou um dispositivo contra as deslocações. Ao invés disso, o presidente explicou aos trabalhadores que ele não podia fazer nada para eles: “Então, sim, o mundo mudou. A competição pelo emprego é uma realidade”. O destino que foi infligido sobre eles se resumia a isso: uma “realidade”, quer dizer, uma coisa que seria irracional não se submeter.
Um pouco mais tarde nessa alocução, Obama abordava um assunto mais alegre. A recessão estava tecnicamente superada e o presidente insistia então no programa econômico que deveria marcar o fim de seu primeiro mandato na Casa Branca. Nós teríamos apostado: a “inovação” era o que o povo precisava. “O primeiro passo a dar para conquistar o futuro – ele anunciava, com efeito – é encorajar a inovação americana”. Sobre esse ponto nenhum traço de fatalismo ou resignação: se tratava de subvencionar copiosamente os empresários inovadores de modo a “multiplicar o sucesso”. Já que todos sabem que a capacidade de inovar está ligada aos estudos, o presidente pedia aos estudantes para se mostraram mais ambiciosos, e os jovens em geral em redobrar os esforços para entrar na universidade. Um mês após esse discurso, a Casa Branca martelava: “O futuro crescimento econômico da América e nossa competitividade internacional dependem de nossa capacidade em inovar – ela declarava em um comunicado. Para conquistar o futuro, nós devemos inovar, educar e construir melhor do que o resto do mundo”.
Laços menos polêmicos que aqueles do presidente com Wall Street.
O lugar antigamente ocupado no imaginário democrata pelas finanças se tornou, assim, pouco a pouco, o do Vale do Silício – outra indústria “criativa” em que bilhões de dólares de lucro querem apenas regar as campanhas eleitoras. As mudanças no entorno do chefe de estado acompanharam essa reorientação. Em 2014, David Plouffe, arquiteto da deslumbrante primeira campanha presidência de Obama, colocava seus talentos de mágico político a serviço da sociedade Uber. No mesmo ano, o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, deixava seu posto para se juntar ao canal Cable News Network (CNN) antes de começar uma florescente carreira na Amazon, que o nomeou vice-presidente encarregado das relações com mídias e os meios políticos.
Enquanto isso, em Washington, o presidente criava uma unidade federal para otimizar a presença do governo na Internet graças às técnicas e aos mercenários do Vale do Silício. Uma iniciativa imediatamente apresentada como “o start-up escondido de Obama” pelos jornalistas especializados em novas tecnologias. A proximidade da administração americana com o Vale do Silício nunca levantou polêmicas comparáveis, nem mesmo de longe, àquelas deslanchadas por suas conivências anteriores com Wall Street. Como se os mastodontes das novas tecnologias fossem dedicados servidores da democracia, não importando o que fizessem na vida real. Como se uma aura de despreocupação juvenil tombasse sobre as interações entre a Casa Branca e os mestres da internet.
No campo dos ganhadores do mundo moderno.
Hoje, a prosperidade inacreditável do Vale do Silício oferece a demonstração última do mérito da classe liberal progressista. A sociedade pós-industrial soube dar valor aos mais instruídos, aos criadores, aos engenheiros e aos cientistas; ela os cobriu de gratificações econômicas que ultrapassavam o endividamento. A história deu seu veredito elevando o setor das novas tecnologias a um nível muito superior a todos os outros, e com ele os democratas, posicionados desde muito tempo no campo dos ganhadores do mundo moderno.
Quando eles cantam os louvores desse setor, chega fatalmente o momenyo em que eles se referem à Google. Em “A Audácia de Esperar”, publicado em 2006, Obama conta com entusiasmo sua peregrinação à sede da companhia quando era senador. Uma vez presidente, ele continuou citando a Google em metade dos seus discursos sobre o Estado da União. Os funcionários da empresa foram içados ao pódio dos três doadores mais generosos de sua campanha em 2012. E Eric Scmidt, antigo presidente-diretor geral e atual presidente do conselho de vigilância da Google, obteve um lugar de escolha nos anais do social-liberalismo moderno. Ele, por exemplo, teve assento no Transition Economic Advsiory Board (TEAB) do presidente e desfilou na tribuna com ele e seus principais conselheiros econômicos três dias após a vitória eleitoral de 2008. Durante a campanha de 2012, foi mais uma vez ele quem aconselhou o candidato democrata sobre sua estratégia relativa aos dados de massa. E quem nós encontramos em 2015 à frente de um “start-up de tecnologia política” concebido para fornecer à candidata Hillary Clinton a nata em matéria de segmentação eleitoral? O senhor Schmidt, sem dúvidas . O 137º homem mais rico do mundo – segundo a classificação da Forbes em 2015 – é o bilionário preferido da centro-esquerda estadunidense.
Convidado em 2014 para o festival das mídias interativa South by Southwest, Schmidt se deu o luxo de deplorar as desigualdades abissais que vem aumentando em cidades como São Francisco, onde o custo de vida ultrapassa cada vez mais as condições de vida da maioria da população. Sem surpresa, a solução que ele preconizou não consistia em reduzir as desigualdades, mas em “criar mais start-ups de crescimento rápido”, a inovação seria o remédio exclusivo a todos os maus. Cada um, ele martelou, deve se engajar “em favor de mais educação, mais imigração, mais formação de capital, mais espaços criativos, mais espaços autorizados pela regulação para serem desregulamentados, de modo que os starts-up possam efetivamente florescer nesse meio e que nós possamos nos servi-los”.
Quanto a Plouffe, o mítico ex-diretor de campanha de Obama, ele se presta agora em vender o aplicativo Uber da mesma maneira que ele vendia o campeão democrata: como uma solução à recessão. “Há ainda gente de mais que não sente os efeitos da retomada econômica, gente de mais que busca trabalho”, ele declamava em 2015 durante um discurso em uma incubadora de empresas em Washington. Porque ele permite a todos ganharem seu ganha-pão no volante de seu carro, o Uber “traz uma vantagem cada vez maior em relação ao desafio da estagnação salarial e do subemprego”.
Um dos piores modelos de exploração da mão-de-obra
Contudo, inúmeras das inovações empresariais unanimemente celebradas são apenas, na realidade, instrumentos concebidos para contornar as regras econômicas e sociais de nossas sociedades. A Uber fornece o exemplo mais evidente: a maior parte de seus ganhos não provêm do seu saber-fazer em matéria de locação de veículos com motoristas, mas da maneira que ele escapa da regulamentação local e nacional aplicada à indústria dos táxis, notavelmente no que se refere à segurança e aos seguros. E assim como a Airbnb autoriza os prestativos e clientes a ignorar as leis sob as quais está submissa a hotelaria convencional, a Amazon permite à maior parte de seus consumidores de se isentar das taxas locais. O gigante da venda on line, aliás, explorou sua posição dominante no mercado de livros nos Estados Unidos para ditar suas condições aos editores e infligir represálias àqueles que recusavam a se curvar a suas regras. A impecável Google age de maneira idêntica com os anunciantes. Isso rendeu a ela, em 2012, uma investigação pela Comissão Federal do Comércio (Federal Trade Commision, FTC), que estimou que suas práticas causavam um “ferimento real aos consumidores e à inovação no mercado da pesquisa e da publicidade on line”. Até hoje, contudo, nem a Amazon nem a Google tiveram que pagar qualquer tipo de multa.
Outra grande fornecedora de vendas de inovação, a indústria farmacêutica, propõe uma variação sobre esse mesmo tema. Com efeito, ela não para de reivindicar seu direito de exercer todos os poderes para vender seus produtos, sem o que, argumenta, não seria mais capaz de inovar. Não há inovação sem monopólio: discutir com ela sobre a mais ínfima de suas prerrogativas a obrigaria fechar suas fábricas.
Denominação incomum que escolheu a Amazon para designar seu stock de empregos precários ocasionais: o “turco mecânico”. Já que uma tarefa não pode ser efetuada por computadores, confia-se a um exército de reservistas pagos com amendoins. Não poderíamos sonhar com melhor iniciação à “econômica compartilhada”, assim chamada porque o trabalhador utiliza seu próprio carro, sua própria casa ou seu próprio computador para o benefício do empregador . Essa economia forneceu uma das fontes de emprego mais prodigiosas dos anos Obama. O sucesso da fórmula se deve à facilidade com a qual qualquer um pode se registrar em uma companhia “compartilhada” e se tornar submisso à misericórdia, ao modo de um interino, um simples software que assegura a relação com o cliente e o empregador. Isso torna todo o negócio também virtual, inovador, lucrável e possível. Sob todos os seus outros aspectos, contudo, ele revela um dos modelos de exploração de mão-de-obra mais nocivos e assimétricos dos últimos decênios. No caso da Uber, os custos e os riscos associados a essa atividade – obrigação de se inscrever a um seguro, de possuir um veículo, de visar eventualmente um seguro-saúde, ou a perspectiva de aposentadoria etc. – estão todos sob as mãos do trabalhador, enquanto que o “inovador” californiano que concebeu o software recebe os ganhos do negócio. É o cada um por si erigido à categoria da estratégia nacional de emprego.
O presidente de uma companhia de financiamento participativo batizada de Crowd Flower expõe nesses termos a receita miraculosa: “Antes da internet, teria sido difícil encontrar alguém que trabalharia para você durante dez minutos, e então pagá-la por esses dez minutos. Contudo, graças à tecnologia, você pode realmente encontrar essa pessoa, pagar a ela uma pequena quantia e em seguida se livrar dela quando não tiver mais necessidade”. Nós não ficaremos chocados se o presidente que pronunciou essas palavras – um jovem cavalheiro chamado Lukas Biewald – seja um doador de Obama.
Se nenhuma das inovações evocadas aqui não é particularmente dinas de elogios, convém adicionar que nenhuma não era inevitável. O governo poderia ter facilmente prevenido, ou ao menos atenuado, a maneira pela qual cada uma delas evoluiu. Tudo foi feito com o acordo do poder político federal e dos Estados, até mesmo no seu interior E quando o ministério da justiça descobriu, em 2010, um plano que visava limitar os salários dos trabalhadores das novas tecnologias, ele reagiu da mesma maneira que em 2008 com os banqueiros: “grandes demais para serem colocados na prisão”: ele se engajou em perseguições no civil, antes de arrebatar as sociedades envolvidas… a promessa de não começar de novo dentro de cinco anos.
Essas indústrias são o futuro, quer dizer, com o que não se zanga
Para muitos democratas, não há possibilidade de contrariar os “inovadores”. Eles não dirigem indústrias próprias e virtuosas, indústrias do saber, instaladas, além disso, em sua maioria nos estados conquistados pela causa do partido? Esses empresários a classe cultivada, a classe criativa. Eles são o futuro, quer dizer, como que a gente não se zanga.
Como o ex-ministro do trabalho, Robert Reich, salienta, essas evoluções formam: “o ponto culminante de um processo iniciado há trinta anos, quando as grandes empresas começara a transformar os assalariados de tempo integral em trabalhadores interinos, em subcontratados, em independentes e consultantes”. Elas revelam o atavismo, não a inovação. Elas não reverteram a tendência dos últimos decênios: elas a aceleraram.
Artigo originalmente publicado pelo Le Monde Diplomatique. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.