O poder do Vamos!: um abraço de afogado

Ao caracterizar a crise política como um divórcio entre a vontade do povo e a ação dos governantes, que poderia ser corrigida com mudanças institucionais, o Vamos! permanece na superfície da realidade.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. 5 fev 2018, 18:26

Nas questões relacionadas com o Poder, a plataforma Vamos! propõe uma mudança profunda na “forma como é feita a política” como meio de enfrentar a crise sem precedente provocada pelo “divórcio entre a vontade popular e as decisões tomadas pelos poderes do Estado”. A mudança almejada seria o resultado de “uma ampla Reforma profunda do sistema político, de baixo para cima” (sic). As medidas propõem ampliar a participação do cidadão, diminuir a influência do poder econômico nas decisões do Estado, democratizar a justiça e desmilitarizar a segurança pública:

a) Criação de uma ampla gama de canais de participação da população nas decisões políticas – que vão desde a retomada dos orçamentos participativos, que caracterizaram o chamado modo petista de governar, até propostas bastante ousadas como plebiscitos como forma de referendar decisões de grande envergadura, referendo popular como pré-requisito para qualquer alteração na Constituição, veto popular a projetos de lei do legislativo, referendo revogatório de mandatos políticos;

b) Combate aos privilégios e à corrupção pela eliminação de prerrogativas espúrias dos políticos; fim da “porta giratória”, que gera uma promiscuidade entre executivos das empresas e cargos de direção nos aparelhos de Estado; acompanhamento da evolução patrimonial dos políticos; proibição de financiamento empresarial e pagamentos de honorários aos políticos; e financiamento público da campanha com limite de gasto;

c) Reforma do sistema eleitoral, com a instituição de votação em lista fechada mediante realização de prévias democráticas; paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias e quotas mínimas de cadeiras no legislativo para negros, LGBTs, indígenas e pessoas com necessidades especiais; combate ao fisiologismo; fim do Senado Federal, com a instituição do parlamento unicameral.

d) Democratização do poder judiciário pela criação e aperfeiçoamento de órgãos de controle dos juízes e dos promotores públicos e pelo fim dos mandatos vitalícios dos juízes do Supremo Tribunal Federal e eleição direta dos ministros do Supremo, desembargadores e procuradores-chefes do Ministério Público; e, por fim,

e) Medidas para democratizar a segurança pública pelo combate à política de encarceramento; revogação das leis que criminalizam as lutas sociais, como a Lei Antiterrorismo e Garantia da Lei e da Ordem – diga-se de passagem, ambas aprovadas por Dilma Rousseff; desmilitarização da segurança pública; não utilização das forças armadas em operações urbanas; e legalização progressiva das drogas.

Ao caracterizar a crise política como um divórcio entre a vontade do povo e a ação dos governantes, que poderia ser corrigida com mudanças institucionais, a Plataforma Vamos! permanece na superfície da realidade. Torna-se, assim, incapaz de compreender que o problema de “forma” não pode ser desvinculado do “conteúdo” elitista, particularmente antissocial e antidemocrático, do Estado brasileiro. Sem considerar que o circuito político é impermeável às necessidades dos trabalhadores, o Vamos! procura uma solução para a crise política por dentro dos marcos institucionais da Constituição de 1988. Não percebe que é a própria carta constitucional que se tornou obsoleta e já não responde às exigências de arbitrar a luta de classes. Ignora-se a raiz do problema: a captura do Estado pelo poder econômico bloqueia toda e qualquer possibilidade do poder público responder às demandas das classes subalternas. Nestas condições, o funcionamento do legislativo, executivo e judiciário será sempre contra o povo. Se o ritual eleitoral e o Estado de direito tornam-se esvaziados de todo conteúdo democrático, coloca-se a necessidade e a urgência de uma transformação radical nas bases sociais e política que fundam a institucionalidade do Estado.

A ausência de crítica sobre a natureza da crise política explica o caráter meramente formal das soluções propostas pelo Vamos!. O balanço da experiência do orçamento participativo – que se pretende resgatar – é emblemático. A despeito da propaganda petista, sua existência não modificou em nada o funcionamento do Estado. É impossível compreender os condicionantes estruturais da grave crise terminal que abala a Nova República sem explicitar os nexos entre (a) regime de segregação social, (b) padrão de luta de classes baseado na intolerância em relação à luta por conquista de direitos coletivos e (c) padrão de dominação baseado em uma democracia restrita aos interesses dos ricos.

Na miséria do possível, o Vamos! propõe um abraço de afogado numa ordem institucional historicamente condenada:

a) As medidas elencadas para ampliar os espaços institucionais de participação popular nas decisões do Estado ignoram que a essência da dominação burguesa no Brasil reside exatamente no bloqueio à emergência das classes subalternas como sujeitos políticos e, portanto, sem questionar a segregação social, a base do poder burguês, a participação popular nunca passará de um simulacro de participação;

b) As propostas de reformas institucionais para combater a corrupção desconhecem que a promiscuidade política é um dos sustentáculos do padrão de acumulação e dominação do capitalismo brasileiro. Não surpreende o absoluto silêncio em relação às investigações de corrupção que estão no olho do furacão que abala a política nacional. Sem desnudar os interesses de classe por trás da corrupção, as medidas moralizantes não passam de perfumaria, pois sequer arranham a essência do problema – a necessidade do capital de ter controle absoluto do Estado para poder sobreviver nas condições particularmente adversas de uma sociedade em reversão neocolonial;

c) As medidas apresentadas para resolver a crise de representatividade dos políticos ficam muito aquém do que seria necessário para resgatar a crença da população na capacidade das instituições políticas de representar seus interesses.

A ideia de que bastaria uma reforma eleitoral, com a instituição de listas fechadas, prévias para a escolha dos candidatos e financiamento público das campanhas, para resgatar a legitimidade dos partidos não toca na raiz do problema. Enquanto os partidos funcionarem como currais eleitorais, controlados por oligarquias encasteladas nos parlamentos, a população não disporá de instrumentos legítimos para expressar sua vontade coletiva. A propósito, uma breve nota: não deixa de ser irônico que as mesmas forças que reivindicam “prévias” no âmbito da Plataforma Vamos! negam a possibilidade de um processo democrático de escolha do candidato do PSOL à presidência em 2018, referendando a Conferência Eleitoral de cartas marcadas estabelecida pelos “chefões” que, com métodos típicos da política convencional, controlam os cadastros e as estruturas partidárias;

Enquanto os meios de comunicação permanecerem sob o controle de algumas famílias que funcionam como ventríloquas das grandes corporações e dos interesses das oligarquias regionais é impossível imaginar um processo democrático de formação da opinião pública livre. Não obstante, nada de substantivo é proposto para enfrentar o problema. O temor de despertar a ira das grandes corporações que controlam a opinião pública silenciam o Vamos! sobre a necessidade de cassar a concessão de empresas de comunicação que funcionam como partidos que conspiram dia e noite contra o povo;

Por fim, a suposição de que bastaria o fim do Senado para resolver as gigantescas distorções no critério de representação dos eleitores ignora que o problema não se limita ao Senado. É toda a representação parlamentar que precisa ser colocada em questão, o que exigiria uma verdadeira refundação do sistema político brasileiro, processo que extrapola simples mudanças institucionais.

Sem uma profunda reforma da estrutura partidária que permita a livre organização política, sem cassar o poder dos grandes meios de comunicação sobre a vida política nacional e sem erradicar as distorções nos critérios de representatividade, as eleições tornam-se puro embuste. Por falta de uma leitura adequada dos condicionantes que levaram à exaustão da democracia de cooptação criada na transição da ditadura militar para o Estado de direito, a Plataforma Vamos! procura remendar as instituições, ignorando que a crise da Nova República é terminal. A agonia das instituições coloca na ordem do dia a superação da ordem em crise.

d) As propostas para subordinar a segurança pública a uma lógica de respeito ao cidadão – todas elas necessárias – são inviáveis sem o enfrentamento dos condicionantes que explicam a escalada da violência e o aprofundamento do Estado penal. Não há a menor possibilidade de uma polícia e de um judiciário que respeitem o trabalhador em uma sociedade baseada na segregação social. É impossível um aparelho repressivo de Estado de conteúdo democrático numa sociedade polarizada pelo acirramento da luta de classes. O pânico de que uma insurreição dos de baixo ameace os privilégios da plutocracia leva a burguesia a organizar o padrão de dominação como uma contrarrevolução permanente. É a necessidade de manter as classes subalternas em seu lugar que explica a violência contra os pobres e o toque de recolher nas periferias. Sem enfrentar a contrarrevolução, é uma ingenuidade imaginar que a escalada da violência do Estado contra os pobres possa ser interrompida.

A ausência de uma perspectiva histórica não permite que o Vamos! veja os obstáculos que impedem a ampliação dos espaços democráticos por dentro da institucionalidade da Constituição de 1988. A crise da Nova República é terminal. A força do partido do “salvem-se todos” idealizado pelo famigerado Jucá prolonga a agonia da democracia de cooptação, mas a disputa real é saber o que colocar em seu lugar. O que interessa aos trabalhadores é disputar o rumo da solução que será dada à crise da Nova República e não a remendar. A burguesia flerta com a possibilidade de um padrão de dominação abertamente autoritário. Aos trabalhadores cabe organizar uma solução que passa pela revolução democrática – uma transformação radical nas estruturas sociais e políticas da sociedade brasileira.

As crises capitalistas impõem a necessidade de transformações de grande envergadura. Nesse contexto, a luta de classes polariza-se entre revolução – a resposta do trabalho à crise – e contrarrevolução – a solução do capital à crise. A burguesia já tirou as conclusões sobre suas tarefas históricas e organiza cientificamente sua ofensiva sobre o trabalho. O trabalho precisa vencer a cegueira e o imobilismo para poder entrar em campo.

Artigo originalmente publicado no site do autor


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