Uma breve introdução a Nancy Fraser

Seus textos procuram articular conceitos de diversas vertentes teóricas, como a teoria crítica alemã, o pós-estruturalismo francês e o feminismo.

Giulia Tadini 28 fev 2018, 15:39

Quais são os desafios para a esquerda anticapitalista nos EUA sob o governo de Trump? E o que isso pode nos dizer da situação internacional? Que reflexões podemos tirar? Essas são algumas perguntas que podem nos guiar na leitura deste artigo de autoria de Nancy Fraser traduzido pela Revista Movimento.

Nancy Fraser é uma intelectual estadunidense, nascida em 1947. Atualmente, é professora de Ciência Política e Social da New School de Nova Iorque. Crítica à especialização universitária, seus textos procuram articular conceitos de diversos campos e vertentes teóricas, como a teoria crítica alemã, o pós-estruturalismo francês, o pragmatismo norte-americano e o feminismo. É central em sua obra a problemática da justiça em um mundo globalizado e “pós-socialista”. Assim, ela procura compreender as demandas dos movimentos por justiça em um contexto de crise do modelo de Estado de bem-estar social, descrédito das ideias socialistas, e fortalecimento do neoliberalismo. Há um desencantamento com um projeto emancipatório de transformação social, e isso traz consequências para os movimentos sociais.

No dia 21 de janeiro de 2017 ocorreu a Marcha das Mulheres em Washington, protestando contra a posse de Donald Trump, uma manifestação de escala multitudinária. Alguns meses depois, um grupo de intelectuais e ativistas feministas1 lançou um manifesto convocando uma greve internacional de mulheres no dia 8 de março, a partir do chamado do movimento argentino Ni Una a Menos. Lendo o manifesto, fica evidente que as autoras buscam disputar o sentido do que denominam de “início de uma nova onda de luta feminista militante”. Elas defendem um feminismo para 99% das pessoas, remetendo à consigna do movimento Occupy. Na opinião expressa no texto, elas compreendem que as lutas atuais do feminismo ao redor do mundo estão construindo uma agenda mais expandida.

O tipo de feminismo que buscamos já está emergindo internacionalmente, em lutas em todo o mundo: desde a greve das mulheres na Polônia contra a proibição do aborto até as greves e marchas de mulheres na América Latina contra a violência masculina; da grande manifestação das mulheres de novembro passado na Itália aos protestos e greve das mulheres em defesa dos direitos reprodutivos na Coréia do Sul e na Irlanda. O que é impressionante nessas mobilizações é que várias delas combinaram lutas contra a violência masculina com oposição à informalização do trabalho e à desigualdade salarial, ao mesmo tempo em que se opõem às políticas de homofobia, transfobia e xenofobia. Juntas, eles anunciam um novo movimento feminista internacional com uma agenda expandida – ao mesmo tempo antirracista, anti-imperialista, anti-heterossexista e antineoliberal.

Não à toa Fraser é uma das signatárias desse manifesto. Além de filósofa, é bastante atuante como militante feminista. Para ela, há uma tensão criativa entre trabalho político e trabalho intelectual: defende uma concepção de teoria crítica que dialogue, não de forma acrítica, com os movimentos sociais de sua época.

É um pouco do que vemos nas suas reflexões sobre o movimento feminista. Em O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história, Fraser analisa a segunda onda do feminismo e faz um recorte de três fases. Se na primeira fase, a crítica feminista ao capitalismo integrava três dimensões: econômica, política e cultural, e, naquele período, as feministas tinham como horizonte um projeto político transformador, a segunda fase coincide com a falência do modelo do Estado de bem-estar social e a emergência do neoliberalismo. Neste contexto, as reinvindicações por reconhecimento acabaram se tornando dominantes e subordinaram, nos movimentos sociais, as lutas socioeconômicas. Já na academia, a teoria cultural feminista começou a obscurecer a teoria social feminista. A autora busca no livro O novo espírito do capitalismo, de Boltanski e Chiapello, o argumento de que, em momentos de ruptura, o capitalismo busca se renovar incorporando algumas de suas críticas. Assim, ela mostra como algumas das reinvindicações desta segunda fase foram instrumentalizadas e incorporadas pelo neoliberalismo. Argumenta ainda que há uma afinidade eletiva, porque não é consciente, mas histórica, entre essa segunda fase e o neoliberalismo. Finalmente, defende que a crise capitalista financeira de 2008 abriria a possibilidade de uma terceira fase, crítica à segunda fase da segunda onda, na qual o feminismo voltaria a ser um movimento contestatório da ordem capitalista.

Pontuo rapidamente alguns aspectos teóricos sobre os termos distribuição e reconhecimento. Para Fraser, esse diagnóstico não é exclusivo do movimento feminista. Em Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, afirma que “a ‘luta pelo reconhecimento’ está rapidamente se tornando a forma paradigmática de conflito político no final do século XX. Demandas por ‘reconhecimento da diferença’ alimentam a luta de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, ‘raça’, gênero e sexualidade” (FRASER, 2001, p. 245). Fraser argumenta que esses conflitos pós-socialistas suplantaram as demandas por igualdade social em um mundo com extremas desigualdades materiais. Fraser é bastante conhecida na academia brasileira pela controvérsia travada com Axel Honneth sobre isso. Para ela, analisando as tensões entre as lutas por redistribuição e por reconhecimento, Honneth teria assumido uma visão culturalista reducionista da distribuição.

Em Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation (2003), Fraser afirma que o paradigma da redistribuição foca nas injustiças definidas como socioeconômicas, como exploração e marginalização econômica. O remédio para essa injustiça é a reestruturação econômica de algum tipo. O paradigma do reconhecimento foca nas injustiças entendidas como culturais, como dominação cultural, não reconhecimento e desrespeito. O remédio para essa injustiça é uma mudança cultural ou simbólica. Ela entende que é uma tarefa intelectual e militante construir uma justiça que abarque tanto reconhecimento quanto redistribuição.

Com a eleição de Trump, vemos a autora desdobrar essa relação entre novos movimentos sociais e neoliberalismo e afirmar que vivemos o fim do “neoliberalismo progressista”. Ela afirma que há um colapso da hegemonia liberal, que se expressa na votação do Brexit no Reino Unido, na mobilização em torno de Bernie Sanders, no fortalecimento da extrema direita na França, na crise dos partidos de centro e aumento no da polarização política em diversos países. São fenômenos com diferentes ideologias e objetivos que colocam em xeque o neoliberalismo. Além disso, a eleição de Trump significaria não somente uma indignação contra a classe política e a globalização corporativista, mas também mostra a rejeição contra o neoliberalismo progressista. Um termo aparentemente contraditório, mas que representa “uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder ‘simbólico’ (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood)”. Essa aliança acontece de forma involuntária para os movimentos sociais, e entrega ao neoliberalismo o seu carisma – um debate muito atual. É inegável o fortalecimento de alguns movimentos, principalmente o feminismo em escala global. Mas qual é o feminismo de Hollywood e, no caso do Brasil, o da Globo? Há uma disputa de concepção e perfil dentro dos movimentos. Ao abandonar a dimensão da distribuição, os movimentos se tornam menos críticos à ordem capitalista.

No artigo a seguir, um ano após a posse de Trump, Fraser aprofunda esse debate, a partir do conceito de hegemonia de Gramsci, sobre os conceitos de neoliberalismo progressista, neoliberalismo reacionário, populismo progressista e populismo reacionário. Ao final, a autora desafia a nova esquerda a dialogar com uma parte do eleitorado de Trump, explicando que o populismo progressista seria a única alternativa consistente contra o neoliberalismo.


Nota

1 Angela Davis, Cinzia Arruzza, Keeanga-Yamahtta Taylor, Linda Martín Alcoff, Nancy Fraser, Tithi Bhattacharya e Rasmea Yousef Odeh.


Referências Bibliográficas

FRASER, Nancy. “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-33, jul./dez. 2009.

______. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 15, n. 14-15, p. 231-239, 2006.

______. “Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation”. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical Exchange. Nova York: Verso, 2003.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.


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