O escândalo da Cambridge Analytica e os dados pessoais

O uso de ferramentas poderosas e a manipulação para subverter a democracia é a regra.

Tiago Madeira 22 mar 2018, 13:19

A Cambridge Analytica, empresa fundada em 2013 com financiamento do bilionário conservador Robert Mercer, se notabilizou pelo seu envolvimento na campanha presidencial de Donald Trump. De acordo com uma série de artigos publicados na Internet desde 2016, seu método de marketing digital com segmentação de perfis baseada em categorias psicológicas foi muito importante para a vitória do republicano. A empresa ainda esteve envolvida na campanha do Brexit, no Reino Unido, pouco tempo depois.

No Brasil, a imprensa vinha tratando com expectativa a vinda da Cambridge Analytica para as eleições nacionais. Por meio de uma parceria dos ingleses com a Ponte Estratégia, do marqueteiro brasileiro André Torretta, foi fundada em 2017 a CA Ponte, trazendo a melhor estratégia data-driven do Brasil, segundo seu slogan. De acordo com uma entrevista publicada pela Folha, em janeiro a CA Ponte já havia fechado três campanhas estaduais nas eleições brasileiras deste ano. Na entrevista, Torretta afirmou que “a gente já tem um banco de dados de 80 milhões de brasileiros com algumas características geolocalizadas e pessoais interessantes. Mas isso é comercializado no mercado, como, por exemplo, pela Serasa. É um comércio legal de dados, não é nada do outro mundo. O que estamos fazendo é sistematizar e dando o olhar político e comportamento. A grande invenção da Cambridge é botar sujeitos de comportamento como eu para olhar número.”

Nos últimos dias, foi divulgado um escândalo com repercussão mundial envolvendo a empresa, que fez com que as ações do Facebook despencassem 35 bilhões de dólares apenas segunda-feira e que Torretta se convertesse muito rapidamente em ex-sócio da Cambridge Analytica.

O escândalo

Em 2013, cerca de 270 mil pessoas usaram seus perfis no Facebook para entrar num aplicativo chamado “This is your digital life”. Tal aplicativo, criado pelo psicólogo Aleksandr Kogan, consistia num teste de personalidade que perguntava aos seus usuários se eles eram extrovertidos, vingativos, gostam de arte, entre outras informações usadas para traçar perfis psicológicos. Além disso, pedia aos usuários o acesso às suas listas de amigos na rede social. Por meio dele, foram coletados dados de 50 milhões de pessoas.

Esses dados foram vendidos para a Cambridge Analytica, que os utilizou para criar perfis psicográficos para marketing político, que foram usados em particular na campanha de Donald Trump, como denunciou agora o jovem whistleblower canadense Christopher Wylie, que trabalhava para a Cambridge Analytica à época.

Tal venda de dados viola as políticas de proteção de dados do Facebook. Por isso, a rede social suspendeu a Cambridge Analytica. Ainda, por conta da repercussão muito negativa do caso, Mark Zuckerberg publicou que o Facebook vai tomar mais medidas no sentido de limitar o acesso de aplicativos a dados da plataforma, como já tinha feito em 2014.

Pós-escândalo

Penso que há quatro aspectos interessantes sobre esse caso, que suscitam importantes debates.

Primeiro, como afirmou um editorial do partido britânico SWP sobre o caso, “políticos e grandes empresas sempre vão tentar todos os métodos para moldar as opiniões das pessoas”. Pagar para coletar informações e influenciar eleições é absolutamente normal nos tempos em que vivemos, como comprovam os gastos milionários de Dilma e Aécio nas últimas eleições, assim como o caixa dois e as contas no exterior de marqueteiros como João Santana.

Segundo, vender dados pessoais é cada vez mais comum, “nada de outro mundo” como dizia Torretta. Com efeito, a Serasa, vinculada à britânica Experian, se gaba de ser “responsável pela maior base de dados da América Latina”. Pior que isso, assim que assumiu a prefeitura de São Paulo, João Doria ofereceu ao mercado internacional os dados dos usuários de transporte público da maior cidade do Brasil.

Terceiro, há várias empresas que desenvolvem aplicativos com testes para coletar dados pessoais de usuários do Facebook. Qualquer um que use a rede social já deve ter visto tais testes no seu news feed. Um dos mais proeminentes dos últimos meses foi aquele sobre “como você seria se fosse do gênero oposto” — que deve ter coletado as imagens de perfil de milhares, ou milhões, de pessoas.

Quarto, há corporações que concentram ordens de grandeza a mais de informações do que a Cambridge Analytica ou essas que fazem testes, como por exemplo o próprio Facebook. O seu negócio é usar essas informações para vender publicidade e há provas de que essas informações também já foram usadas para fazer experimentos psicológicos. Ainda, não há preocupação nenhuma com que essas informações sejam usadas para fins políticos e eleitorais, como comprova o lobby que fizeram para que possa haver patrocínio e segmentação de publicações nas eleições de 2018 no Brasil.

Como escreveu Edward Snowden em sua conta no Twitter: “O Facebook ganha seu dinheiro explorando e vendendo detalhes íntimos sobre a vida privada de milhões, muitos além dos poucos detalhes que você publica voluntariamente. Eles não são vítimas. Eles são cúmplices.”

Assim sendo, o mais importante na revelação não foi trazer fatos novos e desconhecidos, mas expôr como o funcionamento de um sistema — com o qual nos acostumamos — permite coisas perigosas. No caso, ajudou a eleger Trump. Cabe a nós, além de defender o denunciante, aproveitar a oportunidade para fazer um debate necessário sobre proteção a dados pessoais e o poder das corporações que os coletam.

Defender o denunciante é importante porque Christopher Wylie, autodefinido como “um canadense gay e vegano que de alguma forma acabou criando a ferramenta psicológica de guerra de Steve Bannon”, já foi suspenso do Facebook e corre o risco de ser processado pela Cambridge Analytica por quebrar cláusulas de confidencialidade do seu contrato.

Já para debater sobre privacidade e proteção a dados pessoais talvez seja útil procurar estabelecer limites: Os dados que produzimos cotidianamente podem ser usados para nos fazer comprar coisas? Podem ser usados para decidir o que vemos na Internet? Podem ser usados para nos fazer propaganda eleitoral? Podem ser comprados e vendidos entre empresas? Podem ser usados por governos para fins repressivos? Quem deve ter controle sobre eles? Tais discussões se fortalecem a partir desse vazamento, assim como se fortaleceram quando aconteceram os vazamentos da NSA.

Do ponto de vista prático e legislativo, há projetos de lei importantes sobre proteção de dados pessoais que devem ser defendidos, em São Paulo por exemplo.

De forma mais geral, é preciso combater o poder das grandes corporações. O “crime” da Cambridge Analytica foi — apenas — violar a política de privacidade do Facebook. Zuckerberg decidiu que vai fazer algumas mudanças, então está tudo resolvido? São os termos de uso de uma corporação do Vale do Silício que nos governam? Quem regula o Facebook? Delegamos a democracia ao seu conselho administrativo e aos seus acionistas? Confiamos a eles a integridade das nossas eleições?

Como saída estratégica, nos resta decretar a falência desse sistema e construir coisas novas verdadeiramente democráticas. Por mais que haja manipulação, é possível edificar alternativas — como apontam todos aqueles que lutam, apesar daqueles que usam ferramentas de todos os tipos (inclusive estatísticas) para tentar enganá-los.


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