Marx e a análise do mundo árabe e contemporâneo

O autor considera que “o materialismo histórico é o único repúdio metodológico radical de “Orientalismo” no sentido de culturalismo e essencialismo de Said”.

GIlbert Achcar 26 mar 2018, 13:16

O materialismo histórico de Marx e a sua crítica da economia política são cruciais para o estudo do “mundo árabe”. O materialismo histórico é o único repúdio metodológico radical de “Orientalismo” no sentido de culturalismo e essencialismo de Said. A partir desse ângulo, e apesar das óbvias lacunas dos primeiros comentários de Marx e Engels sobre o Médio Oriente e o Norte de África (alguns dos quais foram corrigidos mais tarde), o materialismo histórico é a única perspetiva que recusa peremptoriamente qualquer explicação da história da região através da persistência de traços culturais pré-modernas. Permite contrariar essas explicações, pondo as coisas de novo no lugar ao explicar a persistência de traços culturais pré-modernos através de fatores históricos que, em última instância, se baseiam sempre em interesses materiais. Um fator chave é o papel do imperialismo britânico na perpetuação desses traços culturais na região de forma a consolidar a sua hegemonia.

No que concerne à análise dos estados e dos regimes da região, a conceção marxista do bonapartismo é indispensável para uma compreensão acertada do surgimento histórico, no período a seguir à 2ª Grande Guerra, de ditaduras nacionalistas que implementaram reformas agrárias e se comprometeram a industrializar os seus países, atuando no lugar de um capitalismo nacional impotente. O conceito deve ser ampliado de forma a explicar as dinâmicas pecualiares que levaram os estados regionais a substituirem-se economicamente pela classe capitalista, para além do substitucionismo político que tradicionalmente caracteriza os regimes bonapartistas.

A análise marxista de renda e do estado rentista é outra ferramenta importante para a análise da região, principalmente devido à importância decisiva das suas reservas de petróleo a moldar a economia e a política. Uma avaliação marxista da renda e do rentismo é indispensável para evitar a armadilha de desligar o “estado rentista” da análise de classe. Contudo, o défice marxista na investigação de instituições políticas e a sua evolução histórica não fornece ferramentas suficientes para explicar a especificidade dos regimes patrimoniais que caracterizam a região e a tendência da maior parte dos regimes para se desenvolverem para esse tipo de configuração. A sociologia política weberiana, cuja tipologia institucional compensa este ponto fraco do marxismo, pode ser um complemento útil, se, uma vez mais, as suas categorias estiverem firmemente enraizadas na análise de classe e em interesses materiais.

A histórica interpretação materialista da história é o melhor enquadramento para entender o importante papel histórico da pequena burguesia na história política da região, incluindo, em particular, mas não em exclusivo, o desdobramento de correntes pequeno-burguesas reacionárias sob a forma de movimentos religiosos fundamentalistas que aspiram a “reverter a roda da história” para a reprodução de uma mítica era de ouro religiosa de séculos. A mesma perspetiva oferece a melhor possibilidade de identificar a transformação social de alguns desses movimentos na direção da burguesia e de dar uma pista social às diferenças entre vários grupos além da explicação quasi-tautológica da sua variedade por diferenças ideológicas.

Finalmente, a impressionante revolta árabe de 2011 é como uma ilustração da teoria da revolução de Marx como produto do choque entre as forças produtivas, por um lado, e as relações de produção, assim como dos aparelhos políticos que os preservam e impedem a desenvolvimento das forças produtivas, por outro lado. A revolta de 2011 ocorreu numa região que sofreu décadas de crescimento lento e desemprego em massa. As ferramentas analíticas marxistas permitem-nos localizar a causa desse bloqueio de desenvolvimento onde realmente está, ou seja, na relação peculiar classe-estado que caracteriza a região. Também aponta para a natureza da mudança sócio-política radical necessária para desbloquear o desenvolvimento da região, oferecendo a possibilidade mais séria de compreender a inevitável instabilidade a longo prazo da região.

Tradução de Ana Bárbara Pedrosa para o esquerda.net.


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