Sobre esporte, lazer e política – uma polêmica com Tiago Leifert
Os eventos esportivos não são local apropriado para manifestações políticas?
Na semana passada, Tiago Leifert escreveu em sua coluna que os eventos esportivos não seriam um local apropriado para manifestações políticas, afirmando que nosso lazer e diversão deveriam ficar livres da política. A primeira questão é que, independente da opinião de Leifert, os eventos esportivos são historicamente determinados e influenciados pela política.
Basta pensarmos sobre a questão do acesso aos próprios aparelhos de lazer e diversão, para percebermos que a maioria da população está excluída disso. O primeiro elemento desse impedimento é o tempo, já que a maioria pobre da população tem que se desdobrar em jornadas de trabalho extenuantes, com o agravante do problema do transporte público, que aumenta consideravelmente as horas da jornada de trabalho. Para as mulheres a situação fica ainda pior, considerando que muitas vezes cumprem jornada dupla ou tripla.
Quando esta parcela da população tem tempo, lhe falta dinheiro. Os abusivos preços das tarifas de transporte público não permitem que os mais pobres circulem livremente pelas cidades, fazendo com que não tenham o direito à cultura, ao lazer e a diversão assegurado. E isso é um resultado direto da grande política, que governa para os empresários do transporte.
A mercantilização e elitização do futebol é outro exemplo de como a política influencia os eventos esportivos e “contamina” nossa diversão. Os exorbitantes preços dos ingressos de jogos de futebol, com horários que não condizem com a realidade da maioria da classe trabalhadora, respondem ao interesse, principalmente, do monopólio das grandes redes de televisão. Um produto direto da agenda neoliberal, que é um projeto político e econômico.
Mas voltemos a ideia central de Tiago Leifert, que seria o suposto papel de neutralidade dos esportes e dos eventos esportivos. Essa é a mesma perspectiva que tem, por exemplo, a FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional). Nos estatutos das duas entidades, consta a proibição de manifestações políticas, além de um regulamento específico sobre como deve se estabelecer a relação entre presidentes e as federações de futebol, olímpicas e das demais modalidades presentes nas Olimpíadas.
Essa pretensa neutralidade se desmancha no ar quando analisamos minuciosamente o papel que, por exemplo, a FIFA tem cumprido neste quesito. A entidade proíbe a intervenção política nas federações nacionais. Há, no entanto, um caso emblemático que faz cair por terra essa ideia de neutralidade. A entidade puniu no último período o time da Nigéria e do Iraque, alegando interferência política nas duas seleções. Por outro lado, a entidade se silencia e se nega a responder ao dossiê, montado pelo jornalista Anas Ammo, e apresentado à entidade por Ayman Kasheet, ex-jogador.
O regime assassino de Assad foi responsável, além das mortes de civis, pelo assassinato e perseguição de diversos jogadores. Os que sobreviveram são hoje refugiados. Além disso, os atletas que representam a seleção nacional o fazem sob um regime de intensa coerção – são ameaçados para tanto. Além disso, um dos porta-vozes da federação síria, a SFA, se utiliza das entrevistas e dos jogos para defender a ditadura sanguinária de Assad. É evidente que esses fatos deveriam ser suficientes para que a FIFA aplicasse uma sanção tal qual o fez com Iraque e Nigéria.
A questão é que a FIFA não defende a neutralidade, ela defende interesses bem específicos, expressos pelos setores que hoje se beneficiam do massacre que acontece na Síria. Não há, portanto, nenhum resquício de neutralidade, assim como não há quando Tiago Leifert se levanta contra os protestos em eventos esportivos.
Outro episódio recente, que demonstra o caráter dessa neutralidade, foi a realização das Olimpíadas de Inverno na Rússia. Antes do evento acontecer, centenas de LGBT’s por todo o mundo iniciaram protestos contra a realização do evento no país, por conta das leis lgbtfóbicas de Putin. Os protestos foram ignorados e repreendidos, mesmo com a presença de atletas que iriam participar das Olimpíadas. Muitos destes anunciavam estar com medo de ir para a Rússia e tiveram que fazê-lo a muito contragosto.
É simbólico que um dos exemplos usados por Leifert seja exatamente o do jogador de futebol americano, Kaepernick. O atleta, no centro da luta antirracista que acontece nos EUA, principalmente sob a presidência de Trump, iniciou uma onda de protestos nos eventos esportivos, se ajoelhando durante o hino nacional. Esse ato é um dos símbolos da luta antirracista no país, não é possível que Tiago Leifert o reduza a um “troublemaker”. Sim, Kaepernick é um troublemaker para o sistema e a ordem e, principalmente, para o racismo. Tiago Leifert, ao apresentar tal posição, consegue ser mais atrasado que a FIFA e o COI, por exemplo, que tem tentado implementar uma agenda de punições aos atos racistas, tão recorrentes em eventos esportivos.
Mesmo o discurso sobre uma pretensa neutralidade apresenta um lado, quando Tiago Leifert prefere citar protestos contra o racismo e não ações racistas como atitudes a serem banidas dos eventos esportivos, ele reafirma a agenda racista ainda em voga no Brasil.
A coluna de Tiago Leifert é ainda uma expressão da ignorância histórica do apresentador do BBB, que ignora o papel importantíssimo que diversas manifestações em eventos esportivos cumpriram. Ainda no tema da luta antirracista, é impossível não se lembrar de Tommie Smith e John Carlos, que subiram ao pódio nas Olimpíadas de 68 com punhos erguidos. Desde a recente ascensão do Black Lives Matter nos EUA, os atletas negros de diferentes modalidades tem sido uma voz importante da luta antirracista.
A falsa neutralidade defendida por Leifert caminha na contramão dessas manifestações e é ponto de apoio para o silêncio diante do que acontece em nome de eventos esportivos por todo mundo.
A questão é que é também característico de regimes ditatoriais a utilização de eventos esportivos como forma de comprovar superioridade. Hitler fez isso, assim como a ditadura de Pinochet agiu sobre os esportes no Chile e a própria ditadura brasileira. É simbólico que estádios tenham se tornado campos de tortura na era Pinochet, por isso é também simbólico quando a resistência floresce nos campos de futebol.
A utilização dos eventos esportivos como arena política faz parte das ações daqueles que conseguem compreender que a política não se faz somente nos gabinetes, mas ela é agente determinante de todas as esferas das nossas vidas.
Um pouco de história faria bem a Tiago, compreender o surgimento das Olimpíadas como jogos que reforçavam os ideais de força, como atestado de superioridade, a Copa Libertadores como homenagem aos que lutaram pela independência nas Américas, o papel que os jogadores de futebol cumpriram no Brasil na luta contra a ditadura… Os eventos esportivos sempre foram arena política, o que incomoda Tiago Leifert é que hoje essa arena está sendo tomada pela luta antirracista, como nos EUA, contra as injustiças sociais, no Brasil, contra a LGBTfobia na Rússia e no Canadá. Tomamos a arena dos eventos esportivos para lutar contra o sistema de desigualdade e seguiremos tomando, mesmo que isso custe a diversão de Tiago Leifert, porque o silêncio tem nos custado a vida.