A destruição da História

O governo húngaro de direita está a tentar destruir o arquivo de Georg Lukács – e o seu legado.

Róbert Nárai 13 abr 2018, 21:15

O sol tinha acabado de se pôr numa noite de sexta-feira quando tocou o telefone. Miklós Mesterházi, do Lukács Archívum, em Budapeste, descobriu que a Academia Húngara de Ciências (MTA) iria confiscar a coleção inteira de manuscritos e correspondência que estava guardada nas instalações.

Os funcionários da MTA chegaram na manhã da segunda-feira seguinte e começaram a examinar a coleção. Verificaram o inventário e prepararam-se para transferir o material para o Departamento de Manuscritos e Livros raros no Centro de Informações e Biblioteca da MTA.

De acordo com a MTA, a decisão baseia-se no espírito de “integridade académica” – a deslocação dos manuscritos iria permitir-lhes digitalizar a coleção, permitindo assim que mais pessoas acedessem ao material.

Mas devemos situar a decisão da MTA na conjetura histórica e política da Hungria.

Desde a transição do socialismo de estado para a democracia burguesa, em 1989, a MTA tem dispensado trabalhadores, tornando os projetos de investigação e edição quase impossíveis. Alojar a obra de Lukács – muito desta inédita e ainda por estudar – em tal local não serve nem a “integridade académica” nem os interesses da “investigação”. Ao invés, nega-as.

Além disso, a Hungria é agora controlada (link is external) por um regime autoritário (link is external) que deseja reescrever o passado da nação. O regime de Orbán (link is external) tem trabalhado para reabilitar as tradições nacionalistas e fascistas da Hungria. Tem derrubado estátuas em homenagem àqueles que lutaram contra a ditadura militar de Horthy e o regime do partido da Cruz Flechada, substituindo-as por monumentos que glorificam antisemitas e colaboradores nazis.

O Fidesz, o partido no poder, tem como bodes expiatórios os imigrantes, roma, muçulmanos, judeus, comunistas, socialistas, liberais e o que quer que considere “estrangeiro”. Tomou o controlo de inúmeras instituições estatais e ameaçou acabar com inúmeras instituições da sociedade civil, incluindo a Universidade da Europa Central (link is external).

Neste clima de paranóia e medo, a MTA não quer ser acusada de apoiar um “comunista”, pelo que, sob a imagem de racionalização e eficiência, está a trabalhar para desmantelar os arquivos.

O que iremos perder

O Lukács Archívum é uma instituição de investigação única.

Os visitantes passam pelos mesmos quartos em que Lukács viveu e trabalhou desde 1945 até à sua morte, em 1971. O apartamento – que, ironicamente, tem vista para Szabadság híd (Ponte da Liberdade) nas margens do Danúbio – contém não apenas os seus manuscritos, mas toda a sua biblioteca, completa com as suas anotações. Os académicos que, ao longo dos anos, trabalharam nas instalações, recolheram mais ou menos tudo o que já foi publicado sobre o grande teórico marxista.

Mas o arquivo irá perder o seu bem mais valioso quando a MTA remover os manuscritos. Há um exemplo que nos oferece um vislumbre de seu valor.

Uma das conquistas teóricas mais significativas de Lukács foi a sua teorização dos impactos sociais da produção de mercadoria. Sob este sistema, os produtos acabados são isolados dos trabalhadores que os criam. O trabalho sob o capitalismo é degradante e monótono; transforma trabalhadores em máquinas. Todo o processo é projetado para maximizar o lucro, transformando a dimensão qualitativa da experiência humana – o trabalho – numa medida quantitativa do tempo. “Aqui”, escreveu Lukács na História e Consciência de Classe (link is external), “a personalidade não pode fazer mais do que olhar de forma impotente, enquanto sua própria existência é reduzida a uma partícula isolada alimentada num sistema estranho”.

Apesar de ser um produto do trabalho humano, a produção de mercadorias expressa-se apenas através de mecanismos sociais desumanos – dinheiro, mercados, capital e salários. Estes ganham vida própria, surgindo como sistemas naturais, hostis e respeitadores da lei que ninguém pode compreender, e muito menos controlar.

Uma vez que se torna universal, esta lógica subordina todas as esferas da existência humana à sua racionalidade matemática. Um código abstrato e formal, desenhado para processar milhares de casos, regula um sistema legal encarregado de tomar decisões de vida e morte. A política, separada da vida quotidiana, começa a parecer inalterável. Abismos gigantes dividem estes mundos, e cada esfera de existência parece independente da outra.

Lukács repudiaria mais tarde essas posições sob pressão do Comintern – primeiro, com Zinoviev ao leme, depois mais tarde com Estaline. As suas opiniões radicais não se encaixavam com a reação termidoriana a decorrer dentro da União Soviética (link is external) e do movimento comunista internacional.

Até à data, a tentativa mais clara de se justificar aparece na introdução de 1967 à História e Consciência de Classe. Nesta, Lukács argumenta que não conseguiu distinguir entre objetificação (trabalho) e alienação (uma forma mistificada desse trabalho).

Contudo, quando visitei Mari Székely, o último funcionário restante, este informou-me a respeito de uma série de manuscritos inéditos de 1933, escritos durante os primeiros anos do período de Lukács em Moscovo. Num desses textos, Lukács começa a reavaliar algumas das suas reivindicações anteriores à luz do seu contacto com os Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844, de Marx. A publicação deste ensaio numa próxima coleção – juntamente com outros materiais anteriormente não traduzidos de 1924-33 – esclarecerá e aprofundará os termos deste debate, lançando mais luzes sobre a mudança teórica de Lukács e a reconciliação incómoda com o estalinismo.

Esta descoberta representa apenas um caminho por desvendar, num vasto labirinto que ainda não foi totalmente explorado.

Salvando o presente

A preservação dos arquivos não é apenas sobre o passado. Também diz respeito ao nosso presente, e às possibilidades que existem dentro dele.

O Archívum organiza regularmente reuniões e eventos, onde investigadores da Hungria e de todo o mundo se reúnem para discutir o potencial crítico das ideias de Lukács, muitas das quais permanecem inéditas, negligenciadas e incompreendidas.

Por exemplo, um mal-entendido prevalente foi o lugar da resistência dentro da posição de Lukács sobre a forma de mercadoria. A lógica dominante do capitalismo é quantitativa, mas a qualidade – no sentido do valor humano – nunca poderá ser completamente banida. Enquanto o capitalista sente o impulso de maximizar o lucro como algo puramente quantitativo, os trabalhadores sentem-no como algo qualitativo: um ataque à individualidade e à humanidade. Este ataque à sua qualidade de vida fornece a base para a resistência.

O aspecto da racionalização e da eficiência, segundo a qual a MTA está a confiscar os manuscritos de Lukács, expressa a lógica quantitativa capitalista; a rejeição crítica da esquerda a este movimento, em nome dos valores humanos, expressa a lógica de resistência.

É neste espírito que uma petição que protesta contra a decisão da MTA – com mais de 1 500 subscritores, incluindo Agnes Heller, Nancy Fraser e Fredric Jameson, para citar apenas alguns – foi entregue à academia a 25 de janeiro. Está a circular atualmente (link is external) uma petição semelhante no site change.org (link is external).

Manter o universo teórico contido nestes arquivos – para parafrasear Lukács em The Theory of the Novel – ajudará a guiar-nos em tempos de escuridão e revelar as estrelas que nos governam.

Tradução de Érica Almeida Postiço para o esquerda.net. Artigo publicado na revista Jacobin.


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