Carta aberta à Assembleia Legislativa do Paraná
Setorial de Mulheres do PSOL se posiciona sobre projeto de lei que visa instituir “dia estadual de conscientização contra o aborto”.
Manifestação ao Projeto de Lei 303/2017, que visa instituir o dia estadual de conscientização contra o aborto.
O Setorial de Mulheres do Partido Socialismo e Liberdade do Paraná (PSOL/PR), vem, por meio desta carta aberta, apresentar manifestação relativa ao Projeto de Lei nº 303/2007, proposto pelo Deputado Cobra Repórter, projeto o qual vista instituir o “dia estadual de conscientização contra o aborto”.
Inicialmente, importante ressaltar que este Setorial assinou nota elaborada pela Frente Feminista do Paraná, na qual dados importantíssimos acerca da interrupção voluntária de gravidez, com as respectivas fontes, e apontando como o texto legislativo proposto se mostra uma pregação contrária ao aborto de forma geral, sem real distinção entre aborto legal e aborto ilegal, precarizando a saúde e constrangendo ainda mais as mulheres do nosso estado.
No entanto, para além dos dados, os quais se observa que o próprio Deputado utilizou em sua justificativa de forma equivocada, faz-se necessário um posicionamento deste Setorial não apenas em relação ao mérito da questão, o aborto, mas também a forma como a temática está sedo tratada neste projeto de lei.
De forma irresponsável, equivocada e obscura, o projeto de lei apresenta terminologias inadequadas e incompletas, bem como constrói frases e ideias que se mostram tendenciosas ao constrangimento das mulheres gestantes e criam confusões nas mentes das pessoas.
Vejamos, por exemplo, o termo “nascituro” trazido logo no inciso I do artigo 1º. O referido projeto de Lei não coloca à disposição da população debate sobre o que ou quem é nascituro, tanto pelo viés jurídico quanto pelo viés biológico, os únicos vieses possíveis em um estado laico. Em seguida fala em “direito à vida” e “implicações do aborto ilegal”, novamente sem qualquer tipo de debate, induzindo o cidadão em erro, pois não coloca em perspectiva os direitos sexuais e reprodutivos do cidadão e da mulher gestante ou mesmo sugere elucidação às mulheres sobre o aborto legal.
Igualmente, fala o projeto de lei, em seu inciso IV do artigo 1º, sobre “divulgar os preceitos da vida contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas — ONU”, e novamente sem o devido debate ou apresentação sobre como a ”conscientização contra o aborto” irá ser promovida.
Sabemos que a ONU fala justamente o contrário, e traz, na DUDH, preceitos sobre os direitos fundamentais de acesso à saúde, alimentação, habitação, cuidados médicos, etc., ficando evidente a tentativa de manipulação e promoção da desinformação!
Em momento algum o artigo único de quatro incisos do Projeto de Lei propõe a promoção de programas e campanhas que garantam todos esses direitos contidos na DUDH, afinal, se tivessem todas as mulheres acesso irrestrito à educação, saúde, alimentação e informação, talvez não só a taxa de abortos diminuísse drasticamente, como também a de gravidez indesejada.
Ademais, a própria ONU já concluiu, a partir de estudos, que a restrição ou proibição de aborto não reduz o número de abortos. Campanhas de “conscientização” que mais têm cara, dentro da proposta legislativa do Deputado Cobra Reportes, de campanhas de convencimento só irão cercear, coagir e constranger ainda mais as mulheres a realizarem abortos inseguros.
A forma de apresentação do projeto claramente enfrenta o mérito do aborto exclusivamente pelo viés penal, sem jamais mostrar as diferentes correntes e sem as devidas ressalvas sob a ótica de um estudo político, antropológico e científico, em uma evidente manobra de intensificação da criminalização do aborto, sem criar espaços saudáveis de debate acerca do assunto pela sociedade.
Em que pese a justificativa anexada ao projeto de lei, igualmente devemos lembrar à essa Assembleia de que a justifica não acompanha a lei quando promulgada, devendo a lei por si só ser clara e objetiva em suas intenções, sem dependência de “legendas”.
Vemos nessa justificativa o uso irresponsável de dados sobre abortos clandestinos — sem respectiva fonte desses dados, diga-se de passagem — sem em momento algum a questão ser colocada na perspectiva de direitos sexuais e reprodutivos. E mais, vimos um texto assinado por um parlamentar homem, usurpando local de fala das mulheres, talhando-lhes o pleno exercício de seus direitos fundamentais e criminalizando suas condutas como se suas vidas não importassem.
Não vimos, no entanto, correndo por esta Assembleia Legislativa, projetos de lei encabeçado por homens que visem instituir dia de conscientização contra o abandono afetivo e material praticado por tantos homens todos os dias no Brasil. Não vemos ser criminalizada a conduta de homens que não assumem seus filhos e abandonam mulheres gestantes para sozinhas, e sem o direito de decidir sobre a continuidade da gestação, lidar com seu futuro e da criança que está por vir. Não vemos projetos e lei que visem instituir dias para conscientização de homens sobre os direitos das mulheres de tomarem as decisões sobre seus próprios corpos. Mas vemos diariamente homens e o próprio Estado fazendo questão de opinar em questões particulares e subjetivas das mulheres.
Também nos causa espanto os pareceres emitidos pelas comissões de Saúde Pública e de Defesa dos Direitos da Mulher. O espanto maior não foi a falta de defesa dos interesses e direitos das mulheres, a falta de lembrança sobre o direito ao livre planejamento familiar e deveres do Estado para com seus cidadãos e cidadãs, nem tampouco a mera concordância com o conteúdo do projeto. O espanto maior foi a falta completa de fundamentação, de enfrentamento ao tema, de posicionamento daqueles parlamentares nos quais depositamos nossa confiança nas urnas em 2014 e que têm o dever de nos representar, prestar conta de seus mandatos e nos convencer de que estão, sim, pensando no melhor para nós.
A Comissão de Saúde Pública tinha o dever primordial de promover a discussão sobre todos os dados e estatísticas apontadas pelo Deputado Cobra Repórter em sua justificativa, enfrentando a questão da clandestinidade, taxa de mortalidade entre mulheres da população mais pobre, insuficiência de campanhas e políticas públicas acerca da contracepção, violência obstétrica, entre outros.
Igualmente, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher deveria ter feito uma análise sob a ótica dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, levantado a questão do aborto legal especialmente em caso de estupro ou risco de morte para a gestante. Deveria ter minimamente proposto acolhimento das mulheres em situação de gestação indesejada para além do mero convencimento ao não aborto e constrangimento mediante advertência de morte por aborto clandestino.
No entanto, limitaram-se as comissões à mera concordância motivada, aparentemente, por questões morais, sem tecnicidade, aprofundamento, debate e laicidade.
Por estes motivos, e pela vida das nossas mulheres, o Setorial de Mulheres do PSOL/PR manifesta-se contrário ao Projeto de Lei 303/2017 e pugna pelo seu arquivamento, vez que, pela forma e objetivos em torno dos quais o mesmo foi elaborado, vulnerabiliza e penaliza ainda mais as mulheres, especialmente aquelas que estão às margens da sociedade e são as maiores vítimas do aborto inseguro.
Extraído de: https://medium.com/@gianademarco/carta-aberta-%C3%A0-assembleia-legislativa-do-estado-do-paran%C3%A1-pl-303-2017-be6cca5bf472