Justiça e espectros da barbarie na ex-Iugoslávia
Historiador discute a conclusão dos trabalhos do Tribunal Penal Internacional para a Antígua Iugoslávia e o que ele representou para os Bálcãs.
No ano passado, se encerrou o círculo de um dos episódios mais obscuros da história europeia pós-Guerra Fria, a guerra dos Balcãs, com as últimas seções do Tribunal Penal Internacional para a Antígua Iugoslávia (TPIY): a condenação a prisão perpétua do General Ratko Mladic, e o espetacular suicídio diante dos juízes do comandante Slobodan Rpaljak, que foi transmitido pela tevês ao redor do mundo. Conversamos a respeito com José Ángel Ruiz Jiménez, professor titular do Departamento de Historia Contemporânea e membro do IPAZ da Universidade de Granada, autor de dois livros sobre o tema: “Balcanes, la herida aberta de Europa “(2010); “E chegou a Barbárie. Nacionalismo y juegos de poder em la destrucción de Yugoslavia” (2016). A entrevista foi conduzida por Ismael Cortés da Universidade Jaume I.
Praljak foi o último condenado pelo TPIY. Em 29 de novembro, viralizou o momento em que ele tomou um veneno que acabou com sua vida logo após escutar a confirmação de sua sentença a 20 anos de prisão, enquanto gritava que não era um criminoso de guerra. Como foi vivido na Croácia a sua condenação?
Tratava-se de um personagem que o nacionalismo conduziu para ume espiral assassina que ele mesmo foi incapaz de reconhecer. O documentário da BBC, Unfinished businnes, War in Mostar (1993) mostra cruamente a barbárie realizada pelas forças de Praljak contra aquela cidade. Ele era uma pessoa muito culta, com grandes conhecimentos em psicologia e filosofia, era empresário, escritor, diretor de cinema e teatro. Durante todo o processo judicial, Prajlak experimentou um enorme sentimento de incompreensão, já que ele considerava que havia apenas cumprido seu dever: de fato, ele se entregou voluntariamente ao TPIY. Ele era da Bósnia e Herzegovina, da zona croata do país e, como comandante do exército do Conselho Croata de Defesa (HVO), se sentiu responsável em salvar sua nação do governo bósnio muçulmano. Terminou com o sentimento que havia feito o trabalho duro, sujo e perigoso que exigia suaa pátria, e se sentiu abandonado quando foi julgado como criminoso por esses mesmos fatos, se sentindo um bode expiatório do sistema. O suicídio de Praljak provocou a um respeitoso minuto de silêncio no Parlamento de Zagreb, assim como inúmeros atos de homenagem popular nas ruas e praças, desde a capital croata até Mostar na Bósnia e Herzgovina. De fato, na Croácia e na Herzegovinia croata, as pessoas estavam convencidos que o seu suicídio era a prova irrefutável de sua inocência. Este trágico último ato do Tribunal pareceu simbolizar que o TPIY não havia sido nada mais que um grande teatro. Um efeito da ritualidade midiática que alcançaram a guerra e a política em nossos dias.
Precisamente, o impacto midiático do suicídio de Praljak deixou em segundo plano a condenação a prisão perpétua de Mladic, que chegou a ser o criminoso de guerra mais procurado ao lado de Bin Laden, acusado pelo Cerco de Saravejo e pelo massacre de Srebrenica. Quando lemos sobre aqueles acontecimentos, nos custa imaginar o responsável pela execução a sangue frio de oito mil e trezentas pessoas. Que tipo de pessoa é Ratko Mladic?
Ele se formou como militar do Exército Popular Iugoslavo (JNA) sob o princípio iugoslavo de Irmandade e Unidade. Sua história e de uma progressiva desumanização pessoal, que aconteceu tragicamente em paralelo à degradação dos valores unitários do país. Trata-se de um perfeito exemplo de até podemos levar individual e socialmente as emoções corrosivas que o psicólogo Ignacio Morgad descreve. O descenso moral de Mladic foi o de todo uma causa, a iugoslava, que primeiro derivou no nacionalismo sérvio vitimista, e logo depois em ações tão brutais como o implacável bombardeio de Saravejo, limpezas étnicas e massacres de civis.
Mladic aparece como um personagem público na guerra da Croácia de 1991, já como coronel do JNA. Seu carisma, seu porte físico vigoroso e sua determinação o fizeram muito popular. Mais tarde, na independência da Bósnia e Herzegovina da Iugoslávia, foi incorporado como general a mando do recém criado exército da República Sérvia da Bosnia (VRS), que havia realizado um referendum para se tornar independente de vez da Bóosniae Herzegovina. Seu cego compromisso com a causa nacional servo-bósnia o levou a acreditar em uma missão de grande responsabilidade histórica para com o povo sérvio, que sob sua visão tinha sido escravizado pelos mulçumanos, durante cinco séculos, e que agora se negava a submeter-se de novo a um governo islâmico. Os políticos e colegas que o haviam conhecido antes do conflito concordavam sobre o fato de ser uma pessoa muito respeitada, mas que depois de quatro anos de guerra acabou perdendo o contato com a realidade. Na altura de 1995, assim como o seu país, Mladic havia sido consumido pelo ódio.
Ainda há um setor da população sérvia que vê Mladic como um herói. Como podem considerar um herói o pior carniceiro das guerras dos Bálcãs?
Apesar de ser possível ver camisetas com seu rosto em algumas lojas de rua de souvenires sérvios, ele é considerado como um herói por muito poucos. Quando Mladic foi detido, os meios internacionais foram a Belgrado ansiosos pela foto de uma raivosa multidão partidária do general sérvio. Só encontraram um punhado de radicais nacionalistas desorganizados. Enquanto isso, nessa mesma manha, centenas de jovens percorriam despreocupadamente as exposições, restaurantes e concertos do festival Mikser que acontecia ao lado do Danubio, entre a luz, a alegria e o agito característico da cidade na primavera. Fazia tempo em que se negava o massacre de Srebrenica. Pelo contrário, Na Republika Srpska, região sérvia da Bósnia e Herzegovina, os afetos a Mladic são mais numerosos: aqui se acredita que se hoje gozam de autonomia e respeito a Saravejo é graças a Mladic. Sua reputação de encabeçar combates com ousadia, dormir no chão da campanha e estar disposto a tudo para salvar a nação sérvia de um governo mulçumano, unida a uma historia oficial local que louva a VSR como nobre defensor dos sérvios frente a agressão mulçumana apoiada pela comunidade internacional, explicam que ali sejam negados, ocultados e justificados os crimes que imputam a ele.
Na opinião pública sérvia há um certo grau de ceticismo com o TPIY. Quais são os motivos?
Consideram arbitrário que o Tribunal tenham imposto um total de doze século de condenação séculos aos reis sérvios, enquanto que todas as sentenças croatas, bósnias e albanesas somam apenas dois. Ademais, existe a coincidência de que ainda que Mladic e Karadzic tenham sido responsáveis pela morte de milhares de civis, convertendo-se em criminosos conhecidos em todo o mudo, seus pares bósnios, croatas e albano-kosovares tenham recebido um tratamento muito mais tranquilo. Por exemplo, o caso do bósnio Naser Oric, responsável pela destruição de dezenas de aldeias sérvias; o caso do croata Ante Gotovina , a mando da limpeza étnica de Krajina; o caso dos líderes albaneses Ramush Haradinak e Hashim Thaçi, atuais Primeiro Ministro e Presidente de Kosovo, acusados de fundar e liderar o exército paramilitar UÇK, responsável pela morte de mil cidadãos sérvios. Por esses e outros exemplos, na Sérvia existe o sentimento de que a comunidade internacional foi implacável com os crimes sérvios, enquanto que foi muito mais branda com os demais.
No último 31 de dezembro, o TPIY concluiu se funcionamento para se transformar em um centro de documentação sobre as guerras dos Bálcãs. Quais oportunidades são abertas nesta nova fase de luta contra a impunidade?
Sem dúvida, o TPIY marcou um antes e um depois no Direito Internacional, abrindo enormes possibilidades. Recordemos que quando a ONU criou o TPIY, em 1993, ele não contava com salas, normativa…. nem sequer com togas! O projeto de processar internacionalmente indivíduos responsáveis por crimes de guerra estava congelado desde os juízos de Nuremberg e Tóquio de 1945-1946. Contudo, o TPIY se converteu no catalizador que possibilitou uma normativa universal a respeito, o Estatuto de Roma de 1998, e um organismo capaz de implementá-lo, o Tribunal Penal Internacional, em funcionamento desde 2002. Além disso, fez com que lideres políticos e militares de todo o mundo saibam que já não há mais a impunidade do passado, assim como que a opinião pública tem a expectativa de que os crimes sejam processados. Por outro lado, o Tribunal também mostrou debilidades que podem ser melhoradas, por exemplo, que os processo se que prolongaram por um quarto de século supuseram uma permanente recordação das violências dos anos 90, que impediu passar a página nos Bálcãs, e a polêmica de várias sentenças ou da falta delas beneficiou o discurso vitimista dos diferentes projetos nacionais. O TPIY também evidenciou que a justiça não gera por si só a reconciliação e a convivência, pelo contrário, às vezes contribui para gerar tensões. Os desafios mais imediatos são enriquecer a ação da justiça com iniciativas de verdade e memória, como a abertura do centro de documentação, e protegê-lo de interferências políticas; e mais ainda, integrar os países que ainda não reconhecem o TPI, entre os quais se destacam países tão importantes em política global como os Estados Unidos, a China, Rússia, Índia e Israel.
Entrevista realizada pelo portal Sin Permiso. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.