68 francês: a explosão de maio
Capítulo do livro ‘Maio de 68: um ensaio geral” sobre os acontecimentos que despontaram em Paris e sacudiram a França em 1968.
A manifestação do 3 de maio e a espontaneidade das massas
Nada indicava que a sexta-feira, 3 de maio, fosse passar à história. No ensolarado pátio da Sorbonne há um ambiente aprazível e familiar: algumas dezenas de militantes da JCR estão alinhados em colunas ao longo dos degraus da capela e escutam, brincalhões, a leitura comentada de um requerimento de Georges Marchais publicado em L’Humanité dessa semana: “Desmascarar os falsos revolucionários”. Sessenta metros mais adiante, os estudantes da FER vendem Révoltes; uns miliatnes do MAU colam cartazes; não se vê nem um UJCml. A intervalos regulares, um militante convoca os estudantes para a plenária das 12h e para a mobilização antifascista: um dia como tantos outros na Soborna.
Por volta do meio-dia, chegam os militantes do 22 de Março, calorosamente aclamados. Já célebres, levam atrás de si uma matilha de jornalistas. Tomam a palavra Henri Weber, pela JCR, Christian de Bresson, pela FER, Jacques Sauvageot, pela UNEF, Daniel Cohn-Bendit, pelo 22 de Março. Amavelmente, este oferece o microfone a um representante da UEC para que exponha a posição do Partido Comunista, e o militante cumpre animosamente essa pesada tarefa. Decide-se uma manifestação para a segunda-feira, 6 de maio, às 9 da manhã, diante da reitoria, onde se reúne o Conselho da Universidade. Às 13h, os militantes se dispersam em grupos de propaganda, em direção aos principais restaurantes universitários.
À tarde, esperam os fascistas. Os serviços de segurança, com seus efetivos completos, tomaram posição nas diferentes saídas e estão prontos para intervir. O dispositivo de defesa tem quase 400 militantes perfeitamente equipados. Às 15h, mensageiros anunciam que se aproxima um grupo armado de uma centena de “nacionalistas”. Desafortunadamente, não há nenhuma possibilidade de que cheguem até nós, porque a polícia vigia… Bloqueados pelas forças de segurança, os fascistas se afastam. Na Sorbonne, a tensão cede. Organiza-se no pátio uma ocupação improvisada. Uma delegação conduzida pelo vice-presidente da UNEF vai à reitoria para pedir que se abram algumas salas. A negativa vai acompanhada de ameaças: se os “pretorianos” não desaparecerem, fecharão também a Soborna. Um clamor de indignação sobe até as janelas do reitor quando os estudantes ficam sabendo da chantagem. Os militantes do 22 de Março ensinam aos sorbonnards as técnicas dos grupos de discussão. Pelos quatro cantos do pátio se iniciam os debates.
Os dirigentes das organizações estudantis sinalizaram para as 17h30min a hora da dispersão. Mas às 16h30min a polícia fecha as saídas. Às 17h, as forças de segurança solicitadas pelo reitor entram na Soborna, cassetetes nas mãos. Entre as 17h15min e as 19h30min, vão-se levando os militantes em grupos de 25 e vão dividindo-os nas delegacias de polícia parisienses.
Às 17h30min estoura a manifestação: as centenas de militantes encurralados na Sorbonne não acreditam nos seus ouvidos: a uns dez metros, um cortejo, ao parecer substancial, se choca violentamente contra as forças de segurança. Alguns veículos voltam vazios e sem vidros. Pela primeira vez no Bairro Latino se ouve continuamente o explosão das bombas de gás lacrimogêneo. Imediatamente a multidão dos estudantes decide se perguntar: quem? Que grupo lançou essa vigorosa e imediata resposta? Os principais quadros da JCR, do 22 de Março, da FER, do MAU estão presos na Soborna. A UJCml está aborrecida e, prevendo uma ação fascista fulminante, deu ordem aos seus miliantes para que não aparecessem no Bairro Latino na sexta-feira, 3 de maio…
Os comitês de ação dos secundaristas? Talvez. Eram esperados para depois dos cursos. Mas de onde os dirigentes dos secundaristas poderiam tirar experiência e audácia?
A verdade é que a manifestação do 2 de maio foi puramente espontânea. A polícia não esperava encontrar cerca de mil estudantes na Sorbonne. Desconcertada pelo número, decidiu levar apenas os homens… As militantes permaneceram livres para fazerem o que quisessem e não deixaram de ir avisar no Bairro Latino.
A partir das 17h, se formam grupos espontâneos na praça da Sorbonne, na rua des Ecoles, no boulevard Saint-Michel. São lançadas palavras de ordem que a massa repete e amplifica rapidamente. Quem tomou a iniciativa dos primeiros lançamentos de garrafas, de vidros de mostarda, de cinzeiros e de diversos outros projéteis mais? Quem decidiu obstruir a circulação, bloqueando a rua? Os militantes de base dos pequenos coletivos? Os “não organizados”? Não importa. O movimento estudantil aprendeu esses gestos dos estudantes alemães e italianos. Já os havia imitado no 13 de abril, na manifestação de solidariedade com a SDS e Rudi Dutschke. Politicamente, estava já disposto à resistência. Os poucos militantes da FER que estavam ali aprenderam às próprias custas. Um dos dirigentes se pôs a dispersar os manifestantes, porque, separados de suas organizações, os estudantes não podiam se opor eficazmente às forças da polícia. Fazer frente aos agentes sem bons chefes era se colocar em grave risco. Era necessário voltar para casa e exigir que as direções dos sindicatos organizassem uma resposta democrática. O mínimo que se pode dizer é que aquelas declarações não convenceram ninguém, e os estudantes deixaram o líder FER gesticulando e se lançaram contra os carros da polícia. Por sucessivos cálculos aproximativos, foram criando no ardor do combate uma tática de assédio incessante, baseada em breves ataques e rápidas retiradas, que não dava às forças de segurança tempo para respirar nem para reagir. Não estavam acostumadas a tal resistência. Surpreendidas, pouco móveis, se cansavam com as munições ineficazes e se salvavam batendo com cassetete em qualquer um que tivessem à mão.
A manifestação espontânea do 3 de maio suscitou no movimento estudantil uma dessas falsas polêmicas a que está acostumado. As divergências se situavam na curiosa problemática, fundada na oposição unilateral entre espontaneidade e organização. “Já veem que não servem para nada”, afrontavam os “espontaneístas” dos membros dos pequenos coletivos. “Foi uma resposta magnífica, lançada pela base estudantil enquanto vocês estavam todos presos na Sorbonne. Além disso poderia apostar que, se vocês estivessem fora, não haveria acontecido nada, porque chegariam falando muito bem, com a sua disciplina e equipes de organização e mais uma vez teriam paralisado a iniciativa das massas”. Ao que respondiam os místicos da organização estilo FER: “Todo militante responsável deve agir como nós agimos, porque só os aventureiros enviam os estudantes não organizados ao matadouro.”
Na verdade, esse debate se insere em uma problemática absurda. Não existe no marxismo oposição mecânica entre organização e espontaneidade. Ao contrário, o marxismo nos ensina que a espontaneidade de um meio social não é de modo nenhum independente do seu grau de organização. As atitudes “espontâneas” de todo meio social estão condicionadas pela natureza e pelo poder das estruturas que o organizam. Se a classe trabalhadora é “espontaneamente sindicalista”, como diz Lenin, é que “espontaneamente” está organizada pela classe dominante e pelo Estado burguês. E a função de uma organização revolucionária consiste precisamente em educar o proletariado de modo que ele se libere da sua espontaneidade burguesa e se insira em uma “espontaneidade revolucionária”, constituída em décadas de lutas e greves. O que os marxistas chamam de “espontaneidade das massas” não é outra coisa senão a manifestação espontânea do grau de consciência e de experiência a que se chegou. Anos de propaganda revolucionária, anos de mobilização e de lutas assumidas pelos pequenos coletivos levaram a uma espontaneidade do movimento estudantil e a um nível de maturidade política perfeitamente apreciável. Essa maturidade política é a que se manifestou “espontaneamente” no dia 3 de maio à noite e nas semanas seguintes.
Nos camburões que os levavam às delegacias, os militantes revolucionários traçavam planos para os dias seguintes. Todos entendiam que o poder acabava de cometer um erro de marca maior: a tomada da Sorbonne pela polícia, o encarceramento arbitrário de 600 militantes, o uso de gases lacrimogêneos e dos cassetetes no Bairro Latino, atitudes mais que suficientes para causar um trauma duradouro em toda a Universidade.
Ao ferir indistintamente um meio já muito sensibilizado, a repressão ia servir de catalisador. Ia precipitar as partículas e as moléculas estudantis para formar um corpo social compacto e reivindicativo. Todas as decepções, todos os rancores, todas as rebeldias acumuladas durante meses iam ressurgir e cristalizar-se na negativa, esperando a agressão do poder. Pelo seu mesmo excesso, a repressão tinha valor de símbolo: constituía a expressão concentrada de todo um conjunto de relações sociais, feitas de violência, de injustiça, de arbitrariedade, que cada um suportava cotidianamente no estado diluído. Os discentes iam rebelar-se contra tudo quanto aquela repressão levava como significado latente.
A julgar pela sua reação espontânea, a resposta do movimento estudantil sem dúvida ia ser enérgica. O corpo docente se veria obrigado a tomar partido, e naquelas circunstâncias não teria mais remédio que se colocar ao lado dos estudantes. Faltando algumas semanas para os exames, a paralisia da Universidaade sacudiria a opinião pública. O poder havia iniciado um enfrentamento do qual poderia muito bem sair vencido. Amontoados nas nossas celas, especulávamos acerca da categoria e das próximas vítimas das nossas manifestações de rua: seria o reitor Roche? Seria o ministro Peyrefitte? Ou o prefeito da polícia Grimaud? O calabouço da polícia na Prefeitura se dividia em “utopistas” e “temerosos”. Mas todos estávamos de acordo com que o poder acabava de dar ao movimento estudantil francês uma ocasião inesperada de repor seu atraso com relação aos seus equivalentes italianos, espanhóis ou alemães. Havia chegado o momento de dar consistência ao título do editorial do número 1244 do Avant-Garde Jeunesse: “Criar dois, três, vários Berlins, essa é a diretriz”
Sábado 4 e domingo 5 de maio: a direção provisória e o acordo entre organizações
O fim de semana foi dedicado a se preparar a resposta. Uma primeira reunião foi organizada quando os dirigentes foram postos em liberdade, no sábado, 4 de maio, perto das 2 da madrugada, na Escola Normal Superior da rua de Ulm. Assistiam Sauvageot e Bénard, pela UNEF, Geismar e Fontaine, pelo SNE-sup (Sindicato Nacional do Ensino Superior), Weber, pela JCR, Stourdzé, pelo 22 de Março, Péninou e Kravetz, pelo MAU, Chisseray e Berg, pela FER, e os principais dirigentes da UJCml. O SNE-sup e a UNEF anunciam que lançaram cada um seu indicativo de greve geral para a segunda-feira, 6 de maio.
Dessa reunião, não sairia nenhuma decisão concreta. Os delegados das diversas organizações vieram para sondar as respectivas intenções e para ver até que ponto eram compatíveis. Na verdade, a partir desse momento está posta a questão do poder no seio do movimento. Acaba de nascer um movimento de massas que abala todas as estruturas existentes e parece ter grandes perspectivas e imediatamente se encontra empenhado em um difícil enfrentamento: se quer triunfar, terá de manobrar com destreza e decidir com rapidez. Mas para isso necessita de uma direção centralizada, que fale em seu nome, elabore um plano de ofensiva, dê instruções e diretrizes. É evidente que essa direção não pode surgir do movimento mesmo em 24 horas, que demorará semanas para se estruturar da base até em cima. Nesse intervalo, serão organizações constiuídas que assumirão de fato as funções de direção.
Entre as organizações e os pequenos coletivos universitários, quem serão os que se colocarão realmente como cabeças do movimento? Essa é a questão que domina esse primeiro fim de semana de maio. É uma questão importante, porque as organizações têm cada uma sua linha política determinada. Do seu “acesso ao poder” depende a orientação do movimento na batalha, ou seja, o futuro mesmo do movimento.
O sábado, 4 de maio, às duas da manhã, aponta uma solução.
Desde essa primeira reunião, a UJCml vai se mostrando intransigente. Sua direção passa nesse período por uma fase de sectarismo máximo. Nega-se a sentar-se à mesma mesa que as organizações trotskistas e imediatamente se põe a disputar o procedimento, o regulamento da reunião. Seu porta-voz declara que, a seu ver, se encontram reunidos não mais os representantes desta ou aquela organização, mas “elementos ativos” do movimento estudantil. Ao que o delegado da FER responde que ele somente diferencia ali os delegados das organizações que participaram da plenária da sexta-feira ao meio-dia no pátio da Sorbonne dos delegados que pegam o trem em movimento. Dito isso, a delegação da UJCml abandona a sala e desde então não volta a participar das reuniões “unitárias”. Tentará – em vão – tirar a direção do movimento da união das organizações que a assume. Para isso suscitará suas próprias estruturas “de massas”: comitês de defesa contra a repressão, comitês de apoio às lutas do povo etc.
Na verdade, o sectarismo exagerado da UJCml encobre profundas divergências políticas: há contradição total entre o populismo primário da linha “servir ao povo” e a concepção do movimento estudantil como possível detonador dos enfrentamentos entre classes.
Além da ruptura com a UJCml, logo se apresenta outro desacordo que opõe os que pensam respeitar a autonomia do movimento de massas e, portanto, se dispõem a estruturá-lo pela base, por cima das organizações existentes, e os que, ao contrário, temem a formação de um movimento de massas dinâmico que não poderiam controlar. Entre os primeiros estão o Movimento do 22 de Março, a JCR, o MAU, o SNE-sup; entre os segundos, a FER, durante certo tempo, a direção nacional da UNEF. Esta não tarda em mudar sua análise e aceitar, velis nolis, a colaboração leal ao movimento. A FER se nega até o final a entender que a nova mobilização dos discentes não se enquadra nas estruturas tradicionais. Por isso seu peso específico na tomada de decisões não deixou de ser reduzido e, a partir do 8 de maio, ficou definitivamente anulado.
Das reuniões nos dias 4 e 5 de maio, saiu um plano conjunto para a jornada de segunda-feira. A manifestação anunciada na plenária da sexta-feira, 3, diante da sede do Conselho da Universidade, foi confirmada para as 9 da manhã. A UNEF assinou um chamado à solidariedade, que foi direcionado aos trabalhadores da região de Paris, convidando-os a se apresentarem em massa às 18h30min na praça Denfert-Rochereau para manifestar seu apoio às reivindicações estudantis. O chamado, em folhas soltas e com tiragem de 100.000 exemplares, foi distribuído na segunda-feira, ao amanhecer, na porta das fábricas. Uma equipe de militantes se agrupa em torno de Jean Schalit e propõe editar, controlada pelo movimento, um jornal: Guérilla. Os representantes das organizações julgam esse título muito “publicitário”, e ao fim entram no acordo de que se chame Action. O primeiro número aparecerá na segunda-feira, 6, e será distribuído durante a manifestação.
Saber lutar… Duas táticas
Na noite de domingo para segunda-feira, a polícia fecha o Bairro Latino. Os estudantes começam a se concentrar às 9 da manhã. Logo são muitos milhares, que circulam pelas barreiras policiais. Às 9h15min se forma o primeiro cortejo, ao redor de um núcleo de militantes, diante do Teatro da França. Os manifestantes iniciam um longo percurso ao redor do dispositivo da polícia, e seu cortejo vai crescendo às vistas; lá pelas 11 da manhã, são uns 5.000. No agrupamento os militantes da UJCml levam e trazem uma diretriz que atribuem à UNEF: “Todos à plenária das 12h30min na Faculdade de Ciências”. Interrogado, Jacques Sauvageot afirma não saber nada. Parecendo-nos uma manobra, decidimos conjuntamente levar o cortejo, à hora marcada, ao lugar da reunião. Agrupados no alto da grande escadaria, os responsáveis pela UJCml se preparavam para organizar uma plenária e parecem um tanto contrariados com a nossa chegada. Durante uma hora, efetivamente, os militantes da JCR e os da UJCml se enfrentam em dura polêmica… O objeto da controvérsia é a continuação do movimento, e diante de 6.000 estudantes se coloca a questão da tática que será seguida.
Os dirigentes ml dizem de certa forma que, só com suas forças, os estudantes não podem se opor eficazmente à repressão policial. Os guardas móveis cercaram o Bairro Latino. Os estudantes se encontram ali à mercê da menor provocação. Não é necessário escutar os aventureiros pequeno-burgueses que convocam para se manifestar ali e tratam de separar os estudantes dos trabalhadores. Assim levariam o movimento ao matadouro. O que faz falta, ao contrário, é sair do Bairro Latino, deixá-lo para os CRS e ir manifestar nos bairros populares, em Ménilmontant, em Belleville, na Bastilla. Em pequenos cortejos é preciso sair e explicar aos operários a verdade da repressão que cai sobre os estudantes, conquistá-los para a causa estudantil.
Os oradores da JCR respondem que o trabalho de explicação à população já foi feito na segunda-feira, 6 de maio, entre as 5 e as 10 da manhã. Cem mil folhetos da UNEF, dezenas de milhares de panfletos das organizações políticas foram distribuídos na entrada das fábricas, nas estações de trem, no metrô. Claro está que se deve continuar e intensificar esse trabalho de propaganda. Mas seria estupidez se encarregar disso em uma manifestação. É necessário organizar grupos de propaganda e dividi-los na região parisiense. Mas também é necessário sair às ruas em milhares para lutar firmemente pelos nossos objetivos. Uma campanha de explicação pode, no máximo, captar a compaixão da classe trabalhadora, somente nossa própria resposta pode nos valer seu apoio efetivo. Os italianos e os alemães demonstraram do que é capaz o movimento estudantil. As manifestações da sexta-feira, 3, confirmaram isso. Dedicamo-nos a uma prova decisiva, em um tema que concerne a todo o mundo. Ajudemo-nos a nós mesmos e a classe trabalhadora nos ajudará. Não, não é preciso sair do Bairro Latino, porque isso significaria – queiramos ou não – um reconhecimento tático de fato consumado. Ao contrário, manifestemo-nos no Bairro Latino, respondamos, como na sexta-feira, às provocações policiais e nos neguemos a recuar ante as medidas repressivas. Nossa resistência pode dar origem a uma situação nova, e então cada um terá de se declarar com relação a nossa ação.
Nesse nível de generalização, o debate poderia ter durado indefinidamente se os manifestantes, fartos de discursos, não tivessem tomado espontaneamente a iniciativa de se colocar em marcha. Com 6.000 estudantes, o cortejo se dirigiu ao longo do Sena até o boulevard Saint-Michel. À altura da rua Saint-Jacques, os mensageiros indicam importantes movimentos das forças da polícia. O cortejo não está suficientemente bem “impulsionado” para enfrentar. Decidimos passar pela margem direita e damos uma grande volta pelo centro de Paris. Com o passar do cortejo, a população manifesta sua simpatia. Um jovem carteiro vai a nossa frente e pede aos “camaradas estudantes” que passem pela rua do Louvre, diante da central dos Correios, que está de greve…
A volta ao Bairro Latino se dá ao grito de “A Sorbonne para os estudantes”. Já vai fazer 6 horas que dura a nossa manifestação. Com o estômago vazio e as pernas vacilantes, atravessamos o boulevard Saint-Michel, onde nos esperam os CRS em fila tripla, com os caminhões dispostos em linhas paralelas, formando triângulos, armados de mangueiras contra incêndios, em barreira intransponível. Mas pela rua Saint-Jacques, o dispositivo é muito menos denso. O cortejo de bifurca… E imediatamente vem a munição. Os golpes eram frequentes entre a fumaça ácida do gás lacrimogêneo. Vários estudantes caem feridos, entre eles Christian Debresson, secretário geral da FER. A partir desse momento, a batalha será muito intensa. Reagrupados no boulevard Saint-Germain, os manifestantes se preparam para o confronto. O cortejo se transforma em um imenso formigueiro onde cada um corre ocupado na sua tarefa. Inspirando-se nos procedimentos do adversário, alguns grupos dispõem os carros organizados em triângulos para impedir o avanço das forças de segurança. Outros estudantes distribuem com parcimônia o suco de limão antilacrimogêneo. Outros repartem os capacetes “emprestados” de uma obra próxima. Cada um busca com o que armar o braço. Domina a batalha o barulho do aço, que ressoa secamente ao choque com os paralelepípedos parisienses…
Correndo de grupo em grupo, os militantes da FER gritam pedindo a dispersão. Segundo eles, o enfrentamento que se prepara é uma tentativa de sabotagem, além de uma louca provocação. Sabotagem da manifestação das 18h30min, que não poderá acontecer se a confusão cresce. E louca provocação porque, isolada, a vanguarda estudantil corre para o abate. Mas, como no dia 3 de maio, ninguém ligava para eles.
E quando as forças de segurança querem avançar, as primeiras linhas de estudantes lançam literalmente um ataque com paralelepípedos. Diantes delas, o pânico; os policiais retrocedem desordenadamente e deixam alguns dos seus caídos. A partir de então, manterão uma distância prudente. Desocupam a duras penas o caminho com substancial lançamento de bombas de gás lacrimogêneo. Sistematicamente, as bombas são devolvidas, enquanto os estudantes, protegidos pelos carros em zig-zag, rejeitam a golpes de paralelepípedos muitas cargas. À altura da praça Maubert-Mutualité, a “frente” se estabiliza. O combate, um dos mais violentos do mês de maio, dura mais de duas horas. Para as forças de segurança, o encontro mais custoso. Às 17h30min, os estudantes se dispersam e vão para a praça Denfert.
Desde as 18h, essa praça está cheia de gente; ao sair do metrô se compreende por que a FER temia tanto que os choques anteriores prejudicassem a reunião de Denfert. Escassos pela manhã e à tarde, os militantes da FER e la OCI estão todos ali, alinhados na primeira fila, estendendo uma quantidade de bandeirolas e bandeiras com suas siglas em preto. Mas já passou o tempo em que faziam a massa engolir qualquer coisa. Os manifestantes não têm intenção de desfilar atrás das bandeirolas da FER, cuja impopularidade inicia uma forte ascensão, e fazem com que sejam retiradas. “Guardar suas bandeirolas”, cantalorava o cortejo… Depois de uns instantes de vacilação, as bandeirolas desaparecem.
Uns 20 ou 30 mill estudantes se dirigem até o Bairro Latino. Entre eles são muitos já os operários que aceitaram se unir à luta dos estudantes. Um novo encontro em Saint-German-des-Prés. Acolhido pelo lançamento de bombas, o cortejo replica com energia. As forças de segurança são maiores e estão melhor equipadas que em Maubert. Mas os manifestantes se gabam da extraordinária audácia e engenho. Outra vez volta a se organizar o formigueiro. Formam-se centenas de metros para levar os paralelepípedos à linha de fogo. A praça de Saint-German parece uma estampa de camponeses chineses edificando diques. Duas vezes os CRS se vêm obrigados a retroceder. Às 22h, o cortejo se dispersa. Os últimos choques cessam por volta da uma da manhã.
Balanço das manifestações do 6 de maio
Não se deve subestimar a importância das manifestações do 6 de maio. Os estudantes dominaram as ruas ininterruptamente desde as 9h até as doze da noite. Duas vezes se confrontaram violentamente com as forças da polícia e tiveram 345 feridos. O vigor e a força das manifestações estudantis deixaram profundo impacto na classe operária e na juventude.
Os trabalhadores tinham uma ideia pouco simpática do estudante, ideia astutamente mantida pelas burocracias operárias. Para eles, o estudante é um “senhorzinho”, um garoto “mimado”, pretensioso e visivelmente afeminado. Seus escândalos não o impediriam de engrossar amanhã as fileiras dos exploradores. E na noite de 6 de maio, essa imagem malévola se rompe em pedaços.
As fotografias dos combates, o balanço dos encontros, provocam assovios de admiração dos operários. O estudante não tem medo dos golpes e sabe dá-los. “Eles pelo menos não se entregam”. Ao mito do estudante afeminado, substitui o mito do estudante forte, sem medo e sem defeitos. Em alguns dias de reação exemplar, o movimento estudantil derrubou o muro da incompreensão e da desconfiança pacientemente erquido pelos stalinistas. Mais adiante, deixará de ser difamante nas fábricas o título de estudante. Logo será um “abre-te Sésamo”, que, a despeito dos burocratas, abrirá caminho por todas as partes até a classe operária.
Tratando de explicar a amplitude das manifestações, a imprensa evoca a “solidariedade juvenil”. Frente à autoridade impositiva dos adultos, os jovens teriam, sem dúvida, tendências a se unirem estreitamente e a correr, por instinto, para ajudar seus semelhantes em perigo. Na verdade, a “solidariedade juvenil” tem bases muito diferentes. Não precede de nenhum instinto coletivo, senão do contágio da rebeldia, em um meio social posto sob tutela, ao se dar o exemplo da resistência.
A luta dos estudantes introduziu nos secundaristas uma pequena ideia explosiva que subitamente adquiriu a força de uma evidência: não é de modo nenhum natural se submeter a regulamentos danosos elaborados por reitores maníaco-depressivos. Não é de nenhum modo natural engolir sem dizer um “piu” cursos fracos. O que é arbitrário, irracional, entediante não é de nenhum modo fato inalterável a que alguém se deva acomodar. Toda essa máquina absurda que se exorcizava com alvoroços e brincadeiras pode ser derrubada. E a partir da segunda-feira, os estudantes secundaristas iriam às ruas aos milhares.
A mesma pequena ideia, porém vacilante, penetrou igualmente entre os operários jovens. Não é de nenhum modo natural que alguém seja o menos valorizado na empresa, o mais mal pago, o primeiro a ser mandado embora, quase um operário do mais baixo cargo, com seu “CAP” (Certificado de Aptidão Profissional) no bolso, quando não se resigna ao desemprego. Não é de modo algum natural que alguém seja controlado, que o insultem, que o prendam, que o repreendam alguns comandantes da polícia que não entendem as diferenças entre um operário jovem e um delinquente juvenil. Todas essas incríveis “autoridades” que inflingem com prazer escárnios e humilhações… Não basta difamá-las entre amigos. No Bairro Latino, os estudantes começaram um grande ajuste de contas. E na terça-feira, os operários jovens também iriam aos milhares às ruas.
A base da “solidariedade juvenil” não é mais sentimental e afetiva do que a da solidariedade estudantil. Se a solidariedade juvenil se manifestou plenamente, é porque o movimento estudantil lutava em um campo comum a toda a juventude. Sua luta contra a repressão é uma luta contra a multiforme opressão que aguenta a juventude em uma sociedade cujos valores rejeita e à qual ainda não está insidiosamente ligada pelos múltiplos laços da resignação, da renúncia, das desilusões e da decadência pessoal.
Se milhares de jovens sem trabalho, estudantes secundaristas, operários, aprendizes se uniram à luta dos estudantes, se deram mostras de uma combatividade, um ardor e uma audácia notáveis, é porque compreendiam confusamente que tinha havido uma forte resistência cujo resultado devia ser algo muito maior que a liberação de alguns camaradas e a reabertura das faculdades; era porque compreendiam que os paralelepípedos que caíam sobre os representantes uniformizados da autoridade na verdade apontavam para o autoritarismo opressor que é quem tece seus próprios dissabores cotidianos. Se, com tanto entusiasmo e esperança, se uniram ao combate estudantil, foi porque pela primeira vez viam “do outro lado” uma força que parecia verdadeiramente decidida a abolir as regras opressoras e a instaurar sobre as suas ruínas a magnífica fraternidade combativa que reinava nas suas manifestações.
Conquistar fa opinião
A união das organizações universitárias, composta por representantes da UNEF (Sauvageot), do SNE-sup (Geismer), do 22 de Março (Cohn-Bendit e outros), da JCR (Weber-Krivine), da FER (Chisseray-Berg), dos CAL (Recanati-Najman), decide organizar uma manifestação cotidiana que as reivindicações míninas do movimento sejam recebidas.
Na terça-feira, 7 de maio, a reunião se fixa, como no dia anterior, na praça Denfert, às 18h30min. Falando do leão de Berfort a uma multidão ainda mais considerável que o dia anterior, Jacques Sauvageot explica os objetivos da manifestação: fim das perseguições administrativas, judiciais e universitárias iniciadas contra os estudantes, retirada das forças de polícia, reabertura dos estabelecimentos universitário. O cortejo iria para a Sorbonne.
De todos os modos, o objetivo não era repetir os encontros do dia anterior, porque, quando dois se põem a medir forças, ai daquele que se repita! Para ganhar, é necessário cada dia construir novos marcos. Se o movimento não avançava, o poder voltaria a tomar a iniciativa. Era necessário expulsar toda rotina e levar ao posto de comando a imaginação e a audácia. Cada dia era preciso estender o movimento, ampliar sua base para outros setores, para que entrassem por sua vez na batalha. Cada dia era preciso realizar uma nova demonstração política. Os enfrentamentos da jornada anterior haviam demonstrado a resolução de combatividade do movimento estudantil. Agora se tratava de demonstrar a uma opinião pública já comovida, mas ainda vacilante, que os “exaltados” não eram niilistas entusiastas que buscavam na desordem um paliativo para sua própria nulidade. Era necessário convencer a opinião pública da legitimidade da nossa violência, para que a apoiassem e a sustentassem, a fim de que a pressão sobre as autoridades aumentasse e se fizesse irrestível.
A partir da terça-feira, nossa tarefa estratégica consistia em ganhar definitivamente a opinião e obrigar, assim, que as “organizações operárias e democráticas” intervissem. Era preciso agir com cautela, porque qualquer falta política podia custar caro. Conquistar a opinião pública não significava, claro está, atenuar o dinamismo do movimento para se fazer de interlocutores responsáveis. Não se tratava de nos colocar na posição da opinião pública, mas de convencer parte da opinião operária que passasse a nossas posições revolucionárias ao mesmo tempo em que nos assegurávamos da neutralidade benévola da opinião pequeno-burguesa. Para isso devíamos, por uma parte, conservar o ganho das manifestações do dia 6 (vigor, novo estilo do movimento) e, por outra parte, afirmar nossa grandeza e nossa maturidade política. Todo mundo devia ver bem claro que o movimento estudantil não se dedicava à violência pelo gosto da violência e que, para nós, o enfrentamento não era um fim em si, mas o último recurso que o poder estúpido e brutal nos deixava.
A vanguarda estudantil havia compreendido isso muito bem. Na terça-feira não queríamos motim, mas uma espetacular, disciplinada demonstração de força.
Muito mais importante que no dia anterior, o cortejo se pôs em movimento às 18h30min em direção ao Bairro Latino. À altura do Bulllier se detêm as primeiras linhas. Trezentos metros acima, o boulevard Saint-Michel está obstruído por um intransponível dispositivo policial. Os responsáveis pelo serviço de segurança vão “negociar”. O comandante de serviço lhes indica amavelmente que eles vão embora. A manifestação tem um instante de indecisão. Propomos bifurcar pelo boulevard Montparnasse. Os manifestantes gritam: “À Sorbonne! À Sorbonne!”. Um militante se ergue e nos explica que a barreira é inacessível pela frente, sobretudo tendo em vista que a calçada está afastada naquele lugar… Esse último argumento convence. O cortejo dá uma volta e se dirige até Montparnasse. Atrás protesta com veemência a UJCml: “Os trotskistas querem levar os manifestantes aos bairros elegantes, onde vivem os burgueses, seus irmãos. Nosso lugar está entre os trabalhadores, nos bairros populares.” Os militantes ml tratam de dividir o cortejo. Querem levar uma parte dos manifestantes para a Praça da Itália e para os subúrbios do sul. Não compreendem o significado político eminentemente subversivo que tem uma manifestação de extrema-esquerda nos Campos Elíseos, a “via real” da burguesia. Para eles, esse desfile é uma concessão à classe dominante. Não compreendem que um percurso assim é um sacrilégio que unicamente autoriza certa relação de força, isso é precisamente o que se trata de confirmar. No campo das manifestações, a vida política francesa também é regida por um jogo de acordos táticos entre maioria e oposição. Às manifestações de esquerda lhes correspondem os “bairros populares” (Bastilla-República, Nación-Pére Lachaise), às manifestações de direita, as zonas burguesas (Campos Elíseos, praça de l’Etoile, etc…). Subir pelos Campos Elíseos cantanto A Internacional e agitar bandeiras vermelhas no Arco do Triunfo tem a mesma significação que ocupar uma faculdade ou responder com energia as munições da polícia. Significa a negativa de seguir respeitando as regras do jogo institucional com que se mantém o sistema.
Durante um breve momento, a polêmica é viva entre os militantes da JCR, que voltaram para o final do cortejo, e os militantes da UJCml. Estes conseguiram, enfim, levar um grupo de algumas centenas de manifestantes, que dão as costas ao cortejo e vão pelo boulevard Port-Royal. Mas não demoramos em lançar um argumento certeiro: “Camaradas! Desde 1936, nenhum cortejo subiu pelos Campos Elíseos atrás de bandeiras vermelhas. Esta noite, A Internacional ressoará sobre a tumba do soldado desconhecido”. O cortejo rebelde volta outra vez para junto de nós. 50.000 manifestantes se dirigem até a margem direita.
A Grande Marcha (30 km!) da terça-feira, 7, ilustra perfeitamente a natureza do movimento de maio. O que surpreende é a maturidade política e a capacidade de iniciativa dos manifestantes. Que diferença com as procissões de passos lentos a que as burocracias operárias nos tinham acostumado! Nos cortejos do PCF as pessoas são passivas, sem energia, apáticas. Vão à manifestação como se fosse ao cinema, das 6 às 8. Vão às ruas pela tradição, porque ainda se faz isso. Por isso as manifestações têm esse ritual insosso e arcaico das cerimônias nas quais já não se acredita. Nelas a ação direta, em todas as suas formas, já não é considerada o meio de vencer; ela é posta como suplementar nas batalhas parlamentares ou nas negociações no nível superior.
Recorrem “às ruas” suavemente para lembrar ao adversário que continuam sendo “representativos” e que têm tropas bem disciplinadas. Por isso seus cortejos têm essa lenta movimentação de gado que acaba de voltar do córrego. Nada disso aconteceu em maio. Os manifestantes contam com sua ação, e nada mais que ela, para conseguir que o poder dê o braço a torcer. A rua é seu principal campo de batalha. A manifestação não é um simulacro de ação de massas. Não é um formalismo, mas um instrumento real de combate. Por isso exige (e obtém) a participação ativa de todos a todo momento. As massas se fazem criadoras, responsáveis, exigentes. As melhores diretrizes de maio surgiram desses longos percursos, de peitos anônimos. O verdadeiro “serviço de organização” de maio quem faz é a massa de manifestantes. Os “serviços de organização” dos pequenos coletivos são perfeitamente incapazes de enquadrar um cortejo de 50.000 jovens. Os gestos de um serviço de organização de manifestação se aprendem logo. A formação em corrente, a linha de frente, a retaguarda, as correntes laterais, a transmissão das diretrizes, todas essas técnicas básicas difundidas pelos coletivos foram assimiladas com algumas demonstrações, e a massa estudantil as aplica “espontaneamente”. É bom lembrar a extraordianária mobilidade do cortejo; 50.000 manifestantes congregados no Campo de Marte puderam chegar à praça da Concórdia e aos Campos Elíseos pelo trajeto antes que as forças de segurança tivessem tido tempo de reagir.
A iniciativa das massas se manifesta finalmente no nível da autodisciplina que impõem a si. Os manifestantes negam a qualquer um o direito de desnaturalizar com sua atitude o sentido político da manifestação e reprimem “espontaneamente” todo ato de vandalismo, toda provocação suspeita, toda violência inútil. Sob o Arco do Triunfo entoam A Internacional e içam a bandeira vermelha, com grande dor dos conservadores. Mas afastam aqueles que querem dar ao sacrilégio um tom mais obsceno… Assim acontece em um período pré-revolucionário. As massas, segundo dizia Lênin, se tornam irreconhecíveis, e não há arma tão terrível como sua iniciativa liberada.
Engrossado sem cessas por novos manifestantes, na praça de l’Etoile, o cortejo não pode ser dispersado. Nas suas filas há muitos operários jovens. Com o novo e longo percurso, os manifestantes voltam ao Bairro Latino. Nas ruas de Rennes e de Assas acontecem novos confrontos, nada comparáveis de todos os modos aos violentos enfrentamentos do dia anterior.
Quarta-feira, 8 de maio: primeira tentativa de recuperação
A jornada da quarta-feira, 8 de maio, deixa gosto amargo nos militantes. L’Humanité se esquece subitamente da sua prosa injuriosa, fulmina a polícia e louva os estudantes. Surpreendida pela amplitude do movimento, a direção do Partido Comunista está decidida a assumir o controle. Com essa perspectiva, está claro que a brincadeira resulta inoportuna.
Para a quarta-feira às 18h tinha sido prevista uma plenária intersindical na Faculdade de Ciências. Os militantes achavam que poderiam fazer um balanço dos 3 dias de luta. O movimento devia colocar em debate o problema da sua estruturação pela base e da sua tarefa de propaganda entre os operários. Nas negociações entre sindicatos, a direção nacional da UNEF representava o movimento estudantil. Muito conciliadora, a CGT conseguiu habilmente que fosse aceita a sua linha. Os representantes sindicais maquinaram uma reuniãozinha no estilo das suas mais rotineiras tradições. Deviam se expressar nela os representantes das centrais sindicais (UNEF, FEN – Federação da Educação Nacional -, SNE-sup, CFDT – Confederação Francesa Democrática do Trabalho -, CGT, FO – força operária), personalidades universitárias de primeiro plano (Kastler, Monod), representantes do movimento 22 de Março, CAL, etc.
Pela manhã, Alain Geismar anuncia: “Esta noite dormiremos na Sorbonne”. À noite, no pátio interior da Faculdade de Ciências, se vê imediatamente que o PCF se recompôs. Reuniu tropas novas ao pé da tribuna, e seus militantes organizam em grupos de quatro o controle da assembleia. Está em marcha a primeira “operação recuperação”. Os “porta-vozes oficiais” do movimento se deixaram enganar. Durante todo o dia, os aparelhos de rádio das periferias estiveram retransmitindo o chamado de Geismer. E a numerosa tropa que ia atuar se encontra submetida ao interminável zum-zum-zum dos discursos burocráticos. Para o cúmulo do desastre, é iniciada uma negociação telefônica entre autoridades universitários e prêmios Nobel. Os manifestantes são convidados a terem paciência até que sejam mostrados os resultados. Para mantê-los ocupados, ocorre uma nova rodada de intervenções insípidas.
Como era de se esperar, as conversas não têm resultado. Às 19h30min, a plenária se transforma em manifestação. Pequeno incidente significativo: a quase totalidade dos permanentes comunistas da Federação de Paris se colocam espontaneamente à cabeça do cortejo, atrás da fila dos secretários do sindicato. O serviço de organização da UNEF detém, então, a manifestação e exige a volta dos burocratas às filas. Intervém Sauvageot. 10 minutos depois de tergiversar, os permanentes obedecem e são aclamados.
Recorre, então, o cortejo um breve percurso e por volta das 20h chega à praça Edmond Rostand. Os CRS obstruem o boulevard Saint-Michel. Em nome da UNEF, Claude Chisseray, dirigente da FER, apresenta a diretriz de dispersão. Durante todo o mês de maio, essa iniciativa lhe deixará uma má fama. Uma enorme decepção se abateu sobre a multidão. A noite da quarta-feira, 8 de março, atua como um verdadeiro soco no estômago. Posteriormente, ninguém consegue explicar o catastrófico abatimento que se apodera dos manifestantes. Os militantes têm a impressão de que tudo acabou. Aos seus olhos, o movimento acaba de sofrer uma derrota irreversível. Os aparatos sindicais o venceram. Depois de algumas inconveniências, vestiu a camisa de força das ações rotineiras. Voltou às formas integradas de luta. De novo parece escapar das massas dos estudantes, que já não reconhecem nele sua rebelião. Muito avançada a noite, centenas de manifestantes espalhados por todo o Bairro Latino em pequenos grupos de discussão ruminam sua amargura.
As declarações pessimistas de então eram sem dúvida excessivas. Muitos militantes aterrorizavam sua própria decepção. O movimento era muito profundo e muito vigoroso para se deixar afundar por aquela única manobra.
Mas, se naquele momento, levando em consideração a moderação estudantil, o poder tivesse cedido, é provável que os acontecimentos teriam seguido rumo muito diferente.
Felizmente, não cedeu. Peyrefitte não aproveitou a ajuda que lhe ofereciam os ‘processionários’ da quarta-feira. Não teve “o grande gesto de apaziguamento” que teria confirmado a desescalada. Acreditou que ia sair do apuro promentendo a imediata reabertura das faculdades. E ainda ia acompanhada a promessa por condições que a faziam análoga a uma capitulação sem quê nem porquê do movimento estudantil. Ao fazer isso, o ministro tirava sua força da manobra conciliatória dos burocratas sindicais. “O caminho da conciliação não terá êxito. A única arma que nos resta é a ação direta.” Essa foi a conclusão a que chegaram milhares de estudantes indecisos. 24 horas de reflexão: “Cortem a cabeça dos seus inimigos…”
No espaço de uma noite se dissiparam os vapores da amargura. A quinta-feira, 9 de maio, desde as 10h, reinava viva a agitação no Bairro Latino. Os estudantes queriam compreender o que havia acontecido e como poderiam voltar a pôr o movimento em marcha. Tomam os panfletos às mãos, se juntam diante dos cartazes. Em todas as esquinas se formam grupos de discussão. Atraídos pelo anúncio da reabertura das faculdades, os estudantes comparecem em massa. A aglomeração maior está na praça da Sorbonne, frente a um duplo cordão de guardas móveis. Espontaneamente começa a discussão. Às 14h surgem na rua Monsieur-Le-Prince, com os alto-falantes à tiracolo, Geismar, Sauvageot, Cohn-Bendit; este, em plena forma, toma a direção das operações. Daniel Cohn-Bendit é o que se chama um agitador nato. Peito forte, voz sonora, extraordinária presença física. Sabe como ninguém agrupar as massas e unir todas as partículas solitárias para formar uma coletividade operante. Tem sentido muito aguçado da provocação. Era possível inclusive dizer que examina todos os problemas sob o ângulo da provocação possível. No entanto, não é esse frenético e inflamado indivíduo que a imprensa traçou. Como Rudi Dutschke, Dany faz da provocação não a expressão dos seus complexos personagens, mas um instrumento político puro e temível. A provocação deve tirar o que é sagrado das categorias e das funções. É um laço lançado à autoridade e à hierarquia, que com suas reações revelam sua natureza opressiva, ao mesmo tempo em que se cobrem do ridículo. É uma arma incrível de crítica social e de educação das massas.
De todas as “figuras de maio”, sem dúvida Cohn-Bendit é a única de envergadura. Ele foi o primeiro a aproveitar os ensinamentos da experiência alemã. Sua ambição era criar uma SUS francesa. O Movimento 22 de Março, fundado pelos anarquistas e pela JCR, representava a primeira etapa da sua criação. Durante toda aquela semana de batalha, desempenhou um papel primordial, e principalmente na quinta-feira, 9, e na sexta-feira, 10 de maio, nas barricadas. Dominava perfeitamente os dados políticos do combate iniciado. Em todo aquele período, trabalhamos mão a mão.
“Queremos nos reunir para tirar o balanço da nossa ação e examinar o que poderíamos fazer em seguida”, diz Cohn-Bendit, “Nos dói muito ter de obstaculizar a circulação; desejamos vividamente discutir juntos no pátio da Sorbonne. Mas a polícia não nos deixa entrar. Por isso eu declaro este lugar uma grande sala de aula e lhes convido a se instalarem na calçada. Quem pede a palavra?”
Durante quatro horas esse teach-in se desenvolve diante de uma assembleia de milhares de estudantes convocados pela rádio. Como era de se esperar, o debate começa pelos acontecimentos do dia anterior. Geismar e Sauvageot fazem sua autocrítica. Chisseray tenta justificar sua chamada à dispersão. O ruim para ele é que ele acredita que se dirige a uma assembleia geral da UNEF e comete algumas impertinências. A partir desse momento, e apesar das vozes de Cohn-Bendit, já não poderá pronunciar uma só palavra. Decididamente, a massa estudantil já não é a mesma. A multidão se tornou consciente e ativa. Já não se deixa manipular. A ninguém concede o direito de aborrecê-la, insultá-la, louvá-la. Já não engole sentada, tão formal, as frases demagógicas dos oradores que a tomam como um rebanho. Intervém, contradiz, interrompe. Acabaram-se as reuniõezinhas mansas. Cada um está submetido agora à autocensura das massas.
Depois de Chisseray, Aragon sentirá isso dolorosamente. O PCF enviou o velho poeta para abrandar os estudantes. Não é o melhor embaixador possível? Há algum tempo Aragon tem fama de liberal. Quem não se lembra do seu “valente protesto” no caso de Siniavski e Daniel? Suas posições deveriam ser estimadas pelos estudantes. Veio levar-lhes uma mensagem de amizade. Sua presença deve selar a reconciliação do movimento estudantil com o partido comunista.
Mas já passou o tempo em que alguém saía do apuro com uma pirueta. Expressando a vontade da base, Dany pede tranquilamente explicações sobre a atitude do PCF quanto ao movimento. Ou Aragon não está de acordo com ela – e então deve dizê-lo – ou sim está – e então deve defendê-la publicamente. O velho começa a discursar, para sair pela tangente, arrancando vaias da multidão. “Cortem a cabeça dos seus inimigos”, dizia Trotsky, “não para ter ininimos sem cabeça, mas para mostrar ao mundo o quão vazias estavam.” Assim foi feito.
Às 17h começam as provocações da polícia. Comboios de guardas móveis sobem e descem o boulevard. Ao redor da plenária, os cordões da polícia são reforçados. Um rumor de ameaça surge entre as pessoas. “Informamos aos senhores oficiais que hoje não brigamos”, grita Cohn-Bendit, “É inútil nos provocar, porque não responderemos. Hoje vamos estudar o que faremos. Amanhã nos encontraremos como de costume, às 18h30min, em Denfert-Rochereau.”.
Plenária da JCR (Juventude Comunista Revolucionária) na Mutualité
À noite, a JCR se reúne na grande sala da Mutualité. Essa reunião está prevista já há algum tempo e tem um título profético: “A juventude, da Rebeldia à Revolução”. Os dirigentes dos movimentos estudantis dos principais países europeus devem tomar palavra nela. Daniel Cohn-Bendit propõe à JCR que abra sua plenária para todo o movimento e, depois das intervenções dos oradores anunciados, poderiam continuar e terminar os debates iniciados no boulevard Saint-Michel. Aceitamos a proposta.
Apresentada com um discurso de Alain Krivine, a plenária do dia 7 de maio teve papel principal no amadurecimento político do movimento. Escutando os informes dos delegados belgas, holandeses, italianos, espanhóis, alemães, os 4 ou 5 mil estudantes franceses, amontoados na sala, onde não cabe um alfinete, tomam consciência da dimensão internacional da sua luta. Ernest Mandel apresenta uma notável análise da rebelião estudantil nos centros imperialistas, fundada em uma nova apreciação do lugar que ocupa a força de trabalho intelectual no processo de produção. Enfim, todos os componentes do movimento estudantil expõem amplamente seu modo de ver o estado atual da luta e as perpectivas de futuro.
Daniel Bensaid, cofundador do 22 de Março, toma a palavra em nome da JCR. Expõe nossa análise do lugar que o movimento ocupa na luta de classes e insiste no problema da união com a classe operária e da ampliação da frente de luta. Fazendo o balanço da experiência do 22 de Março, convida todos os grupos de vanguarda a integrar o movimento. É preciso que os pequenos coletivos compreendam que o desenvolvimento da vanguarda depende da amplitude do movimento de massas e que, portanto, devem se empenhar em assegurar sua expansão. Não se trata de se fundir simplesmente ao movimento e desaparecer nele. Trata-se de abandonar a atitude de impor sua marca e seu selo em todas as ocasiões possíveis e ainda impossíveis às custas do movimento de massas. O 22 de Março demonstrou que os militantes que chegam de horizontes políticos diversos podem se entender sobre certo modo de ação, para além das suas divergências políticas. Não há vanguarda autoproclamada. O movimento presente é a prova da verdade, e cada um será julgado segundo os seus méritos. Já se verá quem são os revolucionários “de araque” e quem são os militantes de vanguarda.
De imediato, é preciso organizar o movimento em comitês de base abertos a todos os militantes. Os comitês se encarregarão da tarefa de propaganda política entre a população. Quando as uviversidades abrirem de novo, instalaremos nelas a “Universidade Crítica”, que não é uma ilhota de socialismo na sociedade, mas uma “base vermelha” de onde o movimento estudantil partirá para a conquista da vanguarda operária.
Daniel Cohn-Bendit, copresidente da plenária, abre o debate e se declara de acordo com Bensaid “salvo na questão do partido revolucionário”. Voltando em grande parte ao tema da integração no movimento de massas, pede aos pequenos coletivos que rejeitem o espírito de capelinha, no qual vê o ressurgimento das tradições estalinistas próprias do movimento comunista francês. Cabe ao movimento único de massas reunir na ação todos os grupos situados à esquerda do PCF. Esse movimento se organizaria na base, em comissões e comitês que elaborariam soberanamente sua linha de intervenção. O movimento 22 de Março tem a intenção de reocupar Nanterre na sexta-feira de manhã. A Universidade deve estar bloqueada enquanto um só militante, operário ou estudante, francês ou estrangeiro, continue preso.
Um dirigente da UJCml toma, em seguida, a palavra: “Clamam alguns que a Sorbonne deve ser para os estudantes”, diz, “Não é uma diretriz acertada. Nós dizemos que a Sorbonne deve ser para os trabalhadores. E inclusive vamos mais longe. Há quem pretende livrar a Sorbonne dos guardas móveis. Para nós, não é fundamental esse objetivo. Há um subúrbio operário, em Saint-Ouen, grandes quartéis de guardas móveis. Estamos dispostos a deixar a Sorbonne para os guardas móveis e transportar a Faculdade de Letras para seus edifícios em Saint-Ouen. Para nós, a Sorbora não é mais que um monte de pedras velhas, e a Faculdade de Letras estaria melhor em Saint-Ouen que no miolo da Paris burguesa.”
Nessa inconveniência está toda a icompreensão ml da política. Não, no dia 9 de maio a Sorbonne não é um simples “monte de pedras”, ocupado provisoriamente pelos guardas móveis. É um símbolo político que tende a se converter no ponto de referência das lutas de classes na França. Essa Sorbonne ocupada pela polícia simboliza toda a opressão que é a essência das relações sociais na sociedade capitalista. É o que está em jogo nessa batalha em que o poder está a cada dia mais isolado e desacreditado. Não, não é um erro gritar “A Sorbonne para os estudantes” e lutar com o paralelepípedo em mãos para expulsar as forças de segurança. Militarmente, é uma batalha sem perspectivas. Mas não se trata de uma batalha militar. Trata-se de uma batalha política. E politicamente, o desafio apresentado ao poder tem um valor exemplar, cujo alcance, no estado de tensão extrema em que se encontra a sociedade francesa, pode ser considerável. A Sorbonne é um “monte de pedras” para os filhos culpabilizados da grande burguesia. Para a massa dos trabalhadores, é um santuário inviolável. Por isso, sua ocupação pela polícia nos parece uma agressão escandalosa; a réplica estudantil, um valente ato de legítima defesa.
O responsável da UJCml faz, em seguida, o inventário dos perigos que cercam o movimento. Em ordem descrescente, está primeiro a social-democracia, com os trotskistas e suas marionetes, a direção nacional da UNEF, e depois as “teorias pantanosas” de Marcuse e Mandel, fraternalmente amalgamadas. A UJCml, longe de reduzir o movimento estudantil ao papel de força suplementar da classe operária, tem mais do que nunca a intenção de se colocar “a serviço do povo”. Porque se conhece o militante revolucionário pela sua capacidade de se conectar aos trabalhadores. E a intervenção acaba como havia começado: convocando o presidente Mao para uma reunião.
Christian de Bresson, secretário geral da FER, lhe sucede na tribuna. Preconiza a greve geral e a manifestação central da juventude, que deve assumir as direções sindicais. Para tal fim, convém criar em cada faculdade comitês de greve, federados em um comitê central de greve que dirija as operações. É preciso trabalhar pela continuidade da Organização Revolucionária da Juventude e, para isso, participar em massa da concentração de 3.500 jovens ao final de junho da Mutualité.
Para começar, o representante do PCMLF diz o contrário do seu colega da UJCml. Primeiramente rejeita a reunião com o presidente Mao, que para o outro parecia tão oportuna, e propõe outra que ele acha mais adequada. Em seguida, ironiza a diretriz de “servir ao povo”, própria de pequenos-burgueses apaixonados pelas mãos com calos, e assegura que os operários “marxistas-leninistas” se colocam, em contrapartida, a serviço dos estudantes. Desde segunda-feira, os operários do PCMLF fazem chamadas para se unirem aos estudantes nas ruas e aceitam estar em todos os combates. Também rejeita todo sectarismo: “Diante dos policiais, pouco me importa saber quem é trotskista, anarquista ou ‘marxista-leninista’”, proclama.
Depois intervém Jean-Louis Péninou, animador do MAU. “Felizmente para nós”, diz, “o governo não retrocedeu esta noite; porque nesse caso nós também retrocederíamos. Apesar da sua extraordinária capacidade de luta, o movimento deixou ver até que ponto era vulnerável. Enquanto não estivermos bem organizados, serão possíveis todas as recuperações e todos os compromissos aceitos em nosso nome. Não necessitamos de um Comitê Central de Greve; nas condições atuais compete à UNEF e à SNE-sup fazerem o papel de porta-voz e de centro coordenador do movimento. O que nos faz falta são comitês na base para organizar a unidade da base, na ação e sobretudo para a ação.” As discussões vão até a uma da manhã.
Desses debates, se depreende uma atitude comum que, no plano político, se define pela vontade de seguir até o fim medindo-se com o poder, com a esperança de abrir uma crise de importância na sociedade política francesa. No plano da organização, essa atitude se define pelo respeito à autonomia do movimento de massas, que não se trata de cobrir nem de encher de células próprias, mas de organizar na base temas de oposição radical à Universidade e dentro da linha já aplicada em Nanterre: “Da oposição à Universidade à oposição à sociedade burguesa.”
Nesses debates se afirma também a direção de fato do movimento: o 22 de Março, a JCR, o MAU, os ESU da direção nacional da UNEF, o SNE-sup. E, inversamente, a FER, por uma parte, e a UJCml, por outra, parecem cada vez mais corpos estranhos. Para a FER, o divórcio é definitivo. A partir de 10 de maio fará, consequentemente, o papel de catalisador político dos discentes. Quanto à UJCml, menos comprometida, conseguirá se reintegrar ao trem em marcha a partir do dia 15 de maio, quando o centro de gravidade das lutas, depois de o movimento estudantil haver desempenhado seu papel, passar da Universidade para as fábricas.
… E lutar
Se por culpa de “porta-vozes” muito independentes o movimento estudantil sofreu um grave retrocesso na quarta-feira, 8 de maio, na sexta-feira, 10, a situação se restabeleceu em grande parte. Era possível pensar tranquilamente em passar para uma fase superior do enfrentamento com o poder. A jornada do dia 9 permitiu efetuar a preparação política necessária. E, o mais importante, o ministro acaba de cometer uma nova série de erros enormes. Seus rodeios acerca da reabertura das faculdades agravam consideravelmente sua causa. A opinião pública julga severamente sua atitude. Depois da procissão do dia 8, em geral se esperava um “ato de boa vontade”, que chegou na forma de promessa… não cumprida, e de renovado vigor em condenar o movimento. “Se era para provocar, não poderia fazer melhor”, comprova o editorial de Combat (10/05/68). “Será necessário que haja muitas vítimas por consequência de batalhas para que o governo modifique sua posição?”, pergunta Le Monde (10/05/68). Novamente o movimento estudantil se encontra em estado de legítima defesa. O ministro obstruiu todo o caminho que não fosse o do enfrentamento. E os dirigentes estudantis sabem agora que podem fazê-lo cair.
Ao meio-dia, esparam uma delegação do SNE-sup e da UNEF na sede da CGT. Os sindicatos querem organizar uma manifestação comum. Foram os representantes das organizações estudantis que prepararam esse encontro e a manifestação das 18h30min.
É evidente que a data oportuna para a jornada de ação intersindical é a segunda-feira, 13 de maio de 1968. Se há manifestação, será necessário passar pelo Bairro Latino. O movimento estudantil virá com suas próprias diretrizes e suas bandeirolas e assegurará “paritariamente” a tarefa de organização.
Nas primeiras horas da tarde, começam as negociações. A CGT rejeita obstinadamente a data do dia 13 de maio, que julga muito política. A quarta-feira, 14, será o dia marcado. As modalidades concretas de organização serão determinadas depois. Um chamado da UNEF, do SNE-sup, da FEN da CGT e da CFDT é publicado em centenas de milhares de exemplares.
A manifestação de Denfert põe em debate, por sua vez, problemas espinhosos. Politicamente, cada um sabe que chegou o momento de redobrar os esforços. O ministro recriminou duramente todas as pessoas sensatas da França. O movimento estudantil pode voltar à ofensiva. Mas como? As propostas são discutidas: marchar até a Santé; mas é um caminho um tanto curto e para fazer o quê? Tomar de assalto a prefeitura, para ressuscitar o espectro da Comuna na consciência operária; mas tecnicamente não é tão fácil. Além disso, seria dar muita importância aos vereadores de Paris. Ir ao ORTF (Direção Rádio-Televisão Francesa), mas isso só serviria se se esperasse algum debate, o que implica preparação. Fazer um escracho no Ministério da Justiça, situado à praça Vendôme, risco que vale a pena. Seria atingir o alvo certo e pôr o governo entre a cruz e a espada. Finalmente, esse é o projeto adotado.
Durante o dia, milhares de estudantes secundaristas se manifestam em vários cortejos que atravessam a cidade. Às 17h se encontram na praça Denfert, onde os CAL fazem uma plenária. Desde as 16h30min já eram 7.000.
Às 18h30min, a praça está lotada. Em pé, em cima do leão de Belfort, Cohn-Bendit começa um debate à alemã sobre os objetivos e o percurso da manifestação. Os guardas móveis obstruíram as pontes. Não se pode ir diretamente à margem direita. O que fazer? Aonde ir? Os líderes estudantis vão ao microfone. Essa confrontação pública em que só se podem fazer ouvir os que têm alto-falante é uma paródia da democracia direta. O mau humor toma conta dos manifestantes. Finalmente, o cortejo se põe em marcha em direção à Santé. Ao passar o cortejo, dezenas de lenços se agitam nas janelas das celas. Os manifestantes param para cantar A Internacional e seguem até o Ministério da Justiça. O acesso às pontes está obstruído. As forças de segurança desviam o cortejo para o Bairro Latino. Às 20h30min passamos diante do palácio da Mutualité, onde a FER realiza uma plenária. Amontoados nos degraus do primeiro andar, os risonhos militantes veem passar o imenso cortejo. “O poder está na rua”, soltam alguns engraçadinhos… Às 21h, o cortejo sobe o boulevard Saint-Michel. A polícia obstrui o perímetro da Sorbonne. Até a praça Denfert o caminho está ostensivamente livre. Mas não se trata de voltar atrás. A manifestação se detém à altura do Luxemburgo. À frente, os responsáveis pelo movimento se perguntam qual será a continuação das operações. A solução é dada por Cohn-Bendit, que propõe ocupar o Bairro Latino, toda noite se necessário, até que todas as nossas reivindicações sejam recebidas. Propõe dividir o cortejo em múltiplos grupos de discussão dispostos ao redor da barreira policial. Aprovamos a perspectivas e soltamos a diretriz: “Sitiemos os sitiadores”. Os manifestantes se separam em grupos compactos e se colocam diante de cada cordão policial. Os militantes vão de grupo em grupo explicando o significado da ocupação:
O poder está em apuros, e esta noite podemos ganhar. Não voltaremos a nossas casas. Manifestemos até o fim. Não nos dispersemos sem sentença favorável. Assim exerceremos uma pressão direta sobre o governo. Agora, o poder tem a palavra. No Bairro Latino, 30.000 estudantes rodeiam a Sorbonne. Esperam a supressão das sanções e a saída das forças de segurança. O poder deve se pronunciar em função dessa situação nova, símbolo da luta que temos empenhado com o poder já há uma semana. Mas terá de se pronunciar imediatamente, e ao fundo. Não deixaremos mais espaço para tergiversar: se cede, vamos embora. Se não, ficamos. Se ataca, nos defendemos. Que isso fique muito claro. Por isso fica dada a ordem de desempedrar os paralelepípedos: em caso de ataque surpresa, temos que ter com o que responder… Ao mesmo tempo, há a ordem de não provocar nem reagir às provocações menores. Nossa tática não implica de nenhum modo o confronto a todo custo. 30.000 estudantes bloqueiam o coração de Paris. Essa “manifestação ilimitada” é um meio suficiente de pressão. Mas nossa tática pressupõe estar dispostos a aguentar, ou seja, decididos a responder. Isso é o que significa desempedrar.
Essas perspectivas não agradam a todos. Os manifestantes do PCF, principalmente, vão proclamando por todas as partes que faz tempo foi dada a ordem de dispersão. Em alguns lugares se opõem fisicamente que tirem os paralelepípedos. Há confrontos. E finalmente, os “comunistas” voltam para casa.
Significação das barricadas
Nesse momento, por volta das 21h30min, surge, não se sabe de onde, a verdadeira ação genial.
À espera de um possível encontro, os militantes amontoam os paralelepípedos na rua. Levando muito a sério a ideia de um “assédio”, alguns transformam essas reservas em munições de verdadeiras barricadas. Retrospectivamente, falou-se que houve barricadas desde o dia 3 de maio. Na realidade, as primeiras barricadas de verdade aparecem na noite do dia 10 para o dia 11 de maio. Até então, se enchiam as calçadas com todo tipo de obstáculos para bloquear a circulação, e se dispunham os carros em zig-zag para enfraquecer as munições da polícia. Jamais haviam sido construídas verdadeiras barricadas, de 2m de altura e defendidas por umas centenas de militantes bem decididos.
A ideia das barricadas foi uma dessas ideias inesperadas geniais que abundam nas massas em tempos de revolução. Repitamos que militarmente não valiam muita coisa. Os estudantes que construíram o campo fortificado da rua de Gay-Lussac eram uns pobres “técnicos da guerrilha urbana”. Eram umas barricadas sem pé nem cabeça. Atravessavam várias vezes de lado a lado uma mesma rua e dificultavam a mobilidade dos manifestantes. Uma delas inclusive obstruída uma rua sem saída.
Mas politicamente era uma ideia magnífica. Para o proletariado francês, a barricada era um símbolo cheio de reminiscências e ressuscita todo um passado de luta sem desfalecimento que enche os operários de nostalgia. Evoca espectros de 1848 e da Comuna, o mito da greve geral insurrecional e de ação direta, todas as façanhas da classe operária francesa, profundamente cravadas na sua consciência coletiva e saudosamente vivas na sua lembrança. Por trás das nossas barricadas tratávamos de imaginar as reações dos trabalhadores que escutavam nos seus rádios: “Ao redor da Sorbonne, os estudantes retiram os paralelepípedos e constroem barricadas… Verdadeiras barricadas, algumas delas já com vários metros de altura, surgem no Bairro Latino… O Bairro Latino se enche de barricadas… Os manifestantes arrancam as pedras com picareta… Em Paris já há um bairro insurgente… Não parece que as forças de segurança podem desocupar o centro da capital sem combates violentos… Várias barricadas parecem verdadeiramente intransponíveis… Dá a impressão que se vive em plena Comuna…”
Por outra parte, as barricadas multiplicam o vigor da pressão estudantil e sublinha a determinação dos manifestantes. “Materializam” sua vontade de ocupar o bairro custe o que custar, e fazem essa ocupação muito mais explosiva e embaraçosa. Dão aos estudantes uma carta principal para medir suas forças com o poder, que está mais do que nunca entre a cruz e a espada. Já não pode encontrar subterfúgios. Não há um terceiro caminho. Tem de escolher e já. Agora, por qualquer lado que olhe, a escolha será difícil. Se o poder cede, terá cedido à pressão das ruas. E mais: à insurreição. As barricadas multiplicam o custo político. As concessões do poder revelarão sua fraqueza frente às forças extremas de ação direta. Então, corre-se o enorme perigo de que outros imitem o movimento estudantil, de que outras categorias sociais aproveitem essas novas formas de luta, cuja eficácia todo mundo terá presenciado. Mas, se não cede, o poder terá que bater forte. Não pode tolerar que no coração de Paris surja um centro insurrecional. Tem de tirar as barricadas, tomar de assalto o imenso campo fortificado, fazer frente a milhares de jovens, estudantes universitários e secundaristas, operários etc., dispostos a resistir. Deverá aceitar a responsabilidade de desencadear as mais violentas batalhas de rua que aconteceram em Paris desde a Liberação. Terá de arriscar deixar centenas de feridos, talvez mortos. Mas a opinião pública está com os estudantes. Quais serão as reações a esse novo banho de sangue?
Esse é o dilema que o movimento estudantil acaba de colocar ao poder. Ou cede em toda a linha, e, ao fazê-lo, revela sua fraqueza real frente à ação direta, ou dá outro passo na escalada da repressão e levanta contra si quase a totalidade da população.
O governo caiu em uma armadilha. Faça o que faça, será uma catástrofe. Um vento de pânico bate nos altos escalões. As autoridades não sabem o que decidir e procuram uma solução milagrosa para evitar o enfrentamento que temem e a capitulação que não querem. Por instruções ministeriais, o reitor Roche convida os representantes sindicais para ir à Sorbonne “para ver em quais condições poderiam voltar a funcionar os cursos”. Ridícula insinuação. Faz tempo que esse tipo de concessões não corresponde mais às necessidades do momento. O que os manifestantes exigem é um compromisso sério, em que se estipule a libertação de todos os presos. Em nome dos representantes, Alain Geismar rejeita esse compromisso fraco. Em seguida se trava uma negociação radiofônica em público entre o reitor Chalin, emissário do governo, e Alain Geismar, porta-voz dos “insurgentes”.
Para Geismar, a primeira medida é o fim das sanções, e sugere ao reitor a ideia de que convença o ministro do Interior. O reitor aceita e marca a reunião para “dentro de dez minutos”. Depois de uma hora, sai com uma negativa, e os estudantes reforçam as barricadas.
À meia-noite começa o balé dos ministros. Louis Joxe, ministro da Justiça e primeiro-ministro interino, convoca uma conferência com Jacques Foccart, Peyrefitte, Michel Debré. Juntos, vão ver Christian Foucher, principal da polícia, e comentam um informe de Grimaud, prefeito da polícia de Paris.
Presos nas nossas redes, as autoridades se debatem e se põem nervosas. Mas a rede está muito bem-feita e aguenta. Será necessário escolher entre a agressão massiva e a capitulação total. Os senhores ministros são gente de segurança, e sua propensão natural os incita à repressão. Depois do espetáculo da sua confusão, decidem acabar com as barricadas.
Não insistiremos na batalha, da qual há muitos relatos e testemunhos. A resistência dos jovens estudantes e operários foi valorosa e tenaz. Contrariando o que se esperava, aguentaram até o amanhecer. Mas aquela noite se distinguiu pela extraordinária capacidade de iniciativa e de autodireção de que se pode orgulhar, mais do que nunca, a massa revolucionária. Em cada fase da luta surgiam da multidão militantes anônimos que realizavam perfeitamente as tarefas do momento.
Quem eram esses milhares de manifestantes que resistiram aos CRS até o amanhecer?
Na sua maior parte, tratava-se de militantes “não organizados”, simpatizantes da ação política por não quererem se render aos representantes do poder. A impetuosidade, o entusiasmo, o engenho desses combatentes inexperientes deram às jornadas de maio um caráter audaz e criativo, que as distingue das lutas anteriores. Além disso, nos pontos de maior perigo, estavam quase a totalidade dos militantes do 22 de Março e da JCR, de Voix Ouvriére, do PCMLF, do MAU, dos ESU e dos grupos anarquistas.
Perto da meia-noite havia chegado a FER, que saía da sua plenária, com as bandeiras vermelhas à frente. Ao passar, os estudantes aclamavam esse novo reforço. Infelizmente, não eram reforços o que chegava. À altura das primeiras barricadas, Claude Chisseray toma a palavra. Para espanto geral, o dirigente da FER exorta os manifestantes a saírem dali. Denuncia os “pequeno-burgueses” que se dedicam à jardinagem na rua de Gay-Lussac. Condena a operação barricada, que seria um gesto desesperado de pequeno-burgueses indignados. É o remate da política aventureira que dirigentes despreparados preconizam já há uma semana. Para a FER, não há mais de um caminho, que é obrigar as diretivas operárias que organizem uma resposta unida nas ruas. Daí sairia uma só diretriz: “Na segunda-feira, 500.000 estudantes e operários ao Bairro Latino.” Os que se esforçam em isolar o movimento estudantil da classe operária terá frente a história a responsabilidade da matança. Dito isso, os militantes da FER dão meia-volta e voltam para suas camas quentinhas.
A UJCml codena também os “trotskistas e anarquistas” que levam o movimento à carnificina. Sua direção política deu ordem de não participar da batalha. Os militantes ml se limitaram a assegurar a defesa das suas “bases vermelhas”, as escolas normais superiores. E as centenas de milhares de militantes que formavam o último quarteirão da rua Gay-Lussac se lembraram com certa amargura da sua recepção na rua de Ulm. Quando, perseguidos pela polícia, foram buscar refúgio, cansados, sem fôlego, na ENS, os ml os receberam, descansados e corados, lhes explicaram tranquilamente que a partir de então eles se encarregariam de dirigir as operações e lhes rogaram que deixassem suas “armas”. Detalhe horrível, alguns tiveram a indecência até de abrir uma banca de literatura e ir vendendo Servir le peuple de quatro em quatro.
O sectarismo é ainda mais cego que o amor. A UJCml e a FER não entendem que, nessa noite do dia 10 ao 11 de maio, o que estava em jogo era o destino do regime.
Às 6 da manhã, Daniel Cohn-Bendit dá a ordem de dispersão, estigmatiza as violências da polícia e pede às centrais sindicais e aos partidos democráticos que organizem uma grande manifestação em Paris na segunda-feira, 13 de maio. Nenhuma organização “de esquerda” poderá fugir dessa tarefa. Milhões de franceses estiveram toda a noite atentos aos relatos dos combates. A opinião ficou profundamente sacudida. As estações de rádio periféricas soltam uma enxurrada de comunicados em que condenam a atitude do poder.
O movimento estudantil acaba de conseguir uma brilhante vitória. Com sua ação exemplar isolou o governo, conquistou a opinião pública e obrigou os sindicatos e os partidos operários a lutar. À noite, a vitória é um grande triunfo. Às 21h35min, Georges Pompidou, primeiro-ministro, de volta do Afeganistão, solenemente recebe as reivindicações estudantis. Na segunda-feira, as faculdades voltam a abrir e “o tribunal de apelação poderá, de acordo com a lei, decidir sobre as petições de liberação apresentadas pelos estudantes condenados”.
Pela primeira vez em dez anos, a ação das massas vence o forte Estado gaullista. Umas dezenas de milhares de estudantes secundaristas e universitários e de operários jovens acabam de inflingir a ele sua primeira e dolorosa derrota. Essa façanha modifica profundamente o equilíbrio político. Algo essencial acaba de partir o coração do regime.