A razão golpeada

Ao ser posto em andamento o golpe palamentar, a razão golpeada ignorou as condições estruturais, sócio-históricas de formação da nação.

Luiz Fernando de Souza Santos 25 jun 2018, 13:44

O golpe contra o governo Dilma é uma construção que tem participação de uma conjuntura de ascenso de pautas da direita e de um Congresseo pronto para avalizar as mesmas e das escolhas feitas pela esquerda. Um dos antecedentes do golpe ”parlamentar-midiático”, como o batizaram, é o golpe na razão, particularmente aquela ligada a um espectro acadêmico de esquerda.

No início dos anos 90, com o colapso do Socialismo Real, intelectuais nas universidades brasileiras cuidaram de salvar a reputação e embarcaram na onda que anunciava a morte do pensamento de Marx e do marxismo. Dizia-se, àquela altura que chegáramos ao fim da história.

Currículos da graduação e pós-graduação, bem como os grupos de pesquisa, foram resstruturados para estarem em sintonia com os novos tempos. Muita leitura de Kant e neokantianos, Lyotard, Foucault, Deleuze, Edgar Morin, Boaventura de Sousa Santos, entre outros. Um mantra composto por palavras acompanhadas do prefixo “pós” passou a compor o jargão acadêmico.

Lembro de um diálogo em um aeroporto. Enquanto aguardava voo para Manaus, um colega professor me avistou e se aproximou para trocar umas palavras. Perguntou sobre minha pesquisa para a tese de doutoramento. Quando falei sobre a mesma, ele torceu o nariz e, de modo peremptório, qual um promotor ou juiz dos dias correntes, apontou que o “marxismo está ultrapassado”, que estamos em uma era pós-estruturalista e pós-moderna e na qual só há efetiva reflexão em Morin, Latour, Habermas ou Boaventura de Sousa Santos e similares. Não dei trela para o verdugo das ciências humanas. Todavia, este diálogo é ilustrativo do processo de golpe na razão.

Os desdobramentos de uma razão golpeada são nefastos. Quando apresentaram a Carta aos Brasileiros, a esquerda acadêmica viu aí o exercício de um razão comunicativa, hologramática. Já era uma razão à imagem e semelhança de uma política de conciliação de classes.

Quando as garantias de paz social num contexto de política de conciliação de classes se esfumaçou, com a crise de 2008, e vieram o ascenso de greves (particularmente na construção civil, em obras de megaoconstruções no âmbito do PAC) e as Jornadas de Junho de 2013, a razão golpeada já não era capaz de desenvolver uma reflexão crítica. Só conseguia balbuciar atordada: “fascismo”, “reacionarismo”, “conservadorismo”, “direita”, “coxinha”.

Ao ser posto em andamento o golpe palamentar, a razão golpeada acreditou na racionalidade do sistema de justiça brasileiro. Ignorou as condições estruturais, sócio-históricas de formação da nação. Como a tradição do pensamento social brasileiro crítico há muito fora deixado para trás como artefato ultrapassado, curiosidade de antiquário, os representantes da razão golpeada não sabiam mais do horror-pânico que as elites brasileiras devotam aos subalternos desde a colonização. E por não considerarem tal elemento estrutural e estruturante, a razão golpeada nao se deu conta de que o sistema de justiça brasileiro se ergueu tendo por pilar uma ordem social que tem ódio dos debaixo.

O sistema de justiça, bem como o Parlamento brasileiro, já estava azeitado para os interesses em disputa na crise econômica global que considera fundamental o desmonte dos direitos trabalhistas, previdenciários e humanos que posssam obstaculizar a financeirização da existência. Para acelerar esta agenda destrutiva, golpearam Dilma e jogaram Lula na prisão.

A razão golpeada denuncia a “seletividade da justiça” como se esta fosse uma invenção da “onda reacionária”. Se esquiva do debate sobre as condições estruturais e históricas desta seletividade. Só a vê como fenômeno relativo a Lula. Como a história lhe é uma eterna presentificação, não reconhece a história de perseguição e morte, fundada em aparato legal, de trabalhadores, negros, mulheres, juventude, indígenas etc. A razão golpeada não pode ultrapassar a presentificação, a mesmidade, pois renunciou aos exercícios de ser radical (de ir às raízes fundantes da materialidade das contradições da nação). Com suas referências intelectuais em torno do universo microscópico e sem história que não seja a história do detalhe no hoje, a razão golpeada não consegue ir além de pobres palavras de ordem contra o golpe parlamentar-midiático.

Ao se furtar ao diálogo com toda uma tradição de pensamento crítico, os membros da razão em foco já não sabem dos debates de Marx, no século de XIX, contra as robinsonadas. E por não sabê-lo, incorrem nos mesmo erros metodológicos da Economia Clássica, produzindo robinsonadas em pleno século XXI. Deformam as conexões mais importantes dos eventos que se propõem a analisar. Sem considerar, como assinalou Lukács, o desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimnto social, das lutas de classes, a razão golpeada passa longe dos problemas centrais, e se restringe a choramingar por suas personalidades políticas e a dirigir invectivas contra as prsonalidades políticas e do sistema jurídico que ciosamente aprofundam o golpe.

Ao se furtarem do marxismo e em favor de leituras do fragmento do real, os intelectuais da razão golpeada desconhecem as reflexões de Pachukanis sobre a mistifificação jurídica. Assim como as mercadorias se apresentam como fetiche, a dimensão das relações jurídicas no capitalismo também se apresenta de modo fetichizado. Dellagnol, Sergio Moro, Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Barroso, Rosa Weber, Facchin, entre outros, são personificações de relações jurídicas mistificadas. A razão golpeada não é capaz de avançar a crítica nesta direção, prefere o denuncismo individualizado, centrado nas referidas personalidades. Descola-se da crítica da estrutura social determinada pela exploração da força de trabalho que intensifica a extração de mais-valor em suas formas físicas e simbólicas mais violentas. O debate se reduz a um maniqueísmo entre as forças conservadoras políticas e jurídicas versus a força progressista que se expressaria em Lula. Debate mistificado e mistificador, que mantém intacto o sistema de desmonte, precarização, do mundo do trabalho.


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