Ernest Mandel e a questão nacional na Bélgica
Autor demonstra que, quando uma opressão nacional caminha junto a um desenvolvimento econômico desigual, a formação de uma nação se torna problemática.
Os marxistas francófonos belgas talvez se surpreendam: o dirigente trotskista Ernest Mandel (1923-1995) era un flamingant, no sentido original e objetivo do termo: alguém que, segundo o dicionário Petit Robert, “defende em matéria política, cultural e lingüística a limitação da influência da minoria francófona”. E, mais exatamente, alguém que toma a defesa das aspirações legítimas dos flamencos, durante muito tempo pisoteadas pela burguesia e pelo establishment político belgas /1.
Um militante flamingant
Este é um primeiro elemento que resulta do conjunto de artigos do dirigente da IV Internacional que publiquei em 2014, em colaboração com Gertjan Desmet, e cuja versão francesa acaba de aparecer com o título de Ernest Mandel, Nationalité et Lutte de Classe en Belgique 1958-1973 (Amsterdam 2015) /2. Mas esta recopilação não está circunscrita ao flamigantismo de Ernest Mandel: mostra o esforço teórico e prático que este desenvolveu para integrar a questão nacional flamenca e a luta do movimento valão numa estratégia anticapitalista. Mandel foi, no seio da esquerda na Bélgica, o único a fazer isso, enriquecendo assim o marxismo revolucionário pois a questão nacional deu e segue dando muitas preocupações ao movimento socialista.
Gertjan Desmet, historiador nos Arquivos do Reino, resgatou dois artigos do jovem Ernest Mandel (acabava de celebrar seu 16º aniversário em 1939), nos quais defende, como militante do Revolucionário Socialista de Anvers, as aspirações flamencas. Aspirações que, segundo Desmet, estarão presentes durante toda a vida de Mandel. Num desses artigos, Mandel toma a defesa de um certo Dr. Martens, um “ativista”, ou seja alguém que durante a ocupação de 1914-18, pretendia se beneficiar da pretendida política pró-flamenca do ocupante (la Flamenpolitik) para promover a emancipação cultural e política dos flamencos. De volta do exílio aos Países Baixos, Martens foi eleito membro da nova Academia de Medicina Flamenca, provocando um clamor de protestos entre os “patriotas” tanto de direita como de esquerda. O jovem Mandel explica que, com relação às aspirações flamencas, não se pode, desde um ponto de vista marxista, acusar este médico flamingant de ser traidor da pátria, sendo a “pátria” burguesa.
A formação social belga
A recopilação apresenta uma análise da formação social da Bélgica. Estado nascido em 1830, dominado por uma ínfima minoria burguesa e aristocrática de cultura francesa e que, ao contrário da política lingüística jacobina francesa, não proibia as línguas regionais. No entanto, não se fez nada para dar à maioria da população do norte a possibilidade de instruir-se, nem tornando possível a aprendizagem do francês e menos ainda criando escolas secundárias ou universitárias de língua flamenca. Flandes se converteu assim econômica e culturalmente na parte subdesenvolvida e desprezada do país.
O movimento flamenco, nascido por volta de 1840, estava dirigido principalmente pela pequena burguesia em seus diferentes componentes ideológicos. Em sua origem favorável à existência da Bélgica como nação, temia uma possível anexação pela França que teria levado a conseqüências mais nefastas ainda para os flamencos. Não foi senão mais tarde, depois de que o movimento socialista tivesse se negado a tomar uma posição clara e unívoca sobre a questão flamenca, quando o movimento caiu sob a influência do baixo clero e, logo, depois da Grande Guerra, sob a dos nacionalistas flamencos e da extrema-direita. Sublinhemos também que o nascimento do movimento operário cristão, majoritário em Flandes e em sua origem antissocialista, esteve igualmente favorecido pela atitude dos socialistas que compartilhavam o anticlericalismo liberal contra o flamingantismo. O rechaço do bilingüismo em Valônia pelos francófonos e uma parte do movimento operário valão, que no entanto exigiam a manutenção do bilingüismo em Flandes, contribuiu finalmente para o desenvolvimento antibelga do movimento flamenco.
Invocando a tese do “desenvolvimento desigual e combinado” , Mandel demonstra que, quando uma opressão nacional caminha junto a um desenvolvimento econômico desigual, a formação de uma nação (belga neste caso) se torna problemática. Este desenvolvimento desigual está, no entanto, cheio de surpresas. Se, por exemplo, a unificação da classe operária em Valônia, região caracterizada até os anos 70 do século XIX por um velho localismo e, apesar das lutas operárias, por um vazio político, levantou muitos problemas nos começos do auge industrial, foi em Flandes e precisamente em Gante, cidade industrial num deserto campesino, onde nasceu em 1885 o primeiro partido socialista, inclusive se mais tarde foi a Valônia industrial a que determinou em grande parte a política social a social-democracia belga. Outra consequência do desenvolvimento desigual foi o extraordinário auge do capital financeiro que iria dominar, pela primeira vez, um Estado europeu: a Bélgica se converteu num país imperialista, exportador de capitais cujos interesses iam da Rússia a China, do Congo ao Brasil. O poder deste capital, encarnado pelas holdings, entre as quais estava a tristemente célebre Société Générale de Belgique, que trará mais tarde resultados desastrosos para a economia valona e para a Bélgica enquanto nação: dividirá profundamente as comunidades flamenca e valona como conseqüência da grande greve do inverno de 1960-1961 na qual o próprio Mandel participou ativamente.
Reformas de estruturas anticapitalistas e federalismo
Até o final dos anos 1950, as holdings belgas “abandonaram” a indústria valona. Ante este perigo de desindustrialização e de paralisação consecutiva, o movimento sindical socialista, sob a direção do valão André Renard, antigo resistente às tendências anarcossindicalistas, exigia “reformas de estrutura” para salvar sua região. Mandel trabalhava então no gabinete de estudos do sindicato FGTB que estudou a questão das reformas. Ele mesmo preconizava no seio da tendência de esquerda do Partido Socialista Belga (PSB) que animava, reformas, não da estrutura capitalista da economia, mas reformas anticapitalistas ligadas a uma luta pela federalização da Bélgica.
Era uma tarefa difícil, dado que o grupo trotskista, pouco desenvolvido, trabalhava secretamente no seio da social-democracia; além disso, a tendência de esquerda do PSB era centrista e de nenhum modo revolucionária. O balanço deste entrismo não foi jamais feito, e não vou fazê-lo aqui. Correntes dogmáticas e sectárias acusaram Mandel de defender reformas estruturais capitalistas e trair assim uma possível revolução socialista belga. Ao fazer isso, não só super-estimaram em grande medida as possibilidades da grande greve, mas que também, atribuíram a Mandel um papel que este não teve jamais, nem podia ter. Acrescentamos à recopilação alguns artigos que esclarecem, com mais objetividade, a situação na qual o punhado de trotskistas belgas tiveram que militar, um comentário de antigos companheiros de Mandel na grande greve assim como uma história do movimento trotskista belga, escrita Rik Deconinck, historiador que trabalha no museu do movimento socialista belga AMSAB em Gante.
Federalismo socialista ou federalismo capitalista?
O federalismo contemplado por Mandel devia ser um federalismo imposto pelo movimento operário mediante a luta anticapitalista, na tradição do “Programa de Transição”, estratégia desenvolvida por Trotsky em 1938 na fundação da IV Internacional. Devia salvar a indústria valona dando a uma Valônia federal, de maioria socialista, seus próprios meios políticos para dirigir a economia, e permitindo a Flandes desenvolver-se no plano industrial. Esta estratégia abrigava evidentemente numerosos problemas.
Qual governo seria capaz de realizar um programa assim? Um governo social-democrata sob a pressão das massas operárias? Um governo operário defendendo uma política anticapitalista na perspectiva de uma tomada do poder? Como avançar rumo a esse objetivo? Como se coloca a questão do partido revolucionário? E, o que fazer em Flandes onde os trabalhadores de cultura católica eram majoritários? Mas antes de poder responder a estas perguntas é preciso começar. A questão central era a construção de um movimento político, à esquerda do centrismo, para levar o movimento operário à luta contra o regime burguês unitário.
Nesta perspectiva Mandel fundou, depois de sua exclusão do PSB em 1964, uma “Confederação Socialista dos Trabalhadores” (CST), composta de uma ala valona, uma ala flamenca e uma ala bruxelense. A vida da CST foi de curta duração. Produziu-se então a volta a uma organização trotskista unitária, a Liga Revolucionária dos Trabalhadores, que depois se converteu no Partido Operário Socialista (POS) e hoje em Liga Comunista Revolucionária (os flamencos preferem manter a sigla POS, em flamenco SAP). Esta organização não pôde rivalizar com o desenvolvimento do Partido do Trabalho belga de origem maoísta, hoje a principal organização da esquerdaradical.
A greve geral do inverno de 1960-1961
A grande greve de 1960-1961 não foi nem uma vitória nem uma derrota. Mas seu desenvolvimento nos dois lados da fronteira lingüística teve conseqüências que definem a Bélgica contemporânea: um Estado federal mas que segue sendo burguês, dominado por políticas neoliberais, políticas compartilhadas tanto pelos socialistas valões e flamencos, como pelos democratas-critãos e pelos nacionalistas flamencos, enquanto o movimento operário permanece na defensiva.
A greve foi quase total na Valônia, mas parcial em Flandes depois de que o episcopado chamou os trabalhadores cristãos à abstenção. Os trabalhadores valões se perguntaram então se era preciso esperar que a consciência de classe de seus camaradas flamencos se igualasse à sua (o que poderia durar anos) ou se havia que se lançar imediatamente, sem se preocupar com Flades, à luta por uma Valônia autônoma. Elegeram a segunda opção, o que deu nascimento ao Movimento Popular Valão (MPV), um movimento nacional de tipo proletário. Mandel chamou aos militantes da esquerda radical a participar nesse movimento – ainda que não o considerava revolucionário – porque era o único movimento de vanguarda que, apesar de seus defeitos, podia conduzir o movimento operário à ação anticapitalista. Combatia as derivas chauvinistas do MPV, ao mesmo tempo em que assinalava que se abster de participar nele em nome da pureza revolucionária, era deixá-lo nas mãos do reformismo e do nacionalismo. Inimigo de todo o sectarismo e bom discípulo de Lenin, Mandel recordava que o revolucionário russo condenava aos que invocavam uma ortodoxia assim: “Quem espera uma revolução social ‘pura’ nunca viverá para vê-la. Tal pessoa apregoa a revolução sem entender o que é a revolução. Não é mais que um revolucionário de palavra que não entende nada do que é uma verdadeira revolução” /3.
A democracia e o socialismo como sonho positivo
Em sua discussão sobre a questão nacional na Bélgica, Mandel mostra uma atitude extremamente democrática. Rechaça a idéia nacionalista flamenca que considerava (e segue considerando) Bruxelas como uma cidade flamenca, ainda que a grande maioria seja nela hoje francófona. Não se pode impor à população que se torne flamenca e fale holandês. Ao slogan nacionalista “Bruxelas, cidade onde os flamencos estão em sua casa”opôs “Bruxelas, cidade hospitaleira”, não só para os flamencos, mas para todo o mundo. Em contrapartida, defendeu em 1968 a “flamenquização”da Universidade Católica de Lovaina, então bilíngüe, o que alguns consideraram como uma forma de “purificação étnica”. A manutenção desse bilingüismo universitário estava imposto pelo episcopado sem nenhuma consulta aos estudantes ou ao corpo de professores, enquanto que a transferência da parte francófona para Valônia oferecia mais possibilidades de acesso ao ensino universitário à população valona. Era inclusive uma promessa feita pelo dirigente sindical André Renard, que não era nada cristão.
Mais insólito ainda, um artigo sobre a ordenação do território valão e o desenvolvimento urbano sob um regime socialista mostra um Mandel que, desconfiando do “socialismo de quartel”, defende a idéia de que o futuro socialista deve ser belo e atrativo.
Que unidade do movimento operário?
A Bélgica atual, em plena crise institucional, é um Estado federal, dominado pela capital, que pode inclusive se converter mais cedo ou mais tarde, se o partido NV-A de Bart De Wever consegue se impor, num Estado confederado. Cada região decide soberanamente sobre o que se chamam as “matérias pessoais”. Valonia e Flandes têm direito, cada uma por seu lado, a firmar acordos culturais com outros Estados. Os sindicatos operários, tanto cristãos como socialistas, estão divididos pela fronteira lingüística. A comunitarização cultural, colocada no movimento operário de antes da guerra por Otto Bauer, dividiu o movimento operário /4. Assim, o movimento que a seção belga da IV Internacional construiu nos anos 1970 no sindicato socialista de docentes para promover um sindicalismo democrático de luta de classes e que ligava as cidades de Anvers, Gante, Liége, Bruxelas e Mons, foi destruído pela regionalização do sindicato FGTB. Flandes e Valônia se convertem em regiões que se conhecem cada vez menos. As televisões francófonas ensinam muito pouco ou nada sobre o que ocorre em Flandes e vice-versa. Somente movimentos contra as políticas liberais, como o de dezembro de 2014, conseguem unificar esporadicamente os trabalhadores flamencos e valões, cristãos e socialistas.
A unidade do movimento operário na Bélgica é uma necessidade absoluta, não para promover uma Bélgica capitalista e monárquica ou inclusive somente unitária, mas para se defender contra os ataques neoliberais que se aproveitam da divisão do país para manipular e insuflar reações nacionalistas como em Flandes, enquanto que na Valônia o Partido Socialsita invoca a unidade belga em nome da defesa da seguridade social unitária, mas prossegue em realidade uma política de austeridade às custas das conquistas dos trabalhadores.
A questão de uma resposta unitária das duas comunidades, sem reivindicar apesar disso uma “desferalização”, pois não há recuo sobre esta questão, é hoje o problema crucial do movimento operário na Bélgica.
Mas, de qual unidade se trata e para fazer o que? Responder, como faz o Partido do Trabalho Belga, o partido mais importante da esquerda radical na Bélgica, declarando que a questão nacional não serve mais do que para dividir a classe operária da (e não na) Bélgica e pronunciando-se por uma Bélgica neo-unitária, é simplista e não leva em conta os aspectos de natureza ideológica de profundo impacto sobre o povo trabalhador, como o velho rancor dos flamencos quanto à opressão de tempos anteriores cuja responsabilidade tem a minoria francófona ou também a incompreensão da grande maioria dos francófonos em relação ao movimento flamenco na história do país. Seria voltar ao ponto de partida. “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, assinalava Marx.
Creio que, hoje, é necessário admitir que em Fla dês está se formando uma nação, ou seja o sentimento de que, para além das classes sociais, o povo tem a convicção de pertencer a uma comunidade orgânica,sentimento reforçado por este rancor latente em direção a tudo o que a Bélgica antiflamenca impôs durante mais de um século, assim como pela demagogia dos partidos nacionalistas. É algo que se pode deplorar, mas é preciso responder a esta situação impondo uma linha política concreta e não se contentando com vãos encantamentos sobre a solidariedade proletária ou sobre a unidade belga. A desaparição do movimento nacional valão, cuja base era proletária, complica as coisas. A Valonia atual vive sob a batuta de uma social-democracia que se tornou puramente social-liberal e belgicista, ainda que, aqui ou acolá, tenha sindicalistas que se interroguem sobre a oportunidade de se desapegar politicamente do PS social-liberal. O movimento socialista flamenco retrocedeu enormemente e segue vivendo na ilusão de que sua união unitarista e belgicista com a esquerda esquerda valona pode servir de muralha contra a direitização de Flandes. O cierto é, sem dúvida, o contrário. A esquerda radical flamenca deve formular uma resposta política a estes problemas nascidos da questão das nacionalidades na Bélgica.
Esta absoluta necessidade não será uma tarefa fácil, se levarmos em conta suas escassas forças. Só recentemente, e com muitas reservas, a esquerda radical rechaçou o caráter monárquico do Estado, quando inclusive a extrema-direita se pronuncia abertamente por uma república. Deixa-se assim uma reivindicação justa em mãos de uma direita das mais perigosas. Pretender de que se tratará mais tarde esta questão, uma vez vencido o capital belga, dá provas de uma atitude obrerista que se esquiva de um problema político parte integrante da Bélgica institucional. A esquerda na Bélgica, assim como o movimento operário cristão, tem raízes materiais e ideológicas profundas na Bélgica unitária, burguesa e monárquica. Não é fácil se livrar disso.
A Bélgica não é hoje, evidentemente, a de Ernest Mandel, mas a postulação metódica deste belga, flamenco poliglota, internacionalista e marxista, postulação na qual a luta de classes, os direitos das nações a se autodeterminarem e da democracia social formam uma unidade dialética, segue sendo válido. Espero que este livro dê alguns elementos para empreender uma discussão fecunda no seio da esquerda radical sobre a questão da existência futura da Bélgica e de seu movimento operário.
Tradução a partir da versão em espanhol traduzida pela VientoSur.