O giro do dervixe louvado: Mahmoud Darwish vive na sua poesia revolucionária

Há dez anos, a voz do palestino Mahmoud Darwish se emudecia, deixando ao mundo uma extensa obra poética que atravessou quase cinquenta anos.

André Massabki 9 ago 2018, 14:25

Se a oliveira se lembrasse de quem a plantou
O azeite seria lágrimas!
Sabedoria dos ancestrais,
Se lhe ofertássemos de nossa carne um escudo!
Mas a planície do vento
Não oferta aos escravos do vento cereais!
Arrancaremos com os cílios
Os espinhos e as mágoas… arrancaremos!
Para onde levaremos nossa desonra e nossa cruz!
E o universo prossegue…
Permaneceremos na oliveira em seu verdejar
E ao redor da terra como escudo!!
Nós amamos as rosas,
Mas amamos o trigo ainda mais.
Nós amamos a fragrância das rosas,
Mas mais puras são as espigas de trigo.
Protejam, pois, o trigo do tempo
De peito cravado,
Tragam a cerca vinda do centro…
Dos corações, e como pode ela ser rompida??
Segurem o gargalo das espigas
Como a empunhar uma adaga!
A terra, o camponês e a determinação
Diga-me: como podem ser derrotados…
Essa tríade
Como pode ela ser derrotada?1

Há dez anos, a voz do palestino Mahmoud Darwish se emudecia, deixando ao mundo uma extensa obra poética que atravessou quase cinquenta anos e uma vida dedicada à luta pela emancipação do seu povo, contra o apartheid empreendido pelo colonialismo sionista com a criação do Estado de Israel. Mesmo com a sua morte, as tensões e os conflitos produzidos na Palestina seguem até hoje, e apesar do recrudescimento da segregação imposta sobre os árabes palestinos em seu território, a disposição de luta de uma nova geração se faz presente, inspirada pelos esforços de Darwish, como artista e militante, pela paz entre os povos.

A vida do poeta praticamente se confunde com a história da Palestina após a criação de Israel, em 1948: Mahmoud Darwish, então com sete anos, e a sua família estiveram entre as centenas de milhares de pessoas expulsas das suas terras pelas milícias sionistas que viriam a conformar as Forças Armadas Israelenses, passando um ano no Líbano até regressar, já em território judeu. Ainda jovem, publicou os seus primeiros poemas em periódicos literários comoAl Jadid, do Partido Comunista Israelense, do qual depois seria um dos editores. E a sua carreira literária começaria a se destacar quando Darwish, em 1964, declamou o poema “Carteira de identidade”, um dos seus mais conhecidos, para um teatro lotado em Haifa. A afirmação da identidade palestina, evocada reiteradamente pelo famoso verso “Sajjil: ana ‘arabi!”, rendeu ao poeta aplausos da plateia e uma prisão por “perturbação à ordem”, dando-lhe projeção internacional no cenário literário engajado.

A partir de então, a obra poética de Darwish foi se intensificando, sempre acompanhando a sua trajetória militante e as guerras e batalhas envol vendo árabes e judeus em Israel. O seu ingresso na Organização pela Libertação da Palestina, então uma federação de diversas forças de esquerda que adotavam táticas de guerrilha, em 1973 levou ao seu exílio para vários países, como Egito e Estados Unidos, onde trabalhou como editor-chefe em jornais literários até a morte, além de escrever a sua poesia. Desde o início, Darwish sempre se colocou como uma das principais lideranças da OLP, chegando a ser eleito para o seu Comitê Executivo em 1987, ao mesmo tempo que manifestava divergências com boa parte da direção, em especial com o Fatah, tendência majoritária liderada por Yasser Arafat, e a sua estratégia de conciliação de classes. Os Acordos de Paz de Oslo em 1993, firmados entre a OLP e o Estado de Israel, que deram origem à Autoridade Palestina em Gaza e Cisjordânia, marcaram a ruptura de Darwish com a organização, uma vez que os Acordos não asseguraram a criação de um Estado palestino como tampouco freou a política ilegal de ocupações israelenses em territórios árabes. Oslo significou, de fato, uma troca de favores entre as partes, tendo a OLP o direito de oficialmente representar o povo palestino, com a condição de reconhecer o Estado de Israel tal qual ele está estabelecido; uma verdadeira pá de cal para aquelas e aqueles que participaram da Primeira Intifada.

A poesia de Mahmoud Darwish se nutriu dos fatos históricos da Palestina, seja o legado mítico dos seus antepassados, seja os conflitos do seu próprio tempo, não à toa o poeta em si é tido por muitos como um símbolo nacional do povo palestino e do seu anseio por autodeterminação. Os versos da sua juventude remetem diretamente às convulsões sociais e políticas na sua terra natal, de forma que poemas como o já citado “Carteira de identidade”, “Sobre os desejos”, “Voz e açoite” etc. são a imagem não de um, mas de toda uma nação desterrada que se levanta contra a opressão, em tom quase romântico em meio a rimas, em reverência à tradição poética em árabe. Ao longo dos anos, contudo, a poética darwishiana parece seguir a melancolia crescente dos seus irmãos após diversas derrotas contra o sionismo, alicerçado por potências imperialistas como os Estados Unidos, e as traições da direção da OLP à luta por um Estado palestino, a ponto do entusiasmo jovial se converter em reflexões na maturidade, voltadas à própria subjetividade angustiada, que busca novas formas para expressar as mudanças vividas. Versos mais livres, então, surgem, não raro prosados, indo mais fundo na história do povo, da terra, como em “Eu sou José, papai”, uma releitura do mito do profeta José de Egito, venerado por judeus, cristãos e muçulmanos, cujos irmãos o venderam como escravo por inveja do seu dom divino; José é o povo palestino atacado pelos israelenses, que Darwish considerava um povo irmão, confundido pelo sionismo e o seu projeto colonial e segregacionista. E em um ato de desespero, apela ao pai – provável alusão à OLP –, que nada poderia fazer por ele.

O que se vê é um Darwish que, em meio às constantes adversidades, em vez de abrir mão das suas convicções revolucionárias, busca reafirmá-las inovando a sua obra poética como forma de superar as derrotas do passado; apegar-se ao passado, em outras palavras, seria joga a si mesmo no lixo da História junto dos traidores, tanto sionistas quanto da OLP. Mahmoud Darwish incorpora com maestria a máxima árabe “paz entre as aldeias e guerra aos senhores” e identifica a classe dominante, a burguesia em todos os países, como inimigo de todas as nações oprimidas, divididas em prol da exploração.

Mahmoud Darwish escreveu poesia e lutou pela emancipação da Palestina até o fim da vida, em 2008. E assim como o seu maior poeta, o povo palestino mantém-se perseverante pelo direito à terra perdida, liderado por jovens militantes como Ahed Tamimi, presa ao enfrentar soldados israelenses, e uma rede de solidariedade vem se formando dessa geração, que não teme o cerco doapartheid na sua terra por Netanyahu nem o silêncio do Fatah e demais direções traidoras. Perseverantes como o cacto na secura do deserto, permanecem construindo a revolução, seguindo o giro do poeta-dervixe, louvado pela obra e vida dedicada a mudar o mundo.


1 DARWISH, Mahmoud. “Sobre a perseverança”. In: A terra nos é estreita e outros poemas. São Paulo: Edições Bibliaspa, 2012 (trad. Paulo Farah).


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