Libertadores da América ou a tragédia da dependência
A final da competição ser disputada em Madri serve como metáfora da vida social do continente sul-americano.
Não são poucas as análises que buscam identificar o nascimento do realismo fantástico enquanto gênero literário latino-americano às condições objetivas da vida social da região. De fato, por vezes temos a impressão que a própria realidade de nosso continente parece transcender o real, deixando atônitos os habitantes deste pedaço de terra que um dia já foi chamado de Novo Mundo.
O absurdo da vez não diz respeito às idas e vindas da política burguesa stricto sensu em algum de nossos países, ainda que, neste quesito, exemplos não faltem no Brasil ou alhures. Contudo, como era de se esperar, não é menos verdade que o caso em questão esbarra e é transpassado pelas tétricas tomadas de decisão de parte de nossa elite dirigente acastelada ora em gabinetes governamentais, casernas ou diretorias de clubes e associações futebolísticas.
O fato se conhece: a final da Copa Libertadores da América de 2018, a ser disputada entre os clubes argentinos Boca Juniors e River Plate, após ter seus jogos adiados por três vezes, será decidade em local fora da Argentina. Se o absurdo não bastasse, as autoridades envolvidas no escândalo acabam de escolher como palco do confronto o estádio Santigo Bernabéu, em Madri.
Os humanos são seres envolvidos por símbolos, e o significado emblemático de tal acontecimento dificilmente poderia ser maior. Trata-se, afinal, do maior torneio do esporte mais popular do continente, em vias de ser disputado entre os dois clubes de maior rivalidade da Argentina e, quiçá, da própria América do Sul.
Numa espécie de corrida regressiva contra si mesmo, a Conmebol conseguiu enfim quebrar seu próprio recorde no quesito contradição simbólica, título que havia obtido a duras penas com a vinculação da marca de um banco espanhol ao nome do torneio que leva consigo a memória dos líderes dos movimentos de libertação da América Hispânica. Se não bastasse o Santander, que durante anos ironicamente precedeu o título do torneio, os mandatários da Confederação Sul-americana de Futebol optam por realizar a maior final de todos os tempos da Libertadores da América naquela que foi a antiga capital do Império Espanhol. Simon Bolívar e San Martín chacoalham em seus túmulos.
Da simpática região portenha de Nuñez, área que divide suas atenções entre as partidas semanais do gigante estádio à vida no campus da maior universidade do país, a partida é despejada no rico e árido bairro do norte da capital espanhola, conhecido pelo nome de Hispanoamérica. O mesmo estádio do Real Madrid que traz em seu nome homenagem a antigo cartola, ex-soldado franquista na guerra civil espanhola, que, uma vez presidente do clube, se notabilizou pela associação do time merengue ao regime do general Francisco Franco. Motivos de repulsa à partida a ser disputada no próximo dia 9, portanto, são o que não faltam.
Numa intrigante narrativa local, uma das maiores finais de todos os tempos do torneio, por livre iniciativa de seus próprios organizadores, é levada a ser disputada fora de seu continente. As datas inicias, firmadas no início da competição são, em primeiro lugar, alteradas por força da dinheirama das tevês. Das tradicionais quartas-feiras, as partidas são deslocadas para dois finais de semana. O primeiro duelo, na casa do clube azul, é adiado por uma tempestade retumbante que alaga o gramado. Ânimos à flor da pele são obrigados a esperar o dia seguinte. No jogo de volta, não menos frustrações, o clube azul, ao adentrar em seu ônibus as redondezas do estádio, é alvejado por torcedores rivais, em ataque que fere parte de seu plantel. Após momentos de indefinição, a confederação chega em comum acordo e decide adiar a partida para o dia seguinte. No domingo, enquanto torcedores vermelhos já se acomodavam em seu estádio, o time azul solta nota manifestando a incapacidade de seu time em disputar a partida. O jogo é novamente adiado, agora indefinidamente. Na terça-feira última define-se que a final deveria ser disputada, mas longe de Buenos Aires em local fora da Argentina. Após quase uma dúzia de cidades se oferecerem a sediar o evento, dentre opções mais ou menos coerentes, como Assumpção, Rio de Janeiro, São Paulo ou Miami e Doha, no Qatar, a cartolagem deu, nesta quinta, sua palavra final sobre a realização da partida na Espanha.
O primeiro impulso passa a ser indagar como pode ter sido possível que o esquema de segurança da segunda partida tenha permitido que o ônibus do Boca pudesse ser colocado em situação de tão fácil abocanhamento pelos torcedores rivais. O jornalista Ernesto Tenembaum, contudo, nos ajuda a entender como o escândalo deve ser compreendido a partir de um cenário de crise de autoridade em um país. Lá como cá, os governantes argentinos guardam vínculos precoces com líderes do crime organizado, num emaranhado narcopolítico que tem as torcidas organizadas como ator fundamental. Partícipes do mercado de drogas, a atuação das chamadas barras bravas, indiscutivelmente violentas, são encobertadas pelos poderes constituídos. Lideranças de torcidas retroalimentam o poder de cartolas que, por sua vez, se emaranham à política tradicional. Afinal de contas, não é demais lembrar que empresário Mauricio Macri, atual presidente da República argentina, consagrou-se na política após 12 anos presidindo o próprio Boca Juniors.
Às chuvas, trovoadas, e ataques rodoviários, o caldo de indefinição de datas e locais para a partida a ser realizada é também composto pela realização da cúpula do G20 entre 30 de novembro e 1 de dezembro em Buenos Aires. Icônico encontro das instituições de governança global pós-crise de 2008, o evento, ao ajudar a embaralhar a definição da partida aqui discutida, ganha ainda mais contornos provocativos aos olhos do cidadão do continente.
Afinal, como acreditarmos que a capital portenha pode ter dinheiro e coordenação para receber vinte dos líderes mais poderosos do planeta e não ser capaz de garantir a realização de um mero evento esportivo em seus domínios? Aqui, se compararmos ao caso da Copa de 2014, quando vimos as cidades brasileiras serem facilmente sitiadas, tendo parte de seus territórios urbanos submetidos a leis e padrões de governamentabilidade supranacionais com fins a realização de um evento esportivo organizado por corporações e instituições transnacionais, os sinais parecem ser trocados. Regiões urbanas inteiras seguem sendo cercadas, impedido a circulação de seus próprios habitantes, sob modos de racionalidade governamental que ferem nossas soberanias nacionais. A única diferença é que, agora, ficamos também com o prejuízo de, em troca, não haver futebol algum.
Incrédulos, os sul-americanos assistem perturbados à finalização da trama nefasta. Como é possível a final do Superclássico ser disputada fora de Buenos Aires, a quem mais o assunto dizia respeito? Como ser jogado para fora da Argentina o confronto de maior rivalidade do país? Como é possível que a disputa para decidir o melhor da América do Sul seja feita, enfim, fora de seu continente? Me aventuraria a dizer que é como se a final da Copa do Mundo de futebol fosse disputada em Marte, mas mesmo esse cenário me pareceria menos desatinado, uma vez que nosso planeta não guarda com aquele nenhum passado de relação colonial.
A história do marxismo latino-americano é, em parte, a história da construção de uma teoria e prática revolucionárias capazes de compreender a natureza dos vínculos específicos deste continente com a história e o desenvolvimento do capitalismo nos países centrais – Europa e Estados Unidos. Não menos discutidas foram as necessidades e desafios da construção de nações autônomas que, uma vez libertas das amarras coloniais, ainda se viam envoltas por relações materiais que mantinham a dependência delas com os antigos impérios. São fenômenos que, antes de simplesmente organizar o funcionamento dos países latino-americanos desde fora, ser articulam com estruturas e agentes internos a eles, em processo que resulta em um novo tipo de dominação. A influência externa ainda está presente, por certo, mas ganha novos contornos ao dispor da agência das classes dominantes dos próprios países latino-americanos que, no limite, são também beneficiarias dessa estrutura. A reunião entre os mandatários da Conmebol do Boca Juniors, do River Plate, e da Associação do Futebol Argentino, na terça, e a costura da decisão final com os representantes da Federação Espanhola de Futebol e do Real Madrid, na quinta, após sugestão que a partida fosse disputada na Europa pelo presidente da FIFA, Gianni Infantino, poderiam servir de dois belos retratos imagéticos à teoria. É como se, numa metáfora, fossemos nós mesmos incapazes de lidar com as coisas que aqui acontecem. Impotentes de realizarmos a solução de nossas próprias contradições, somos mais uma vez empurrados, numa espécie de espiral infinita, a um desenlace que reafirma nossa heteronomia.
A vida política, econômica, cultural e esportiva (nesta semana mais do que nunca) de nosso continente segue dando numerosos e lastimáveis exemplos de como as questões levantadas por esta problemática presente no seio da teoria revolucionária sul-americana permanecem urgentemente atuais.