Por que O Capital de Marx ainda importa

Em entrevista, geógrafo britânico esboça uma leitura da contemporaneidade a partir de conceitos-chave d’O Capital.

Daniel Denvir e David Harvey 24 nov 2018, 14:08

Os autores clássicos nas Ciências Humanas assim são denominados por suas obras conterem apontamentos teóricos que, mesmo décadas após serem desenvolvidos, seguem tendo validade na análise de fenômenos contemporâneos. Não é diferente com Karl Marx, o percursor do materialismo dialético que, ainda no século XIX, desenvolveu um arcabouço analítico que permitiu a sucessivas gerações de militantes, políticos e intelectuais compreenderem e agirem sobre a realidade social em que estavam inseridos.

Sendo assim, neste ano em que se celebra o bicentenário de nascimento de Karl Marx e mais de um século e meio depois da publicação do primeiro volume de seu O Capital, voltar à compreensão de alguns dos conceitos ali elaborados se mostra enormemente oportuno e necessário.

É a partir dessas constatações que o pensador britânico David Harvey[1] vem dedicando os últimos anos de sua vida acadêmica a vídeoaulas e livros que se propõem a destrinchar as passagens dos inúmeros capítulos contidos nos três volumes dessa obra prima do marxismo.

Na entrevista a seguir, conduzida por Daniel Denvir para a revista estadunidense Jacobin, Harvey esboça uma leitura da contemporaneidade a partir de conceitos-chave d’O Capital. Avançando em uma análise que busca jogar luz à relação entre a política e a economia, o geógrafo nos fornece elementos ao esclarecimento de fenômenos que, se à primeira vista podem parecer enigmáticos, tornam-se mais compreensíveis uma vez analisados sob a ótica do marxismo. Em tempos de eleição de Jair Bolsonaro e suas posições reacionárias, finalmente, a entrevista a seguir pode servir à localização de tal acontecimento dentro de um movimento mais geral e abrangente, que diz respeito à dinâmica de acumulação do capital no capitalismo global pós-crise de 2008.

Daniel Denvir – O senhor tem dado aulas sobre O Capital há muitos anos. Trace um breve panorama sobre os três volumes.

David Harvey – Marx é muito detalhista de modo que às vezes parece difícil ter uma noção exata sobre o que é a concepção geral d’O Capital. Mas na verdade é simples. Capitalistas começam o seu dia com alguma quantidade de dinheiro, vão ao mercado e compram algumas mercadorias, como meios de produção e força de trabalho, e os colocam em movimento em um processo de trabalho que produz novas mercadorias. Essa nova mercadoria é vendida por dinheiro acrescida de lucro. Depois, o lucro é redistribuído por vários caminhos, na forma de juros e renda, e volta a ser aquele dinheiro que inicia o ciclo de produção novamente.

Trata-se de um processo de circulação. Os três volumes d’O Capital tratam dos diferentes aspectos desse processo. O primeiro trata da produção. O segundo, da circulação e do que chamamos de “realização” – a maneira como a mercadoria volta a se converter em dinheiro. Já o terceiro trata da distribuição – quanto vai para o proprietário, para o financiador e para o comerciante antes que tudo isso volte para o processo de circulação.

Isso é o que eu tento ensinar, de modo que as pessoas entendam as relações entre os três volumes d’O Capital e não se percam completamente em algum dos volumes ou partes deles.

O senhor é diferente de outros acadêmicos marxistas em alguns aspectos. Uma das maiores diferenças é que você presta muita atenção aos volumes II e III, além do primeiro, enquanto muitos acadêmicos marxistas concentram seus interesses principalmente no primeiro volume. Por quê?

Eles são importantes porque isso é o que diz Marx. No volume um, ele diz basicamente “no volume I eu trato disso, no volume II eu trato daquilo e no volume III eu trato daquela outra coisa.” É evidente que Marx concebia a totalidade do processo de circulação. Seu plano era destrinchar as três fases desse processo nos três volumes. Portanto, eu apenas sigo o que o próprio Marx dizia estar fazendo. No entanto, é claro, há o fato de que os volumes II e III não foram terminados por ele, de modo que não são tão satisfatórios quanto o volume I.

Outro problema é que o volume I é uma obra-prima, enquanto os volumes II e III são mais técnicos e difíceis de acompanhar. Portanto, eu entendo porque, se as pessoas quiserem ler Marx de certa forma por prazer ou diversão, elas preferem se concentrar no volume I. Mas eu digo “não, se vocês realmente querem entender qual a sua concepção sobre o capital, vocês não podem tratá-lo como se fosse apenas um processo de produção. É sobre circulação. É sobre levá-lo ao mercado, vendê-lo e então distribuir seus lucros”.

Uma das razões pelas quais isso é importante é que precisamos entender essa constante dinâmica de expansão que conduz o capitalismo – é o que chamamos de “mau infinito”, para citar Hegel.

O que é esse “mau infinito”?

A ideia de “mau infinito” está no volume I. O sistema deve expandir-se, pois se trata de gerar lucro, de criar o que Marx chama de “mais-valia” e depois reinvestir essa mais-valia para que crie ainda mais mais-valia. Portanto o capital está em constante expansão.

E o que acontece é o seguinte: se se cresce 3% ao ano, para sempre, chega-se a um ponto em que a quantidade de expansão necessária é absolutamente gigantesca. Nos tempos de Marx, havia muito espaço no planeta para que o capital se expandisse, mas hoje estamos falando de uma taxa de crescimento de 3% com tudo que está ocorrendo na China, sul da Ásia e América Latina. O problema aumenta: para onde ir para continuar a expansão? É aí que surge o problema do mal infinito.

No volume III, Marx aponta que talvez o único meio para manter a expansão seja a expansão monetária. Porque com dinheiro não há limite. Se falarmos em usar cimento ou algo assim, há um limite físico sobre quanto você pode produzir. Mas com dinheiro você pode apenas acrescentar zeros às reservas mundiais.

Se você olhar o que foi feito depois da crise de 2008, verá que foram adicionados zeros à reserva de dinheiro por meio de algo chamado “flexibilização quantitativa”. O dinheiro voltou para o mercado de ações e transformou-se em bolhas de ativos, especialmente no mercado imobiliário. Agora nós nos encontramos em uma estranha situação na qual, em qualquer região metropolitana que visitei no mundo, há um grande boom na construção civil e nos preços dos ativos de propriedade – tudo isso alimentado pelo fato de que dinheiro tem sido criado e não se sabe para onde enviá-lo a não ser para especulação e ativos financeiros.

O senhor é formado em geografia, e para o senhor a descrição de Marx sobre o capitalismo é basicamente sobre questões de tempo e espaço. Mas para o dinheiro e para o crédito essas questões não existem. Explique então por que esses dois aspectos, tempo e espaço, são tão importantes.

Por exemplo, a taxa de juros faz um desconto para o futuro.
E o empréstimo é uma hipoteca para o futuro. A dívida é um crédito sobre a produção futura. Portanto o futuro está hipotecado já que precisamos pagar as nossas dívidas. Pergunte a qualquer estudante que deve $ 200 mil: seu futuro está empenhado porque eles precisam pagar suas dívidas. Essa hipoteca do futuro é uma parte muito importante d’O Capital.

O problema do espaço material vem à tona porque, quando se começa a expansão, há sempre a possibilidade de, se você não pode continuar crescendo em um dado espaço, levar seu capital para outro lugar. A Inglaterra, por exemplo, estava produzindo muita mais-valia no século XIX, de modo que boa parte dela ia para a América do Norte, uma parte para a América Latina e outra para a África do Sul. Portanto, há um aspecto geográfico nisso.

A expansão do sistema refere-se ao que eu chamo de “estabelecimentos espaciais”. Suponhamos que você tenha um problema: há capital em excesso. O que fazer com isso? Bem, você tem um estabelecimento espacial, o que significa que você pode sair e construir algo novo em outro lugar do mundo. Se há um continente “despovoado” como a América do Norte no século XIX, então existem vastas regiões para onde é possível expandir. Mas agora a América do Norte está bastante coberta.

A reorganização espacial não é simplesmente sobre expansão. É também sobre reconstrução. Houve desindustrialização nos Estados Unidos e na Europa e reconfiguração de algumas áreas por meio de desenvolvimento urbano, de modo que os moinhos de algodão de Massachusetts transformaram-se em condomínios.

Agora estamos ficando sem tempo e espaço. Esse é um dos grandes problemas do capitalismo contemporâneo.

Anteriormente o senhor falou sobre o futuro estar sendo hipotecado. Esse termo é muito aplicável quando se trata de dívidas imobiliárias, obviamente.

Por isso eu acho o termo “hipotecado”[2] tão interessante. Milhões de pessoas perderam suas casas na crise. Seu futuro foi encerrado [foreclosed]. Mas, ao mesmo tempo, a economia da dívida não acabou. Você poderia imaginar que depois de 2007-2008 houve uma pausa na geração criação de dívidas. Porém, houve na verdade um enorme crescimento da dívida.

O capitalismo tem nos levado cada vez mais às dívidas. Isso deveria nos preocupar. Como isso será pago? E por quais meios? E nós vamos parar de criar mais e mais dinheiro que agora não tem mais para onde ir a não ser especulação e ativos?

Isso é o que acontece quando passamos a construir coisas para as pessoas investirem e não realmente para morarem. Uma das coisas mais impressionantes da China contemporânea, por exemplo, é que há cidades inteiras que já foram construídas, mas ainda não foram habitadas. Mesmo assim, pessoas as compraram já que são um bom investimento.

É precisamente essa questão do crédito que o levou a emprestar a frase de Jacques Derrida “a loucura da razão econômica”. Coloquialmente, loucura e insanidade são invocadas para estigmatizar ou patologizar indivíduos com doenças mentais. Mas o que Marx nos mostra, e o que o sou livro nos mostra, é que o sistema está insano atualmente.

A melhor medida disso é olhar para o que acontece em uma crise. O capital produz crises periodicamente. Uma das características de uma crise é que você tem excedentes de trabalho – pessoas desempregadas, sem saber como fazer para sobreviver – ao mesmo tempo em que você tem excedentes de capital que não parecem serem capazes de encontrar um lugar para ir de modo a terem uma taxa de retorno adequada. Você tem esses dois excedentes lado a lado, em uma situação onde a necessidade social é crônica.

Precisamos colocar capital e trabalho juntos para criar coisas atualmente. Mas você não pode fazer isso, porque o que você quer criar não é lucrável, e se não é lucrável então o capital não o fará. Ele faz uma greve. Então nós acabamos com excedentes de capital e excedentes de trabalho, lado a lado. Esse é o pico da irracionalidade.

Ensina-se que o sistema econômico capitalista é altamente racional. Mas ele não é. Ele atualmente produz irracionalidades inacreditáveis.

Você recentemente escreveu na revista Jacabin que Marx rompeu com socialistas moralistas tais como Proudhon, Fourier, Saint-Simon e Robert Owen. Quem eram esses socialisas, e como e por que Marx se inspira a partir deles?

Nos estágios iniciais do desenvolvimento capitalista exisitam obviamente problemas de condições de trabalho. Pessoas razoáveis, incluindo profissionais e a burguesia, começaram a olhar para isso com horror. Uma certa repugnância moral contra o industrialismo desenvolvido. Muitos dos primeiros socialistas eram moralistas, no bom sentido do termo, e expressavam seu ultraje dizendo que poderíamos construir uma sociedade alternativa, baseada no bem-estar comum e em solidariedades sociais, e outras questões desse tipo.

Marx olhou para essa situação e disse que atualmente o problema com o capital não é que ele é imoral. O problema com o capital é que ele é quase amoral. Tentar confrontá-lo com a razão moral nunca chegaria muito longe, porque o sistema é auto-gerador e auto-reprodutor. Nós temos que lidar com a auto-reprodução do sistema.

Marx tomou uma visão muito mais cientifica do capital e disse: nós agora precisamos substituir o sistema inteiro. Não é apenas uma questão de limpar as fábricas – nós temos que lidar com o capital

Você viu O Jovem Karl Marx?

Eu vi o filme e a peça. Marx é um personagem de seu tempo, e eu acho que é interessante olhar para ele dessa perspectiva.

Mas a coisa que eu quero fazer é dizer: olha, nós ainda estamos em uma sociedade dirigida pela acumulação capitalista. Marx abstraiu das particularidades do seu tampo e falou sobre as dinâmicas da acumulação capitalista e apontou para o seu caráter contraditório – como, na sua força motriz, ele está aprisionando todos nós através de dívidas. Marx disse que nós precisamos ir além do protesto moral. Trata-se de descrever um processo sitemático que precisamos enfrentar e entender sua dinâmica. Porque de outra forma as pessoas tentam criar uma espécie de reforma moral, e a reforma moral então é cooptada pelo capital.

É realmente fantástico nós termos internet, que inicialmente todo mundo achou que era uma tecnologia libertadora que permitiria um grande acordo de libertade humana. Mas agora veja o que aconteceu com ela. Ela é dominada por alguns monopólios que coletam nossos dados e os dão a todos os tipos de personagens decadentes que os usam para fins políticos.

Algo que foi começou como uma tecnológica libertária de repente se transformou em um veículo de repressão e opressão. Se você perguntar “como isso aconteceu?”, você diria que algumas más pessoas aí de fora que fizeram isso, ou, com Marx, que é o caráter sistemático do capital que sempre faz isso.

Não existe isso de uma ideia boa e moral de que o capital não pode cooptar e se transformar em algo horrendo. Quase todo esquema utópico que rompeu no horizonte ao longo dos últimos cem anos se tornou numa distopia por conta da dinâmica capitalista. É para isso que Marx está apontando. Ele está dizendo “Você tem que lidar com esse processo. Se você não o fizer, você não vai criar um mundo alternativo que pode prover liberdade humana para todos”.

Vamos falar sobre as contradições do processo. Marx era um ferrenho crítico do capitalismo, mas ele também era um admirador dos seus poderes de destruição criadora. Ele pensava, por exemplo, que o capitalismo era uma grande melhora em relação ao feudalismo. Como deveríamos pensar em relação a esses poderes destrutivos hoje? Muito do que o capitalismo destrói e óbvio. Por outro lado, precisamos levar em conta as rendas crescentes em lugares como China e Índia, e o processo massivo de construção de infraestrutura que está acontecendo nesses países. De que forma o senhor aborda esses processos contraditórios?

Você está certo em mencionar isso, porque Marx não é simplesmente um crítico do capitalismo, ele é também um fã de algumas coisas que o capitalismo constrói. Essa é a grande contradição de tudo para Marx.

O capital construiu a capacidade, tecnologicamente e organizacionalmente, de criar um mundo muito melhor. Mas ele faz isso através de relações sociais de dominação ao invés de emancipação. Essa é a principal contradição. E Marx segue dizendo “Por que nós não usamos toda essa capacidade organizacional e tecnológica para criar um mundo liberatório, ao invés de um baseado na dominação?”.

Uma contradição relacionada é como os marxistas deveriam pensar a respeito do atual debate sobre globalização, que se tornou mais embaralhado e confuso do que nunca. Como o senhor pensa que a esquerda deveria olhar para o debate do protecionismo de Trump, de modo que difira dos apontamentos da economia mainstream?

Marx realmente aprovou a globalização. No Manifesto Coumista, há uma maravilhosa passagem que ele fala sobre isso. Ele a vê como uma potencialidade emancipatória. Mas mais uma vez, a questão é por que essas possibilidades emancipatórias não são adotadas. Por que elas são usadas como meios de dominação de uma classe por outra? Sim, é verdade que algumas pessoas no mundo melhoraram suas rendas, mas oito homens tem a mesma riqueza do que 50% da população mundial.

Marx está dizendo que nós precisamos fazer alguma coisa a respeito disso. Contudo, o fazendo, nós não somos nostáligocs ao dizer “queremos voltar ao feudalismo”, ou “nós queremos viver a partir terra”. Nós temos que pensar sobre um futuro progressivo, usando todas as tecnológicas que dispomos, mas usando-as para um propósito social ao invés de aumentar a riqueza e o poder na mão de cada vez menos pessoas.

Que é a mesma razão que fez Marx romper com os socialistas românticos contemporâneos a ele. Em termos do que as teorias econômicas liberais e economistas mainstran se esquecem, o senhor cita a passagem de Marx: “Toda razão que eles colocam – os economistas – contra a crise é uma contradição exorcizada, e, assim sendo, uma contradição real, que pode causar crises. O desejo de convencer alguém da não existência de contradições é ao mesmo temo a expressão de um desejo piedoso de que as contradições, que de fato estão presentes, não deveriam existir”. O que a economia mainstream se propõe a fazr? E o que ela omite ou esconde nesse processo?

Ela odeia contradições. Isso não encaixa com sua visão de mundo. Os economistas amam confrontar o que eles chamam de problemas, e problemas têm soluções. Contradições, não. Elas existem com você o tempo todo e, dessa forma, você precisa administrá-las.

Elas aumentam no que Marx chamou de “contradições absolutas”. Como os economistas tratam com o fato de que na crise dos anos 1930, dos anos 1970 ou a mais recente, capital excedente e trabalho excedente existiram lado a lado, e ninguém parece ter a pista de como colocá-los juntos novamente de modo que eles possam trabalhar em vista de fins socialmente produtivos?

Keynes tentou fazer alguma coisa em relação a isso. Mas em geral os economistas não têm ideia em como lidar com essas contradições. Enquanto Marx está dizendo que esssa contradição está na natureza da acumulação de capital. E essa contradição, então, produz essas crises periodicamente, que faz vítimas e cria miséria.

Esse tipo de fenômenos precisa ser resolvido. E economistas não tem um bom modo de pensar a respeito.

Em termos dessa contradição, você descreve em seu livro “capital excedente e trabalho excedente existindo lado a lado sem aparentemente nenhum modo de serem colocados juntos novamente”. Após a crise recente, como essas duas coisas – capital excedene e trabalho excedente – foram reapresendatas, e o modo pela qual elas foram reunidas resultou em uma nova forma de capitalismo, distinto daquele que preveleceu antes da crise? Ainda estamos vivendo sob o neoliberalismo, ou alguma outra coisa criou raízes?

A resposta à crise de 2007-2008 foi na maior parte do mundo – exceto na China – duplicar as políticas de austeridade neoliberais. O que piorou as coisas. Desde então, tivemos mais cortes. Não funcionou muito bem. Vagarosamente, o desemprego abaixou nos Estados Unidos, mas é claro que ele disparou em lugares como Brasil e Argentina.

E o crescimento dos salários está baixíssimo.

É, os salários não foram a lugar algum. Então aconteceu o que a administração Trump esta fazendo. Primeiramente, ela seguiu algumas políticas fortemente neoliberais. O orçamento que ela aprovou em dezembro é um documento puramente neoliberal. Ele basicamente beneficia os detentores de títulos e donos do capital, e todos os demais são colocados de lado. E outra coisa que aconteceu foi a desregulação, que os neoliberais gostam. A administração Trump duplicou a desregulação – do meio ambiente, leis trabalhistas, e todo o resto. Então está havendo uma duplicação de soluções neoliberais.

O argumento neoliberal teve muita legitimidade nos anos 1980 e 1990 ao ser liberatório em alguma medida. Mas ninguém mais acredita nisso. Todos perceberam que ele é uma trapaça em que os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres.

Mas estamos começando a ver a possibilidade de emergência de uma autarquia-protecinista etno-nacionalista, que é um modelo diferente. Ela não cai muito bem com ideias neoliberais. Podemos estar sendo dirigidos para algo que é muito menos agradável do que o neoliberalismo, a divisão do mundo em facções protecionistas antagônicas que disputam entre si sobre comércio e tudo mais.

O argumento de alguém como Steve Bannon[3] é que precisamos proteger o trabalho de pessoas dos Estados Unidos da competição no mercado de trabalho limitando imigrações. Ao contrário de culpar o capital, você culpa os imigrantes. A segunda coisa é dizer: nós também podemos conseguir apoio dessa população aumentando as tarifas e culpando a competição chinesa.

Com efeito, temos uma política de direita que está conseguindo muito apoio ao ser anti-imigrante e anti-offshoring. Mas o fato é que o maior problema dos empregos não é o offshore, é a mudança tecnológica. Entre 60% e 70% do desemprego gerado desde os anos 1980 foi causado pela mudança tecnológica. Talvez 20% ou 30% de tudo isso foi causado pelo offshore.

Mas a direita há agora uma política. Essa política não esta ocorrendo apenas nos Estados Unidos, está ocorrendo na Hungria, na Indía, em algum estágio na Rússia. Etno-nacionalismo e políticas autoritárias estão começando a quebrar o mundo capitalista em facções em disputa. Nós sabemos o que aconteceu com esse tipo de coisa nos anos 1930, então nós deveríamos ficar preocupados. Não é uma resposta ao dilema do capital. Na medida em que o etno-nacionalismo dominar o neoliberalismo, nós estaremos em um mundo ainda mais feio do que jamais estivemos.

Essas contradições são poderosas dentro da coalizão conservadora do governo nos Estados Unidos, mas eu acho que é um erro quando as pessoas as vêem como algo novo. Elas estavam latentes durante muito tempo.

É verdade. Por exemplo, na Grã Bretanha, nos anos 1960, houve um discurso de Enoch Poweel [4] em que ele falou sobre “rios de sangue” se continuássemos com aquela política migratória. O fervor anti-imigrantes esteve por perto durante muito tempo

Mas ele onseguiu, durante os anos 1980 e 90, ser mantido em sigilo porque havia dinamismo na economia capitalista global suficiente para as pessoas dizerem “esse regime de livre comércio e comércio aberto, e as políticas razoavelmente benignas de imigração estão todas funcionando para nós”. Desde então, se foi muito na outra direção.

O senhor mencionou o gigante poder da automação. O que Marx diz sobre automação e o que fazer com ela? O fim do trabalho está realmente próximo?

Eu vim para os Estados Unidos em 1969 e fui para Baltimore. Havia imensas fábricas de aço e ferro que empregavam cerca de trinta e sete mil pessoas. Em 1990, as fábricas de ferro ainda produziam a mesma quantidade de ferro, mas empregavam cerce de cinco mil pessoas. Agora, as fábricas de ferro praticamente foram embora. O ponto é que na manufatura, a automação expulsou empregos no atacado, em todos os lugares, muito rapidamente. A esquerda passou muito tempo tentando defender esses empregos e travou uma ação de retaguarda contra a automação.

Essa foi uma estratégia errada por uma série de razões. A automação estava chegando de qualquer jeito, e você iria perder. Em segundo lugar, eu não entendo porque a esquerda deveria ser absolutamente contra a automação. A posição de Marx, na medida em que ele tinha uma, seria de que nós deveríamos nos utilizar dessa inteligência artificial e da automação, mas nós deveríamos fazê-lo de modo que isso aliviasse a carga do trabalho.

A esquerda deveria estar trabalhando em políticas que disséssemos “nós damos as boas-vindas à inteligência artificial e à automação, mas elas nos devem dar muito mais tempo livre”. Uma das maiores coisas que Marx sugere é que o tempo livre é uma das coisas mais emancipatórias que podemos ter. Ele tem uma ótima frase: o reino da liberdade começa quando o reino da necessidade é deixado para trás. Imagine um mundo em que as necessidades podem ser cuidadas. Um ou dois dias da semana trabalhando, o resto do tempo é tempo livre.

Agora, temos todas essas inovações poupadoras de trabalho no processo de trabalho e também dentro dos lares. Mas se você perguntar às pessoas: você tem mais tempo livre hoje do que antes? A resposta é “não, eu tenho menos tempo livre”. Nós precisamos organizar tudo isso de modo que possamos ter tanto tempo livre quanto possível, de tal forma que seja possível, quarta-feira às cinco da tarde, irmos fazerer que quer que seja. Esse é o tipo de imaginação de uma sociedade que Marx tinha em mente. E é uma ideia óbvia.

O que está nos impedindo é todas essas coisas sendo usadas para sustentar os lucros da Google e da Amazon. Até o momento em que não lidarmos com as relações sociais e as relações de classe por trás de tudo isso, nós não seremos capazes de usar todos esses dispositivos e oportunidades fantásticas de maneira que possam beneficiar a todos.

O que você pensa sobre programas de renda básica universal?

No Vale do Silício, eles querem uma renda básica univeral para que as pessoas tenham dinheiro suficiente para pagar pela Netflix, e só. Que tipo de mundo é esse? Trata-se de uma distopia. Renda básica universal é uma coisa, mas o problema é o Vale do Silício e as pessoas que estão monopolizando os meios de comunicação e entretenimento.

A renda básica universal pode estar em nossa agenda em algum ponto, mas eu não a colocaria como uma de minhas prioridades políticas. De fato, há aspectos disso que trazem possibilidades muito negativas, como sugere o modelo do Vale do Silício.

O senhor acredita que as mudanças climáticas apontam claros limites à expansão requerida pelo capitalismo ou o capitalismo será capaz de passar intacto pela crise climática em detrimento das pessoas?

O capital pode sobreviver à crise das mudanças climáticas. De fato, se você observar os desastres climáticos, verá que o capital pode transformá-los no que Naomi Klein chama de “capitalismo de desastres”. Se há um desastre, bem, é preciso uma reconstrução. Isso traz muitas oportunidades para o capitalismo obter retornos lucrativos a partir dos desastres.

Do ponto vista da humanidade, eu não acredito que nós sairemos bem disso em hipótese alguma. Mas para o capital é diferente. O capital poderá superar essas coisas e, contanto que seja lucrativo, ele o fará.

Vamos falar de resistência. O senhor escreveu que tanto produção quanto consumo são facetas principais do capitalismo e que “lutas políticas e sociais contra o poder do capital, dentro da totalidade da circulação de capital, tomam diferentes formas e demandam diferentes tipos de alianças estratégicas para serem bem sucedidas”. Como deveríamos pensar a relação entre lutas trabalhistas, de um lado, e lutas contra o Estado – contra o encarceramento em massa, despejos e empréstimos predatórios – de outro?

Uma das virtudes de se olhar o capital como uma totalidade, pensando em todos os aspectos da circulação, é que se torna possível identificar diferentes arenas de luta. Por exemplo, a pauta ambiental. Marx trata da relação metabólica com a natureza. Portanto, lutas sobre a relação da humanidade com a natureza tornam-se politicamente relevantes. Neste momento, muitas pessoas preocupadas com a questão ambiental dirão: “Nós podemos lidar com isso sem confrontar a acumulação de capital”.

Eu tenho uma objeção a isso. Em algum momento teremos de lidar com o problema da acumulação capitalista, que demanda um crescimento eterno de 3% ao ano, como uma clara questão ambiental.

Há outros aspectos também. O capital é produção de vontades, necessidades e desejos. É uma produção de consumismo. Eu acabei de voltar da China, e notei o enorme crescimento no consumismo nos últimos três ou quatro anos. Isso é o que o FMI e o Banco Mundial estavam aconselhando a China a fazer há vinte anos atrás dizendo “vocês estão economizando demais e não estão consumindo o suficiente.” Agora os chineses estão sendo obrigados a iniciar uma verdadeira sociedade de consumo, mas isso significa que as vontades, necessidades e desejos das pessoas estão sendo transformados. Há vinte anos, na China, o que se queria, necessitava e desejava era uma bicicleta, mas agora é um automóvel.

Existem várias formas como isso foi feito. Os “homens loucos” [5] da publicidade têm um papel a desempenhar, mas o mais importante é criar novos estilos de vida. Por exemplo, uma das formas pelas quais o capital superou esse problema em 1945 nos Estados Unidos foi a suburbanização, que é a criação de todo um estilo de vida novo. Na verdade, o que percebemos é que a criação de um estilo de vida não é uma simples escolha.

Todos nós temos celulares. Isso é a criação de um estilo de vida, e esse estilo de vida não é algo que eu possa escolher individualmente fazer parte dele ou não – eu tenho que ter um celular, mesmo que eu não saiba como diabos ele funciona.

Não é como se, no passado, alguém tenha desejado, querido ou necessitado de um celular. Isso surgiu por uma necessidade particular e o capital encontrou um meio para organizar um estilo de vida ao redor disso. Agora nós estamos presos a esse modo de vida. Voltemos ao exemplo do processo de suburbanização. Do que se necessita em um subúrbio? De um cortador de grama. Se em 1945 você fosse esperto, iniciaria a produção de cortadores de gramas porque as pessoas precisavam deles para cortar seus gramados.

Agora há revoltas contra certas coisas que estão acontecendo. As pessoas estão começando a dizer “veja, nós precisamos de algo diferente.” Eu encontro pequenas comunidades em áreas urbanas, e em áreas rurais também, em que as pessoas estão tentando criar um novo estilo de vida. As que mais me interessam são as que usam novas tecnologias, como celulares e internet, para criar estilos de vida alternativos, com formas de relação diferentes daquelas que caracterizam as corporações, com estruturas hierárquicas de poder que encontramos em nosso dia a dia.

Lutar contra um estilo de vida é bem diferente de lutar por salários ou condições de trabalho em uma fábrica. No entanto, há, do ponto de vista da totalidade, uma relação entre essas diferentes lutas. Eu estou interessado em mostrar para as pessoas como as lutas pelo meio ambiente, para a produção de novas vontades, necessidades, desejos e consumo está relacionada às formas de produção. Junte todas essas coisas e você terá uma visão sobre a totalidade do que é a sociedade capitalista e sobre os diferentes tipos de insatisfação e alienação que existem nos diferentes componentes da circulação do capital que Marx identifica.

Como você vê a luta contra o racismo e essas lutas contra a produção e o consumo?

Dependendo do lugar em que você estiver no mundo, essas questões são fundamentais. Aqui nos Estados Unidos essa é uma grande questão. Você não atinge o mesmo problema se você observa o que está acontecendo na China. Mas aqui as relações sociais são sempre atravessadas por questões de gênero, raça, religião, etnia, etc.

Portanto, não se pode lidar com a questão da produção de estilos de vida e de necessidades, vontades e desejos sem levar em conta a questão da racialização do mercado imobiliário e de como a questão racial é utilizada de diversas formas. Por exemplo, quando me mudei pela primeira vez para Baltimore, uma das coisas que estava acontecendo era o “blockbusting” – o uso pelo setor imobiliário dos conflitos raciais para forçar uma saída em massa de brancos e capitalizar com a alta rotatividade do mercado imobiliário e assim obter vantagens econômicas.

As questões de gênero também são proeminentes na sociedade capitalista quando se trata da reprodução social em qualquer lugar do mundo. Essas questões estão embutidas na acumulação capitalista.

Eu às vezes me vejo com problemas quando falo disso porque parece que a acumulação de capital é mais importante do que essas outras questões. Mas não. Não é isso. Porém, os antirracistas devem lidar com a forma como a acumulação de capital interfere nas políticas antirracistas. E observar a relação entre o processo de acumulação e a perpetuação das desigualdades raciais.

Aqui nos Estados Unidos há uma série de questões desse tipo que são essenciais. Mas, novamente, elas podem ser tratadas sem considerar que em certa medida a acumulação capitalista está criando e perpetuando algumas dessas distinções? A resposta, para mim, é não. Eu não acho que isso seja possível. Em certa medida, antirracistas devem ser também anticapitalistas se quiserem ir à verdadeira raíz de muitos problemas.

Você é muito conhecido por seu trabalho acadêmico, mas talvez seja mais conhecido como um professor de Marx. Por que você acha importante que pessoas de esquerda de fora da academia conheçam o trabalho de Marx?

Quando você está engajado politicamente e é um ativista, às vezes acaba por se concentrar em algum objetivo muito específico. Digamos, envenenamento por tinta de chumbo no centro da cidade. Você está se organizando pela questão de que 20% das crianças que vivem no centro de Baltimore sofrem com envenenamento de tinta de chumbo. Você está envolvido em uma batalha jurídica, lutando contra o lobby dos proprietários e todo tipo de oponentes. A maioria das pessoas que eu conheço que estão envolvidas em ativismos deste tipo encontra-se tão consumidas pelos detalhes do que estão fazendo que às vezes se esquecem de ter uma perspectiva global – seja das lutas na cidade, sem falar das do mundo.

Às vezes você percebe que as pessoas precisam de ajuda de fora. Que o problema da tinta com chumbo é muito mais fácil de lidar se você envolver todas as pessoas engajadas pelo sistema educacional que vêem seus filhos sofrendo de envenenamento pela tinta de chumbo. Você começa a construir alianças. E quanto mais alianças são feitas, mais poderoso torna-se o movimento.

Eu tento não dizer para as pessoas o que elas deveriam pensar, mas tento criar uma estrutura de pensamento que permita às pessoas perceberem seu lugar na totalidade complexa de relações que fazem a sociedade contemporânea. Então as pessoas podem formar alianças em torno das questões com as quais se preocupam, e, ao mesmo tempo, mobilizar suas próprias forças para ajudar outras pessoas em suas alianças.

Eu estou empenhado em construir alianças. Para isso, é preciso ter uma concepção sobre a totalidade da sociedade capitalista. Na medida em que você puder fazer isso estudando Marx, eu penso que isso é útil.

[1] Geógrafo marxista britânico e professor na City University of New York (CUNY).
[2] O termo original “foreclosure”, que ao significar simultanemanete “encerramento” ou “fechamento” e o ato de “executar uma hipoteca”, é usado como uma forma de trocadilho pelo entrevistado (N.T.)
[3] Steve Bannon é ex-conselheiro de Donald Trump. Expoente da extrema-direita nacionalista estadunidense, o articulador tem expressado seu apoio e admiração por Jair Bolsonaro. O presidente eleito foi por ele convidado a participar da cúpula de sua organização The Movement, que pretende aglutinar diversas organizações e partidos direitistas do Ocidente, a ser realizada no início do ano que vem (N.T.).
[4] Enoch Poweel foi Ministro da Saúde do Reino Unido entre 1960 e 1963 (N.T.).
[5] Há, no inglês, um duplo sentido no termo mad men, literalmente “homens loucos”, mas que também pode se referir aos profissionais do mercado publicitário, tal como explorado na série televisiva homônima que trata dos bastidores de uma agência de publicidade nos EUA dos anos 1960 (N.T.).


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Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 05 nov 2024

Depois das eleições, combater o pacote antipopular

A luta contra as propostas de austeridade fiscal do governo federal deve ser a prioridade da esquerda neste momento
Depois das eleições, combater o pacote antipopular
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Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
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Autores

Pedro Micussi