Daniel Bensaïd: o poder da indignação
Último artigo da série de obituários sobre o marxista francês.
DANIEL BENSAÏD, o alegre e inspirado pensador marxista e ativista francês, nos deixou. Esta é uma grande perda, não só para nós, seus amigos, seus companheiros de luta, mas também para a cultura revolucionária. Com sua irreverência, seu humor, sua generosidade, sua imaginação, ele era um raro exemplo de um intelectual militante, no sentido preciso dessas palavras.
Nós nem sempre concordávamos, longe disso, mas como alguém poderia não gostar dele, não admirar seu charme, sua marcante criatividade e seu espírito de resistência, contra todas as adversidades, para a infâmia da ordem estabelecida?
Daniel foi um dos fundadores da JCR, Juventude Comunista Revolucionária, um grupo de jovens rebeldes, inspirado por Trótski e Che Guevara, em 1966. Em 1968, ele lançou o Movimento 22 de Março, juntamente com Daniel Cohn-Bendit e outros estudantes radicais, e logo se tornou um dos principais líderes da rebelião de maio de 68.
Em 1969, ele organizou, com Alain Krivine, Janette Habel e outros, a LCR, Liga Comunista Revolucionária, a seção francesa da Quarta Internacional. Finalmente, em 2009, ele participou, com Olivier Besancenot – com quem ele escreveu um de seus últimos livros, “Prendre Parti” – na conferência de fundação do NPA, o Novo Partido Anticapitalista. Diferente de muitas outras figuras de 1968, ele permaneceu obstinadamente fiel a seus sonhos e lutas juvenis.
Se os livros de Daniel Bensaid – um dos quais foi traduzido para o inglês, “Marx in our times” (2002) – são lidos com tanto prazer, é porque são escritos com a pena afiada de um verdadeiro escritor. Essa pena poderia estar assassina, irônica, enraivecida ou poética, mas sempre ia diretamente ao seu alvo. Esse estilo literário, específico do autor e impossível de imitar, não era gratuito, mas estava a serviço de uma ideia, de uma mensagem, de um apelo: Recuse a obediência, recuse a renúncia, recuse a reconciliação com os vencedores.
Se ele recusou com toda a sua energia a tentativa da reação neoliberal de dissolver o comunismo no stalinismo, ele ainda assim reconheceu que não se pode evitar um balanço crítico dos erros que desarmaram os revolucionários de outubro de 1917: a confusão entre povo, partido e Estado, cegueira diante do perigo burocrático.
Em direção a uma renovação marxista
A fidelidade a Marx não impediu Daniel Bensaïd de defender uma profunda renovação do pensamento marxista, particularmente em duas áreas em que a tradição tinha sido particularmente deficiente: Feminismo e Ecologia. Feministas – como Christine Delphy – estavam certas ao criticar Engels, que considerava a opressão doméstica apenas um arcaísmo pré-capitalista fadado a desaparecer com a ascensão do trabalho assalariado feminino. A aliança necessária entre consciência de gênero e consciência de classe não pode ocorrer sem uma avaliação crítica, por marxistas, de sua teoria e prática.
O mesmo se aplica à questão do meio ambiente: vinculado ao compromisso fordista e à lógica produtivista do capitalismo, o movimento operário tem sido muito frequentemente indiferente ou hostil à ecologia. Por outro lado, os Partidos Verdes tendem a se satisfazer com uma ecologia de mercado. No entanto, o anti-produtivismo de nossos tempos deve ser também um anticapitalismo: a luta ecológica é inseparável da luta social.
Confrontados com as destruições catastróficas produzidas no meio ambiente pela lógica do valor de mercado, é preciso reforçar a necessidade de uma mudança no modo de produção e consumo, de civilização e vida; para essa alternativa, Bensaïd inventou um novo termo: o eco-comunismo.
Seu pensamento filosófico não era um exercício acadêmico: de um extremo ao outro, estava cheio da correnteza ardente de indignação – uma correnteza, como ele escreveu, que não pode ser dissolvida nas águas mornas da resignação consensual. Isso foi expresso no desprezo de Daniel por aqueles que ele chamou de “Homo resignatus”. Para ele, “a indignação é um começo. Uma maneira de se levantar e começar a se mover. Primeiro vem a indignação, depois a rebelião, e então veremos”.
Entre todas as contribuições de Bensaïd para a renovação do marxismo, a mais importante, a meu ver, é sua ruptura radical com a ideologia positivista, determinista e fatalista do progresso inevitável que pesou tanto sobre o marxismo “ortodoxo”, particularmente na França. Sua releitura de Marx, com a ajuda do revolucionário do século XIX Auguste Blanqui e do filósofo do século XX Walter Benjamin, levou-o a compreender a história como uma série de encruzilhadas e bifurcações; um campo de possibilidades cuja problemática é imprevisível. A luta de classes é central no processo histórico, mas seu resultado é incerto, e implica uma parte de contingência.
Em “Le pari melancolique” (“The melancholic wager”, 1997) [A aposta melancólica], que pode ser seu livro mais bonito, ele aproveita um conceito do filósofo do século XVII Blaise Pascal para argumentar que a ação emancipatória é “um trabalho para a incerteza”, implicando uma aposta no futuro. Ao redescobrir a interpretação marxista de Pascal feita por Lucien Goldmann, ele define o compromisso socialista como uma “aposta racional no processo histórico”, uma aposta na qual se fundamenta toda a existência, “correndo-se o risco de perder tudo”.
A revolução deixa de ser considerada como o produto necessário das leis da história, ou das contradições econômicas do capital, para se tornar uma hipótese estratégica, e um horizonte ético, “sem o qual a vontade renuncia, o espírito de resistência desiste, a fidelidade é quebrada e a tradição se perde”.
O revolucionário é, portanto, um ser humano que duvida, um indivíduo que põe uma energia absoluta a serviço de certezas relativas – em outros termos, alguém que tenta, obstinadamente, praticar aquela exigência imperativa reclamada por Walter Benjamin em seu último escrito, as Teses “Sobre o conceito de história” (1940): escovar a história à contrapelo.
Artigo originalmente publicado pela Against the Current. Tradução de Pedro Barbosa a partir da versão disponível em marxists.org.