A disciplina por um projeto independente dos trabalhadores

Artigo abre dossiê destinado à reflexão sobre o lugar do PSOL e dos socialistas no atual período.

Luciana Genro e Roberto Robaina 9 jul 2019, 01:05

O Brasil necessita de desenvolvimento econômico e social. São décadas de baixo crescimento, e agora, de 2014 para cá, de tendência à estagnação permanente e com períodos de depressão. A desigualdade social é uma marca que nunca foi superada. A violência contra a juventude pobre, negra e da periferia é uma constante. As prisões da miséria nos acompanham como sina.

Nossa premissa é que o desenvolvimento nacional pressupõe romper a lógica crônica da desigualdade social. Até porque o desenvolvimento econômico deveria ser para melhorar a vida do povo. Não é este o caso no capitalismo. E no Brasil, sob controle dos banqueiros, dos megaconglomerados industriais e comerciais nacionais e estrangeiros, e de latifundiários, agora na sua forma moderna de empresas do agronegócio, a desigualdade apenas se agrava. Assim, capitalismo e subdesenvolvimento se alimentam.

Para que tal controle deixe de ser exercido o país precisa de uma profunda transformação social, uma ruptura política radical com tudo o que foi experimentado até aqui, a emergência de novas formas de organização social e política onde a sociedade possa ser protagonista, mais concretamente sua esmagadora maioria trabalhadora, explorada e oprimida.

Para que tal processo novo surja e se desenvolva será necessário tempo. Embora a situação do povo seja terrível, não há outra saída que não passe por uma longa marcha, em que as lideranças novas se desenvolvam, tirem conclusões das experiências passadas e formulem um programa, planos e se temperem no calor das batalhas.

É este tempo que o bolsonarismo não quer dar ao país, tratando de matar na raiz tal possibilidade de renovação. Ao mesmo tempo este mesmo bolsonarismo deixa claro que não faltarão batalhas. Não é à toa que o primeiro grande palco foram as universidades. É a juventude a vanguarda de uma nova utopia concreta. E os milhares de ativistas novos já surgiram na batalha do 15 e do 30 de maio. Foram apenas as primeiras.

O movimento estudantil no Brasil se reacendeu e empurra por uma nova reconfiguração do movimento de massas. Seus desdobramentos para encontrar um curso positivo exigem que os espaços de organização não sejam fechados, que as liberdades não sejam suprimidas, para que o tempo de maturação de construção de uma nova direção seja ganho. O bolsonarismo tem precisamente como eixo uma contrarrevolução preventiva. No seu despreparo, evidente nestes seis meses de governo, há uma racionalidade do ponto de vista dos interesses do capital: a ideia de derrotar as energias da revolta que eclodiram em Junho de 2013, depois de duas décadas de pacto politico. O bolsonarismo, porém, não unificou a burguesia. Uma parte, ainda majoritária da classe dominante, considera que não é o caso de levar adiante uma política de liquidação física das organizações do movimento de massas. Acreditam que a dominação pode se dar ainda pelo consentimento mais do que pela força.

As divisões na classe dominante abrem mais espaços para as classes trabalhadoras, mas as soluções para seus impasses estratégicos não se resolvem espontaneamente. E exigem tempo. O tempo, eis nosso bem mais precioso. É o que precisamos conquistar, seja para manter a vida no planeta, cada vez mais ameaçada, seja para forjar instituições que representem a auto-organização da luta do povo, instituições que começam a se desenvolver em toda a forma de associativismo, sejam as formas clássicas- hoje muito burocratizadas, mas necessárias – como os sindicatos – sejam as entidades estudantis, os DAs, DCEs, associações de categorias, de moradores dos bairros, grupos de mulheres, LGBTs, de luta contra o racismo, etc. .

Para lutar contra os ataques às liberdades democráticas é preciso a mais ampla unidade. Eis atualmente a prioridade. Tal prioridade se expressa em unidades de ação por objetivos imediatos e até frentes políticas por plataformas determinadas.

Mas para uma reconfiguração estratégica, uma refundação da esquerda é hora formular um programa de desenvolvimento nacional e de igualdade social. Neste sentido é preciso uma delimitação clara de quem são os beneficiados, quem são os inimigos e em última instância que partes da sociedade podem estar mesmo dispostas a realiza-lo. Neste ponto a falta de demarcação, depois de tantas experiências frustradas e sofrimento, é no mínimo uma improvisação. E como não temos tempo a perder, acaba sendo um crime político.

A primeira demarcação que se impõe é contra o governo Bolsonaro e a defesa da mais ampla unidade para enfrentá-lo.  Mas isso é o primeiro passo. É preciso também aprender com os erros e para isso é preciso discuti-los à luz do dia.  Leandro Konder escreveu que “quando a esquerda evita falar sobre seus próprios erros e se recusa a discuti-los à luz do dia, ela não está, afinal se protegendo da direita: está protegendo o conservadorismo que conseguiu se infiltrar no interior dela mesma”[1].

Quando falamos de experiências frustradas para milhões de trabalhadores estamos falando da experiência do PT. As frustações com a derrota do PT são um dos nossos maiores obstáculos subjetivos para a construção de um novo programa. Afinal, nos últimos 50 anos, o PT foi a mais forte arma que a classe trabalhadora construiu. Teve acumulação programática, experiência de luta e de governo. Depois dos anos iniciais conquistou tanto espaço que, seja por força, seja por adaptação, foi aceito pelo regime político e converteu-se em peça chave de sua estabilidade.

Mesmo nos marcos do capitalismo foi possível, em circunstâncias locais, produzir melhorias sociais. No governo nacional houve um aumento das vagas de jovens com acesso às universidades, redução da pobreza extrema e permitiu uma esperança de reformas paulatinas, sem a necessidade de rupturas. Mas foram esperanças em vão. O que o capital aceita dar com uma mão arranca em dobro com a outra.

Ao mesmo tempo, nos seus anos de governo os ricos ficaram mais ricos, os banqueiros ganharam como nunca. O ex-presidente Lula até hoje, nas suas entrevistas na prisão em Curitiba, reivindica que foi sua capacidade, a capacidade do PT, que permitiu que todos ganhassem e renovou seu chamado de que todos podem ganhar novamente com o país unido sob sua direção. Sua estratégia, portanto, é a repetição da experiência.

Aqui exatamente se impõe uma segunda necessidade de demarcação: nossa estratégia não é a tentativa de repetição. Em primeiro lugar porque a desigualdade se manteve e nosso programa deve ser o da igualdade. Milhões seguiram sem moradias dignas, as prisões da miséria aumentaram com a população carcerária quase dobrando em dez anos, passando de 401,2 mil para 726,7 mil, de 2006 a 2016[2]. Centenas de lideranças foram assassinadas no campo e os criminosos e mandantes ficaram impunes, as comunicações não foram democratizadas, nem as forças armadas, nem os privilégios e a corrupção foram combatidos. Continuaram e até se agravaram em alguns casos.

Finalmente, a crise econômica se abateu em cheio sobre o país, jogando por terra o pouco concedido e piorando a vida do povo. O símbolo da resposta do PT foi escolher Joaquin Levy para dirigir a economia. Hoje quase todos os petistas dizem que foi o grande erro de Dilma, a escolha tragicamente errada que rompeu a linha de supostos acertos anteriores do partido, e não poucos definem que foi sua traição. Esquecem de dizer que Lula queria, para o cargo de Levy, Luiz Carlos Trabuco, o patrão de Levy. E que, para dirigir a economia desde o início de seu mandato, escolheu Henrique Meirelles, o banqueiro ministro da economia de Temer, e o médico Palocci, a quem se dispensam comentários.

No final, a ruptura no acordo entre o PT e a classe dominante se consumou, mas com a classe dominante optando por não mais aceitar o peso político institucional adquirido pelo PT e o desalojou do condomínio do poder. O programa da repetição é o programa do PT.

Se a repetição não é válida, isso não quer dizer que bandeiras históricas não sejam fundamentais. O país tem uma acumulação programática enorme. O que faliu e frustrou foi a aposta de que a burguesia brasileira poderia ser aliada. Ao apostar sempre nesta perspectiva o núcleo de direção do PT e Lula em particular foi deixando o programa pelo caminho. Acabou aplicando na economia o programa de Meirelles com medidas compensatórias. Quando a crise veio as exigências de ataques ao povo aumentaram e o PT não tinha condições para ser este algoz. Pode se dizer que este até foi seu mérito e só por isso não está morto – e até se ressignificou – depois do impeachment/golpe de 2016.

Assim como há bagagem programática na história da esquerda sob hegemonia do PT que deve ser resgatada, ha em outros atores riquezas de propostas. É o caso atualmente de Ciro Gomes. Ele vem defendendo um “Projeto Nacional de Desenvolvimento” que tem muitas propostas das quais somos partidários.

Em tempos de exaltação ao liberalismo é importante a ideia defendida por Ciro da necessidade de um combate ao espontaneísmo individualista do mercado, fazendo do Estado e do capital nacional indutores do desenvolvimento e do crescimento econômico. Desenvolver em bases nacionais um complexo industrial da saúde, que hoje tem a grande maioria dos seus insumos importados, assim como na área da Defesa, que também importa bilhões de dólares todo o ano sendo que o Brasil é um dos 8 países do mundo que sabe montar um avião. É fundamental dar melhores condições de consumo para as famílias através do aumento da renda (mais salário) e do credito (juros mais baixos). Sua denúncia dos cerca de 63 milhões de brasileiros no SPC e sua proposta de revisão desta exploração foi um ponto alto da última campanha eleitoral. A defesa da retomada do imposto sobre lucros e dividendos, aumento do imposto sobre as grandes heranças, um mercado de capitais regulado e com punição aos especuladores e investimentos maciços em educação também foram parte do programa do PSOL em 2014.

A questão estratégica com Ciro é semelhante a que tivemos com o PT, neste caso duplamente agravada: Ciro não aponta que só a classe trabalhadora e seus aliados podem lutar por essas propostas. É claro, insistimos, que não apenas a classe trabalhadora isoladamente. É preciso ter alianças com as classes médias, com setores intelectuais, técnicos, científicos, com setores militares, com camponeses, sem terra, os movimentos estudantis e pelos direitos civis. Mas com a grande burguesia – não apenas com os banqueiros, mas os grandes industriais, os proprietários das grandes redes do comércio, os donos de imensas extensões de terra – não há espaço para alianças estratégicas ou um governo comum. Esta não é uma definição de Ciro. Além disso, o experimente politico do Ceará não tem um partido organizado ou em vias de organização para lutar pelas medidas econômicas e sociais que tem defendido. O PDT hoje é mais adaptado ao capitalismo brasileiro do que o PT dos anos 90, então já bastante adaptado. De toda a forma, as propostas de Ciro devem ser discutidas e são úteis para a reconfiguração do movimento de massas e o fortalecimento de um campo social e político oposto ao neoliberalismo.

De nossa parte partimos dos eixos de nosso programa de 2014. Tal elaboração trouxe diretrizes fundamentais que são extremamente úteis neste debate sobre a estratégia da esquerda brasileira. Vejamos alguns trechos que explicam em linhas gerais o programa que defendemos naquela eleição presidencial.

Por um projeto de desenvolvimento econômico e contra a desigualdade

A destruição da natureza e a degradação do meio ambiente são diretamente proporcionais à crueldade do capitalismo em relação aos oprimidos e explorados por este sistema. Nossa proposta é ecossocialista, pois não pode haver uma defesa consequente do meio ambiente sem que se aponte para a superação das leis do capital, que necessita sugar os recursos naturais e explorar o ser humano para garantir a acumulação em benefício de 1% da população, enquanto 99% sofrem as consequências nefastas deste modelo econômico.

O Brasil precisa conquistar sua verdadeira soberania. Hoje a situação é de submissão aos interesses do capital financeiro e monopolista. O principal componente do desequilíbrio financeiro do Estado brasileiro é, de longe, a conta de juros. A média mundial de comprometimento das finanças públicas com juros gira em torno de 1% do PIB, chegando a 2% em casos excepcionais. O Brasil gasta, na conta de juros, praticamente a mesma quantidade de recursos investidos no seu sistema de Seguridade Social! Grande parte da dívida interna brasileira está nas mãos de 20 mil credores, enquanto o sistema de seguridade atende cerca de 130 milhões de pessoas.

A Auditoria deve resultar na devida suspensão do pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, garantindo o direito dos pequenos poupadores e da aposentadoria dos trabalhadores que participam de fundos de pensão, dado o fato de eles inviabilizarem a capacidade do Estado em investir, por exemplo, nos direitos sociais – saúde, educação, habitação, mobilidade urbana, saneamento, etc. Estas medidas devem resguardar os pequenos e médios detentores dos títulos da dívida pública, que não serão prejudicados.

Nossa luta imediata será para que a economia do Brasil não siga amarrada aos interesses do grande capital financeiro. Nosso programa parte da definição de que os recursos hoje destinados ao pagamento da dívida para as cinco mil famílias mais ricas serão destinados aos investimentos públicos, à saúde, educação, transporte e demais gastos sociais. Daremos fim à desregulamentação da economia e da abertura financeira e comercial irresponsável, bem como implantaremos um rígido controle de capitais para inibir a especulação. Ao mesmo tempo, não se pode conceder autonomia ao Banco Central, que deve ser transformando num instrumento da retomada da soberania nacional frente ao imperialismo.

Além disso, tem lugar central em nosso programa o combate à concentração de renda e às desigualdades. No mundo, 85 fortunas acumulam a mesma riqueza que 3,5 bilhões de pessoas. No Brasil não é diferente. As cinco mil famílias mais ricas concentram a maior parte da riqueza produzida e ainda recebem dinheiro do governo, através dos juros da dívida pública. Apenas 5 brasileiros têm a riqueza equivalente a 100 milhões de brasileiros. Este processo só será estancado com o enfrentamento do problema da dívida, mas para ser revertido, é preciso avançar numa reforma tributária profunda.

Várias medidas vão nesta direção. A primeira é mudar a estrutura tributária, de regressiva para progressiva. A modificação substantiva do sistema de alíquotas é fundamental, de forma que os ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que a classe média e os pobres. É inadmissível que sobre os rendimentos do trabalho da classe média incida a mesma alíquota que incide sobre os rendimentos do trabalho dos ricos. É necessária a desoneração tributária que incide diretamente sobre a renda dos pobres e da classe média. A segunda consiste em eliminar boa parte das medidas de desoneração, seja da folha de pagamento, seja a redução de IPI, principalmente de setores de bens de consumo duráveis e dos setores em que há baixa concorrência. A terceira consiste em fazer com que a tributação sobre os rendimentos do capital seja maior que a tributação sobre os rendimentos do trabalho. A quarta envolve a maior taxação do estoque de riqueza dos ricos. A quinta trata de eliminar subsídios em financiamentos para projetos de investimento de grandes empresas e grupos econômicos. A sexta é acabar com o financiamento, com recursos públicos para empresas estrangeiras que operam no país.

O Imposto sobre as Grandes Fortunas – uma medida que consta na Constituição desde 1988 e até hoje não foi regulamentada – deve ser uma fonte de recursos e de justiça. Deve-se inverter a lógica do atual sistema tributário, aumentando a tributação sobre a riqueza e a propriedade. Dessa forma, é possível baixar os impostos sobre o salário e o consumo, beneficiando os mais pobres, os trabalhadores, os pequenos comerciantes, os profissionais liberais, enfim, os que hoje sustentam o parasitismo de poucos.

Medidas como o Bolsa-Família devem ser transformadas em políticas efetivas de transferência de renda, tratadas como política de Estado e acompanhadas por transformações estruturais, pois isoladas são meramente paliativas e insuficientes para assegurar a vida digna que todos merecem. É sabido que os aumentos reais do salário mínimo, ainda que abaixo do salário mínimo necessário apontado pelo DIEESE, foram mais eficientes para a redução da pobreza do que programas de transferência de renda. Garantir emprego de melhor qualidade e salário dignos é fundamental. Neste sentido, também é importante voltar a vincular o reajuste dos aposentados ao do salário mínimo.

Nosso programa também deve ser taxativo na defesa da soberania nacional e, portanto, do controle público das áreas estratégicas, como a energia, que é um fator crítico da soberania e do desenvolvimento de qualquer país. Há um potencial conflito de interesses geopolíticos inerente a uma gigantesca reserva petrolífera como a do Brasil.

Por fim, cabe destacar como elemento de construção de um novo modelo econômico e de desenvolvimento, a necessidade de uma profunda revisão do sistema agrário brasileiro. Além de uma reforma agrária, que desmonte o latifúndio e desaproprie propriedades que possam ser utilizadas para fins produtivos – sobretudo a produção de alimentos – será papel do Estado incentivar atividades que gerem empregos, desenvolvam de forma sustentável a economia no campo e fortaleçam a soberania nacional.

Para que mudanças estruturais como as apontadas acima possam ser efetivadas, apenas podemos contar com a mobilização permanente da classe trabalhadora por suas reivindicações. No campo dos diretos básicos, em primeiro lugar não aceitaremos retrocessos como a flexibilização dos direitos trabalhistas, o cerceamento do direito à greve ou demissões arbitrárias. Devemos apoiar e impulsionar a luta dos trabalhadores contra o desemprego, defendendo bandeiras como redução da jornada, e pelo aumento da renda, com a defesa de aumento dos salários. E neste processo concreto de lutas imediatas dos trabalhadores e do povo que pode emergir uma nova direção para o pais.

Uma esquerda anticapitalista é necessária

Tudo isso dito, insistimos que a estratégia não pode ser o caminho da repetição. Eis um debate que o PSOL precisa fazer. Boulos, uma jovem liderança, não deve se colocar num esforço de construção como herdeiro do lulismo. A experiência da colaboração de classes fracassou. A unidade com o PT contra os ataques do governo Bolsonaro não pode significar abdicar de disputar os rumos e a direção do movimento de massas. Nem muito menos delegar ao ex-presidente Lula o lugar de líder máximo de um campo comum.

No Brasil, a crise econômica e política escancarou a falência do projeto petista, o qual pode ser identificado com os partidos da socialdemocracia e os socialistas “da ordem” no mundo todo. É verdade, portanto, que o socialismo real e a socialdemocracia fracassaram como projetos de emancipação humana. Estes fracassos estão na raiz da crise da esquerda e do crescimento da direita.

Muito embora a derrocada do stalinismo no mundo tenha cumprido um papel progressista ao colocar na ordem do dia a necessidade e a possibilidade de superação daquele paradigma de sociedades autoritárias, não surgiu um novo referencial que possa recolocar a viabilidade de outro modelo econômico e político. É verdade também o que disse Gramsci: na crise o velho já morreu, mas o novo ainda não pode nascer e neste interregno surgem “fenômenos patológicos” dos mais variados tipos[3]. As vitórias de Trump nos Estados Unidos e de Bolsonaro no Brasil são expressões desses “fenômenos patológicos”.

Bensaïd expressa esta mesma ideia de Gramsci quando afirma:

Vivemos essa grande transição, esse grande intervalo entre dois extremos, entre o “não mais” e o “ainda não”, em que o antigo não acabou de morrer enquanto o novo pena para nascer e corre o risco de perecer antes mesmo de ter vivido[4].

As experiências concretas de sociedades de transição, ditas socialistas, não conduziram ao comunismo. Ao contrário, a maioria delas não está mais sequer em transição e já deu origem a países capitalistas “normais”, como a Rússia, ou a capitalismos de Estado, como na China, onde uma burocracia estatal cumpre o papel de burguesia. A exceção talvez seja Cuba, que ainda vive em um tipo de transição, mas certamente não para o comunismo. Não pretendemos aqui esgotar as razões destes fracassos, mas eles estão na origem do problema da falta de um modelo que possa hoje inspirar as novas gerações a seguir na luta por uma sociedade livre da exploração e da opressão.

A ideia de que seria possível e suficiente construir um capitalismo com rosto humano, democrático e generoso é um fracasso evidente. Se não antes, a crise econômica de 2008/2009 na Europa revelou os partidos da socialdemocracia como aplicadores dos planos de ajuste mais cruéis contra o povo, semelhantes aos aplicados pelos partidos mais conservadores. A tentativa da velha esquerda de “domar” o capitalismo teve efeito inverso. Ela é que foi domada pelo capital.

Cabe analisar as razões mais profundas dessa adaptação. O debate sobre o Estado e o seu papel é decisivo nesta análise. A esquerda tem chegado ao governo e se adaptado ao funcionamento do Estado burguês de forma absolutamente integrada aos interesses essenciais da burguesia.

Este processo tem levado ao crescimento da direita no mundo todo e no Brasil não foi diferente; surgiu uma direita mais orgânica e ideológica e viabilizou a vitória de Bolsonaro. O PSOL foi incapaz de capitalizar pela esquerda o sentimento antiestablishment desencadeado pelo descrédito dos grandes partidos, entre outras razões por ter ficado preso à palavra de ordem “Fica Dilma” no momento do impeachment, ao invés de lutar por eleições gerais, reafirmando sua independência frente ao projeto lulopetista, e sua rejeição à manobra das elites de tirar Dilma para empossar Michel Temer. O resultado é que embora o PSOL tenha surgido justamente da necessidade de uma oposição pela esquerda a Lula, acabou sendo visto por setores de massas como parte do mesmo projeto fracassado.

Não é simples o processo de reconstrução de uma esquerda consequente neste cenário. Sem abrir mão dos debates estratégicos, é preciso construir uma forte unidade no enfrentamento ao bolsonarismo e aos retrocessos de direitos sociais. A reforma da previdência é a tarefa que unifica a burguesia em torno do governo, e sua derrota é nossa tarefa fundamental. A defesa da educação um eixo mobilizador.  Os ataques de Bolsonaro às universidades, aos direitos das mulheres, das LGBT+, da negritude, sua defesa da ditadura e dos torturadores e suas relações com as milícias no Rio de Janeiro tornam a situação ainda mais grave. O assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco, ocorrido durante a intervenção das Forças Armadas no Rio, antes da vitória de Bolsonaro, é uma demonstração de que todos os que defendem os direitos humanos estão em perigo ainda maior agora. Seguiremos exigindo saber quem mandou matar Marielle e a punição dos culpados.

Mas é preciso pontuar, como escreveu Rosana Pinheiro Machado, que embora a extrema direita tenha vencido, feministas, antirracistas e LGBTs também venceram[5]. Avançamos muito nos últimos anos e estes avanços não serão facilmente arrancados. As grandes mobilizações estudantis do dia 15 e 30 de março demonstram que há vida pulsante.

A maioria dos votos em Bolsonaro foi fundamentalmente um voto contra o PT e não a favor dos retrocessos que ele defende. As mulheres não vão voltar à condição de submissas aos maridos e pais, as LGBTs não vão voltar para o armário e a negritude não vai voltar para a senzala.  Isso é inegociável e a unidade a ser construída tem que partir desta premissa. Ainda temos muito que avançar neste terreno, mas a juventude está demonstrando que será linha de frente neste processo de luta.

Além desta construção unitária é preciso que se desenvolva uma alternativa política que não esteja presa à institucionalidade e que apresente um projeto de ruptura com o modelo econômico e político. A aposta no mero crescimento eleitoral, como fez o PT, levou ao desastre que vivemos hoje. A democracia racionada com a qual a burguesia aceita conviver está sempre na berlinda. Confiar no “Estado democrático de direito” e apostar que ganhando as eleições é possível tranquilamente dominá-lo é uma utopia reacionária. Os presídios estão abarrotados de jovens, pobres e negros para demonstrar que nunca o Estado realmente funciona a favor da maioria. Esta realidade não foi sequer arranhada durante os governos do PT.

O lulismo, sintetizado na construção de governos de colaboração de classes, de capitulação às oligarquias políticas, de adesão aos métodos tradicionais de governo, não pode ser a referência desta nova esquerda. Ela tem que ser anticapitalista e também não pode alinhar-se aos regimes do “socialismo realmente existente”. Seu método de luta precisa ser a organização do povo, da classe trabalhadora, dos desempregados, da juventude, para que, através da mobilização, se consiga avançar na consciência e na unidade dos explorados e oprimidos pelo sistema e na busca por democracia real.

Esta nova esquerda precisa ser feminista, antirracista, defensora das causas LGBT+, compreendendo estas lutas como parte fundamental da construção de um novo modo de produção. O capitalismo é patriarcal, é racista e LGBTfóbico e estas características não são secundárias.

A violência do capitalismo no presente contra outros sujeitos rebeldes, a escravidão sob novas formas, a feminização da pobreza, a violência persistente contra as mulheres, o racismo e as novas formas de acumulação por espoliação demonstram que o sistema precisa desconstituir a natureza daqueles a quem ele explora com maior intensidade, como mulheres, negros e imigrantes, com o propósito de ocultar a contradição entre suas promessas de liberdade e prosperidade e a realidade de opressão, miséria e desigualdade cada vez maiores[6].

Assim, a construção de uma estratégia pressupõe a combinação de uma série de táticas, de atuação em movimentos e ocupação de espaços. A participação eleitoral, o engajamento no movimento em geral, sindical, estudantil, popular, camponês, o estímulo a projetos de educação popular – como fazemos ao incentivar o Emancipa – ou coletivos juvenis – como é o caso do Juntos. Mas tais táticas devem estar a serviço de uma estratégia permanente: a defesa da mobilização social pelas reivindicações da classe trabalhadora e do povo pobre e a construção de uma organização política que tenha como disciplina um projeto de governo das organizações dos próprios trabalhadores, sem capitalistas e seus agentes políticos.


[1] KONDER, Leandro. Walter Benjamin: O marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 8.

[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/populacao-carceraria-quase-dobrou-em-dez-anos

[3] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 184.

[4] BENSAID, Daniel. Os irredutíveis: teorema da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 11.

[5] https://theintercept.com/2019/01/08/extrema-direita-feministas-antirracistas-lgbts/

[6] https://movimentorevista.com.br/2018/06/caliba-e-a-bruxa-e-uma-otica-marxista-e-interseccional-do-feminismo/

Este artigo faz parte da edição n. 13 da Revista Movimento. Compre a revista aqui!


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Pedro Micussi