É tempo de parar com o dinheiro deitado para cima dos bancos

Sob o ritmo da política monetária.

Francisco Louçã 17 ago 2019, 14:21

Ao longo dos últimos anos, a política monetária ativista foi festejada como uma ressurreição (pelos mesmos que a condenavam como pecado mortal, mas deixemos esse detalhe). Salvou-se o euro despejando liquidez no sistema financeiro e contendo assim os juros soberanos; salvaram-se as economias baixando o preço do dinheiro e estimulando a despesa. Confirma-se que a política monetária, ao contrário do que nos juravam os economistas ortodoxos, é mesmo a que tem efeito de curtissimo prazo e que, portanto, pode amenizar uma recessão. Ainda bem que foi usada. Pois é tempo de parar com isto e usar outra arma.

A pirueta Powell

A 31 de julho, a Reserva Federal decidiu, pela primeira vez numa década, reduzir a taxa de juro de referência, em 0,25%, depois de subidas desde 2015. Powell, o seu diretor, tinha assegurado que não voltaria a baixá-la. Trump pressionou a redução e queria mais. A isto se tem chamado a “pirueta Powell”. 

Percebe-se o que quer Trump: conjugado com um massivo corte nos impostos dos ricos, espera um efeito de arrastamento no investimento e na confiança, que o ajude nas eleições de 2020. É um jogo arriscado. De facto, a liquidez concentrou-se em aplicações financeiras, as empresas compraram as suas próprias ações. O efeito riqueza é acentuado: o valor das ações sobe, aumentam os rendimentos dos seus proprietários, mas isso é mais desigualdade social para nenhum efeito na capacidade produtiva. Entretanto, o défice norte-americano dispara para um bilião de dólares, quase o dobro do que era em 2016. Os mercados fixam juros de curto prazo maiores do que os de longo prazo e estimam uma hipótese em três de uma recessão no prazo de um ano. Os investimentos imobiliários caem há seis trimestres consecutivos, os não-residenciais começaram a cair também, as encomendas à indústria estão em mínimos. Na Europa, o mesmo: o dinheiro mais barato não criou investimento. Em consequência, a inflação, tanto nos EUA como na zona euro, continua abaixo dos 2%. Os bancos centrais, imagine-se onde chegamos, prometem lutar por mais inflação, só que falham sempre.

Precisamos de (alguma) inflação

Um sistema de juro negativo e com risco de deflação é um susto. Estimula a especulação financeira e cria problemas estruturais novos, sendo o mais grave o financiamento das pensões futuras (as reservas dos descontos dos trabalhadores não podem ser aplicadas com rentabilidade razoável para acompanhar o custo do envelhecimento). A inflação próxima de zero restringe o investimento e pressiona as empresas a lutarem por ganhos em poupança salarial, promovendo mais precariedade. Num mundo em que nos falam de deslumbrantes inovações de alta tecnologia, a economia corre para o vão de escada e para o modelo Uber. Este sistema vive então de rendas e precisa de controlar a política para o dia a dia dos favores do Estado. A corrupção torna-se a essência do negócio. É a base material do autoritarismo. 

Só que os bancos centrais já não podem fazer mais nada. Os instrumentos que têm nas mãos não servem. Por isso, temos piruetas mais espantosas do que a de Powell: Blanchard veio repetir a Sintra que era preciso mais investimento público. Mais despesa, mais défice. Mais investimento com mais Estado. O FMI diz o mesmo.

De facto, do que precisamos é de mais salários. Mais emprego e aumento salarial. Para criar uma procura agregada que gere uma inflação limitada mas acima dos 3%, para que os juros voltem a ser eficazes e para que as economias consigam fazer o reajustamento produtivo que o clima exige. Um choque salarial é a nossa salvação. Não existe outra solução: o problema da falta de procura só se pode resolver com mais salários. Isso não depende dos bancos centrais, depende da capacidade de auto-proteção da democracia.

Artigo originalmente publicado em Expresso. Reprodução da versão publicada no Facebook do autor.


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