Para além do esquematismo: Hong Kong e a persistência da dialética

A complexidade dos desenvolvimentos na região demonstra a necessidade de colocarmos de lado a leitura esquemática e conspiratória do campismo.

Eduardo Carniel 8 ago 2019, 14:44

Nessa segunda-feira (05/08), Hong Kong foi palco da sua primeira greve política em 93 anos. Além da incorporação de setores-chave da economia da região, incluindo os trabalhadores dos setores públicos, a greve foi marcada pela paralisação quase completa das linhas de metrô[1] e pelo cancelamento de centenas de vôos. Durante a tarde, atos de rua que somaram 200 mil trabalhadores iniciaram pacíficos, mas escalaram em tensão e, como já se tornou tradicional nos últimos meses, resultaram em repressão violenta, confrontos físicos e mais de oitenta detidos pelas forças policiais.[2] A massiva greve geral abre uma nova etapa de uma batalha do povo de Hong Kong contra o seu governo e a intervenção de Pequim sobre a sua autonomia.

Os olhos do mundo acompanham Hong Kong com esperança, mas também com incertezas. O estopim da jornada de lutas foi a introdução de uma lei de extradição, que os manifestantes acreditam ser uma ameaça à liberdade de organização na região e um passo a mais rumo a um horizonte de repressão política. A mobilização vem tomando a forma das “revoltas ambíguas”[3] que vem sendo a tônica dos principais processos políticos internacionais após a crise de 2008 – marcada pela recusa à lideranças centralizadas, pela dinamicidade das ações e pela reunião de posições ideológicas distintas, e até opostas, sob a pauta central. A influência de um setor da direita independentista (chamado de “localista”) no movimento, bem como os acenos simpáticos de Trump, trouxe à tona do debate toda sorte de especulações sobre o verdadeiro caráter do movimento, incluindo a leitura do fenômeno como uma ação teleguiada do Ocidente para instabilizar o regime chinês. A complexidade dos desenvolvimentos, contudo, demonstra a necessidade de colocarmos de lado a leitura esquemática e conspiratória do campismo – e mostra como a luta radical pelas liberdades democráticas deve estar na agenda central dos revolucionários internacionalmente, sob risco de imenso retrocesso nas condições subjetivas da luta de classes.

Por que apoiar a luta de Hong Kong?

O histórico de luta da região não é pequeno, e o signo das liberdades democráticas atravessou as suas mobilizações, especialmente depois do massacre da Praça da Paz Celestial, visto por muitos como uma demonstração do potencial autoritário do regime chinês. A tentativa, em 2003, da aprovação de uma Lei de Segurança Nacional teve como resposta manifestações multitudinárias, assim como uma proposta de reforma curricular das escolas, derrotada por uma mobilização estudantil. Mais recentemente, a desaprovação do sufrágio universal na reforma eleitoral que estava sendo articulada resultou no notório “movimento dos guarda-chuvas” em 2014, que em muito se assemelhou às manifestações dos indignados europeus e da primavera árabe. Contudo, as mobilizações de 2014 foram brutalmente reprimidas, o  que conduziu a um refluxo do movimento de massas na região, marcado inclusive pela perseguição política e desmoralização dos ativistas.

A particularidade da formação histórica de Hong Kong, que hoje convive com a China continental sob um regime de “um país, dois sistemas”[4]. abriu espaço para uma oxigenação do debate político que fermentou muitas dessas lutas. Nas últimas décadas, o predomínio do capital monopolista e a formação de uma classe de bilionários também colocou no lugar condições objetivas para um mal-estar social, ampliando em muito a desigualdade social, o que se reverteu na diminuição dos gastos públicos e em uma profunda crise de habitação[5] – fruto de um fluxo de capital vindo da China continental – colocando sob as costas principalmente da juventude condições duras de vida. A combinação da precarização da vida com uma relativa liberdade de organização (especialmente se comparada ao regime chinês) produziu uma camada de ativistas bastante dinâmica e radicalizada, e que foi testada por essas seguidas mobilizações democráticas, e se politizando no processo.

É importante dizer que por mais que tenham predominado formas de mobilização fragmentadas e de orientação confusa, a frequência de greves[6] e protestos[7] importantes[8] de uma perspectiva trabalhadora manteve viva uma política de classe entre a vanguarda da mobilização hong-kongense. Os ativistas da região mantém, inclusive, uma relação importante com a mobilização trabalhista e democrática da própria China continental, garantida pelas liberdades de organização política na região. O aumento das contradições sociais na China a partir do projeto expansionista de Xi Jinping e a possibilidade de agitação civil torna, portanto, para Pequim, o controle político sobre Hong Kong mais importante do que já foi em outros momentos. Demonstrações de que o governo central chinês já dá passos largos nesse sentido se expressam em casos de perseguição como o desaparecimento de cinco livreiros[9] na região, os quais acreditam-se terem sido abduzidos por agentes chineses por repassarem livros banidos no país.

É nesse cenário que se insere a atual mobilização. A lei de extradição apresentada pela líder do executivo local, Carrie Lam, fere princípios fundamentais do acordo de “um país, dois sistemas” no que se refere à autonomia jurídica garantida à região de Hong Kong sobre a China continental. No contexto da crescente instabilidade política da região após 2008, e de uma escalada repressiva por parte tanto do governo local quanto de Pequim, as organizações dos trabalhadores e de direitos humanos enxergam um fechamento de cerco para prevenir que futuras mobilizações possam vir a ameaçar a hegemonia do domínio de Jinping, que se encontra numa encarniçada guerra comercial contra os EUA.

O aprofundamento de uma opressão dupla – do capital burocrático chinês e do capital monopolista hong-kongense – sobre um povo que aprendeu a centralidade da luta nas ruas a partir das últimas mobilizações elevou os riscos do conflito, provocando uma resposta contundente dos manifestantes. A percepção dos limites do modelo de ocupação e protestos trouxe também um aumento da legitimidade da ferramenta das greves e das ações organizadas, e na convocação dos trabalhadores, resultando no sucesso da greve geral desta semana. Da mesma maneira, muitos dos traços xenofóbicos do movimento dos guarda-chuvas se vêem em muito menor escala[10]. Toda essa conjuntura se reflete, portanto, em uma disputa que não é apenas central para as condições de vida e de luta da classe trabalhadora de Hong Kong, mas também da própria China, e se apresenta em um cenário de maior politização do que já foi experienciado. A população, com a juventude na vanguarda e com a entrada em cena das diferentes categorias de trabalhadores, não dá sinais de recuo.

Os limites do campismo

A complexidade da situação regional apresenta desafios para a intervenção da esquerda. É fato que, no seio do movimento, coexistem muitos setores com as suas distintas linhas. Entre eles, o mais preocupante é uma extrema-direita que ganha espaço interpretando o conflito sob uma luz xenofóbica e com traços colonialistas. Em um cenário de intensidade mobilizatória e de rechaço às organizações tradicionais, com os manifestantes preferindo um formato horizontal e descentralizado de mobilização, esse setor conseguiu pautar boa parte do discurso, à custa de uma perda de espaço da oposição liberal tradicional (os pan-democratas) e mesmo de organizações socialistas revolucionárias, que apresenta dificuldades de dialogar com o sentimento localista.

Capitalizando essa incerteza, os setores políticos alinhados ao regime chinês apresentam uma narrativa de combate total ao movimento contra a lei da extradição, pintando-o como organizado por completo por interesses escusos norte-americanos, interessados no potencial econômico da região, e principalmente na desmoralização do governo de Xi Jinping para um favorecimento dos EUA na guerra comercial travada com a China. Além de minimizar a repressão e perseguição política chinesa[11], com a justificativa de que os absurdos da polícia de Hong Kong são exageros da mídia ocidental, relativizam as demandas democráticas da região como desvios liberais implantados pelo colonialismo[12].

É evidente que Trump tem interesses políticos na instabilidade do governo chinês, e que seu projeto de aprofundar a neoliberalização do continente asiático sob domínio americano não representa uma melhora de vida para os trabalhadores hong-kongenses, ou de qualquer lugar. Prova disso é como a concentração de renda e o capital monopolista que já existe em Hong Kong, e que é a regra nos países sob domínio americano ou europeu, só trouxe insegurança econômica a setores pauperizados (e vale dizer que a relação do governo chinês com a elite financeira de Hong Kong costuma ser pautada pela colaboração[13]). Mas a criação da costumeira retórica binarista, “nosso” lado contra o “deles”, força uma redução de qualquer complexidade a um esquema pré-determinado, sem espaço para mediações.

O sentido disso é claro: o enquadramento do debate por essa ótica acarreta, pela lógica formal, um apoio ao governo chinês. Muitas vezes essa linha não é nem disfarçada, deixando claro que a saída para Hong Kong seria uma incorporação por completo ao regime chinês, para garantí-la o crescimento econômico que está sendo assegurado ao resto da China à custa da restrição dos direitos políticos, dos recursos naturais e até mesmo da saúde da população. A consequência dessa posição política é, no fim, a reivindicação de mais repressão sobre os manifestantes, o que não surpreende vindo de setores apoiadores dos sanguinários regimes de Bashar al-Assad na Síria e Daniel Ortega na Nicarágua, também em nome de um suposto “anti-imperialismo”.

As pautas democráticas e a estratégia revolucionária

Mas além de não deixar alternativa fora do apoio a alternativas que passam longe do programa socialista, a lógica campista peca, na sua carência de dialética, em enxergar as pressões e limites exercidos por todos os lados em luta, e as potencialidades que se abrem a partir das suas contradições. Existe verdade, por exemplo, na constatação que boa parte dos partidos pan-democratas receberam financiamento da NED[14]. Mas também é verdade que os protestos de junho não foram convocados por esses partidos, e, dentro da Frente Civil de Direitos Humanos, eles são minoritários. É uma contradição em termos, inclusive, reconhecer que existe uma demanda pela descentralização e horizontalização do movimento, e defender que a organização dele é feita pelos partidos representam a mais tradicional oposição ao governo chinês, e que vêm perdendo espaço tanto eleitoralmente quanto na rua. Grupos com linhas mais à esquerda, como o Student Labour Action Coalition, também vêm ganhando espaço e foram instrumentais, inclusive, para garantir uma solidariedade entre trabalhadores e estudantes que se reverteram na mobilização efetiva desses trabalhadores para a greve geral de segunda, um feito até agora inédito nas mobilizações recentes da região.

As eleições legislativas de 2016, com todas as contradições de um processo eleitoral restrito como o de Hong Kong, servem de exemplo para explorar as potencialidades políticas advindas de uma mobilização radicalizada como foi o movimento dos guarda-chuvas e como, em maior escala, está sendo o movimento contra a lei de extradição. Os setores de extrema-direita elegeram dois parlamentares jovens ligados ao localismo (Yau Wai-Ching e Cheng Chung-tai), enquanto outros três parlamentares (Eddie Chu Hoi Dick, Lau Siu Lai, e Nathan Law Kwun-chung) foram eleitos a partir de uma plataforma de autodeterminação democrática, combinada à defesa dos direitos trabalhistas e de setores marginalizados.

Essa é uma demonstração de como, quando os projetos tradicionais de poder são deslegitimados, o espaço para a polarização, tanto à direita quanto à esquerda, se abre para a disputa. Os exemplos internacionais são muitos, mas a guinada à esquerda do Partido Trabalhista inglês sob a presidência de Jeremy Corbyn e o retorno do “socialismo” ao debate político americano depois do fortalecimento de organizações como o Democratic Socialists of America merecem ser mencionados. É importante dizer que todos esses exemplos, incluindo os parlamentares mais à esquerda de Hong Kong, não são necessariamente alinhados a um projeto revolucionário e seus limites devem ser debatidos; mas a expansão do espectro político além do que antes estava na ordem do dia da política já permite um destravamento da elaboração de novos projetos, especialmente se tensionados pela radicalização da luta dos trabalhadores e do movimento social.

A dificuldade da esquerda conseguir apresentar um projeto comum, que disputa o poder mais centralmente a partir de um programa, é marcante, e deve estar no centro das preocupações desse setor. Contudo, a extrema-direita não está melhor posicionada nessa tarefa. Especialmente a partir da perda de prestígio do setor mais marcadamente xenofóbico do movimento dos guarda-chuvas (o “trio xenofóbico” de Raymond Wong, Chin Wan-kan e Wong Yeung-tat) e da cassação dos mandatos dos dois parlamentares localistas, a base mais tensionada para esse grupo está carente de uma referência política, o que abre espaço também para uma intervenção dos setores democráticos.

Não há dúvida que o setor mais atrasado, pró-Trump, colonialista e subserviente aos mercados, está se movimentando, e rápido. A ambição deles é serem os herdeiros da mobilização que provocou a maior crise de Hong Kong desde a sua devolução à China. Com isso em mente, o que faremos? Parece-nos importante evitar, a todo custo, um cenário de retrocesso na consciência política das massas na região, inclusive considerando o que isso pode significar no aprofundamento das tensões da guerra comercial. E o horizonte político que permite esse acúmulo de forças é o da compreensão do conteúdo de verdade das demandas democráticas da população, e a incorporação dessas demandas a um projeto que coloque uma perspectiva para além da oposição entre o capitalismo burocrático chinês e o capitalismo monopolista que já existe em Hong Kong, cujo aprofundamento é o projeto do imperialismo norte-americano. Se existe, por conta da presença dos setores alinhados aos EUA, um risco de convencimento das massas do projeto trumpista calcado em um rechaço profundo a Jinping, propor a adesão irrestrita ao programa de Jinping contra Trump só vai ser funcional a esse risco, e colocar a esquerda numa posição impossível de vencer.

O próprio Trump já retrocedeu nas sua simpatia ao movimento, não à toa no contexto dos últimos dias, que viram uma agudização do perfil de classe dos manifestantes. Na sua última declaração[15], disse que a China tem a responsabilidade de lidar com os manifestantes, e chamou os protestos de “rebeliões” – uma categoria ativamente combatida pelos manifestantes, pela conotação de ilegalidade que carrega no contexto de Hong Kong. A tentativa do presidente estadunidense de lavar as mãos do conflito no momento em que ele dá um salto na disputa do poder torna o futuro do movimento ainda mais imprevisível, mas também é um sintoma de que ele será pautado pela instabilidade do conjunto do bloco de poder internacional – e carrega consigo as sementes de um projeto de superação da ordem.

A partir das bases da política fundamental da luta de classes e da construção de um futuro socialista para a humanidade, é responsabilidade dos revolucionários no século XXI buscar dialogar com os processos mais dinâmicos e amplos da situação mundial para armar um programa afinado às necessidades de uma classe trabalhadora maior do que nunca, mas que, organizada por um sistema de trabalho complexificado, se manifesta de maneiras complexificadas. São lutas como a de Hong Kong, e muitas outras que hoje polarizam o poder, como a onda internacional da luta das mulheres, que mostram como a burguesia contemporânea abriu mão de qualquer projeto minimamente civilizatório, atribuindo às pautas das liberdades democráticas um potencial estratégico. E o seu princípio básico é a solidariedade ampla e irrestrita com a luta dos trabalhadores e do povo por autodeterminação e emancipação.


[1]https://www.scmp.com/news/hong-kong/politics/article/3021386/hong-kong-braces-commuter-chaos-citywide-strikes-over

[2]https://www.scmp.com/news/hong-kong/politics/article/3021436/hong-kong-protesters-gather-seven-locations-citywide-strike

[3] https://theintercept.com/2018/12/03/franca-protestos-2013-brasil/

[4]https://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780199920082/obo-9780199920082-0009.xml

[5] https://allthatsinteresting.com/hong-kong-housing-crisis

[6] http://edition.cnn.com/2005/BUSINESS/12/17/wto.protests/

[7] https://www.refworld.org/docid/4c52ca8b2d.html

[8] https://www.scmp.com/topics/kwai-tsing-dock-workers-strike

[9] https://www.nytimes.com/2018/04/03/magazine/the-case-of-hong-kongs-missing-booksellers.html

[10]https://www.jacobinmag.com/2019/08/hong-kong-protest-china-carrie-lam-umbrella-movement-extradition-bill-xi-jinping

[11]https://revistaopera.com.br/2019/08/05/o-calice-envenenado-de-hong-kong-quando-civilizacoes-se-chocam/

[12] https://revistaopera.com.br/2019/06/14/o-que-esta-acontecendo-em-hong-kong/

[13] https://www.jacobinmag.com/2019/06/hong-kong-china-protests-extradition-bill

[14] National Endowment for Democracy, uma organização americana que mantém relação com grupos ligados à intervenção política americana pelo mundo.

[15] https://www.reuters.com/article/us-hongkong-protests-trump/trump-says-its-up-to-china-to-deal-with-hong-kong-riots-idUSKCN1US0OR


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Pedro Micussi