Da tragédia social chamada Rio de Janeiro

Sobre como nos anestesiamos diante da desvalorização da vida.

Cleverton Linhares 23 set 2019, 20:30

A ocasião na qual eu escrevo esse texto está marcado por uma sensação coletiva de revolta e tristeza. Dias atrás, uma menina de oito anos foi baleada nas costas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Não vou falar do caso em si, e nem destilar meu ódio e indignação ao governador do estado ou à polícia militar. Esse exercício, aliás, eu faço regularmente em rodas de conversa com amigos ou então no Twitter. Meu alvo aqui não são os políticos ou a corporação. É o cidadão comum mesmo.

E claro, por cidadão comum eu me refiro ao sujeito da classe média que está aí confortável em sua casa olhando o noticiário e repetindo como um boneco de marionete o mesmo discurso das secretarias de segurança pública Brasil afora: “são apenas baixas que acontecem na guerra”.

O Palanque de Sangue

“A polícia via mirar na cabecinha e fogo”, esse foi o discurso que elegeu Wilson Witzel, atual carrasco do estado do Rio de Janeiro. E, por mais contraditório que seja, nunca foi tão revoltante ver um político cumprindo sua promessa de campanha. Afinal, já faz um tempo que helicópteros da PM e snipers espalhados por aí têm mirado na cabecinha de várias crianças, jovens e cidadãos trabalhadores e aberto fogo contra eles.

A diferença dessas crianças, jovens e cidadãos trabalhadores eram negros, pobres moradores das favelas. Pessoa para quem nem o governo, nem a polícia e tampouco o cidadão médio branco que acha que a solução para a violência e o crime é cada vez mais violência tem algum apreço. Para essa gente, essas vidas não importam, desde que seu próprio umbigo esteja em segurança.

E isso faz com que um palanque de sangue seja montado para projetar esse tipo de gente. Nessa hora, o sangue do negro, o sangue do pobre vira o sangue do vagabundo, do traficante. E a voz de quem diz o contrário não importa. Porque daí quem grita clamando por justiça — e aqui eu me refiro a justiça de verdade, não a um justiçamento seletivo — é desqualificado como defensor de bandido.

Esse mesmo sangue vai parar na TV para dar audiência a gente que lucra com o espetáculo que esse tipo de tragédia promove. Com a manipulação da indignação seletiva do povo, cada corpo no chão é comemorado como se fosse um troféu, uma vitória no combate à violência, seja lá que violência é essa.

A Sociedade Das Cascas Vazias

Existem aqueles que ainda ousam se indignar de verdade e se perguntar o que está acontecendo e como foi que chegamos até aqui. Mas ainda são poucos. A grande massa parece ter perdido algo muito precioso diante da tamanha exposição à barbárie que acontece dia após dia.

Cada dia mais eu me ṕergunto se somos seres humanos ou apenas cascas vazias que continuam apenas existindo diante de um mundo que parece cada vez mais caótico. Se ainda há aqueles que se sentem ofendidos com tais atos covardes, uma grande massa parece que perdeu a capacidade de sentir empatia e sensibilidade. Deixaram de ser humanos.

Esse talvez seja o fim mais trágico de nós mesmos enquanto sociedade desde quando nos entendemos como civilização. A vida perdeu valor, o outro agora é apenas mais um número, uma estatística. Não nos importa mais o semelhante. A propriedade agora tem bem mais valor do que o próximo.

Se você é desses incapaz de olhar para a tragédia humana que é a desvalorização da vida, incapaz de se indignar com cada morte que acontece a troco de nada, tenha certeza que em você já não existe mais nada que possa ser chamado de humano. O que há de sua existência é apenas uma casca vazia do que um dia foi um ser provido de coração.


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Pedro Micussi