Clarice Lispector e a ferida grande demais

Sobre a obra de Clarice Lispector.

Iolanda Silva Barbosa 9 dez 2019, 14:40

Em 1977, Clarice Lispector, em seus últimos dias de vida, concedeu sua primeira e única entrevista à televisão[1]. Com a altivez de sua postura enigmática, essa escritora tão lida, estudada e, ainda assim, esfíngica, respondia às perguntas do jornalista Júlio Lerner. Em determinado momento, o entrevistador pergunta: “Você se considera uma escritora popular?”

Clarice, com sua afiada sinceridade, responde simplesmente “não” e, ao ser questionada sobre a razão de pensar assim, ela rebate, com certo tom ressentido e irônico: “Bom, me chamam até de hermética. Como que posso ser popular sendo hermética?”

Para críticos como Silviano Santiago[2], por exemplo, Clarice é uma exceção na literatura brasileira que, segundo ele, se nutre, em grande parte, de temas sociais, da realidade sócio-política do país, explicitando denúncias e misérias.

Hermética é uma acusação que ainda perdura quando se trata da escritora que nesse ano completaria oficialmente noventa e nove anos- dez a mais do que a personagem do conto “Feliz Aniversário”[3] – quase atingindo o centenário que já começa a ser marcado pela organização de eventos, homenagens, reedições de obras e lançamentos de outras tantas análises que ainda hoje buscam compreender a genialidade da escritora e de sua produção.

Embora não se considerasse “popular”, Clarice Lispector se tornou muitíssimo conhecida nos últimos anos, no período em que a maior das fake news era a circulação de frases de motivação atribuídas à ela sem qualquer critério. Tal fenômeno talvez pudesse ser explicado pelo fato de Clarice, de alguma forma, falar a todos ao escrever sobre o que há de mais essencial e complexamente humano. É possivelmente dessa capacidade de melhor compreender e expressar o que muitas vezes é indizível que deriva a estigmatização da escritora como hermética.

No entanto, ainda que Clarice por vezes pudesse ser introspectiva e enigmática, em sua impressionante e exótica fisionomia e postura, não era, de maneira alguma, isolada, alienada ou distante do mundo que a cercava.

Exemplo disso é que, na própria entrevista a Lerner, logo após a declaração citada acima, Clarice lista, entre os contos favoritos que escreveu, o “Mineirinho”, ressaltando o quanto o episódio em que ele se baseia (“um criminoso que morreu com treze balas quando uma só bastava”) lhe causou uma “revolta enorme”: “o primeiro tiro me espanta… o décimo segundo, me atinge, o décimo terceiro sou eu: eu era… eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava, o resto era vontade de matar, era prepotência.”

Nesse conto, a escrita de Clarice evidencia os privilégios concedidos a poucos e denuncia em que medida as desigualdades e injustiças do próprio sistema são responsáveis pela produção diária de vários “Mineirinhos”: “Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.” Na narrativa há espaço ainda para que se possa dizer da importância da consciência: “Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende.”

Por essa obra e por outras passagens de sua vida e produção, Clarice evidencia o quanto estava atenta aos acontecimentos de seu tempo, e o quanto se sensibilizava diante deles, se revoltando e os incorporando à sua própria escrita. Zuenir Ventura, em seu célebre 1968, relata a participação de Clarice em uma importante manifestação de intelectuais e artistas contra a “sexta-feira sangrenta”, às vésperas da Marcha dos Cem Mil: “chegavam ao Palácio Guanabara cerca de 300 artistas, escritores, cineastas, jornalistas, tendo à frente Oscar Niemeyer, Carlos Scliar, Clarice Lispector, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Nara Leão, Paulo Autran, Tônia Carrero, Odete Lara… em pouco tempo 300 pessoas superlotavam o Salão Nobre do Guanabara, formando uma roda dentro da qual ficaram o governador e o porta-voz dos intelectuais.”

Há ainda a belíssima carta que Fernanda Montenegro escreve a Clarice[4], exemplo do intercâmbio que a escritora mantinha com outros artistas de seu tempo e na qual percebe-se a cumplicidade entre as duas, no que tange às questões políticas e sociais da época:

“…Atualmente em São Paulo se representa de arma no bolso. Polícia na porta dos teatros. Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de gente de teatro. É o nosso mundo.

E o nosso mundo, Clarice?

Não este, pelas circunstâncias obrigatoriamente político, polêmico, contundente. Mas aquele mundo que nos fala Tchecov: onde repousaremos, onde nos descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não a verá. Quando eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de ‘canção sem palavra’, tão comum no século XIX. O amor no século XXI é a justiça social. […]

A luta que fizermos, não faremos por nós.”

É, portanto, evidente que Clarice era, além de assombrosa escritora, ser político ativo, e que sua obra não passou à margem das questões sociais. Além de “Mineirinho”, temos ainda obras como o conto “A bela e a fera ou A ferida grande demais”, em que uma jovem e rica senhora se depara com a pobreza, que se personifica em um morador de rua com uma ferida na perna, pedindo à mulher dinheiro para que possa comer:

“Desesperou-se então. Desesperou-se tanto que lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas ‘Justiça Social’. Que morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres? […] Teve uma vontade inesperadamente assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar. Não. O mundo não sussurrava. O mundo gri-ta-va!!! Pela boca desdentada desse homem.”

E ainda:

“Tomava plena consciência de que até agora fingira que não havia os que passam fome, não falam nenhuma língua e que havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem que não sabem. E mesmo que não fingissem iam ter um mal-estar. Como não teriam? Não, nem isso teriam.”

Clarice não era, portanto, alguém que fingisse, desviasse a cabeça ou tampasse os olhos ante a “ferida grande demais” que é a miséria humana, nem ignorou nada disso em sua obra. Os que a acusam do contrário, no entanto, veem em A hora da estrela (1977), sua última obra publicada em vida, a única exceção.

É nessa derradeira obra que Clarice deixa em maior evidência a grande ferida da miséria. Nas palavras da própria escritora durante a entrevista a Lerner, essa é “a história de uma moça… a história de uma inocência pisada, duma miséria anônima”. Macabéa, retirante nordestina perdida na cidade grande, é miserável em todos os sentidos possíveis, a ponto de ignorar sua própria condição, social e humana.

Muito mais do que isso, no entanto, é em A hora da estrela que Clarice lança mão de toda a sua habilidade, sensibilidade e perspicácia crítica, ao colocar em discussão a própria figura do escritor. Durante a entrevista, ao ser questionada sobre o tema, ela defende que o papel do escritor brasileiro à época era o “De falar o menos possível.”. Com Rodrigo S.M., no entanto, narrador-personagem da obra, um escritor burguês que conta a vida de Macabéa, Clarice analisa a relação dos escritores com a realidade social, questionando sua suposta capacidade de a compreender, representar e transformar.

É nesse sentido que, diante da pergunta “Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas?”, ela responde categoricamente: “Não altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa.”

No entanto, o legado de Clarice contradiz tal constatação: a sensibilidade e a capacidade da escrita clariceana é responsável pela formação de gerações de leitores, que encontram em suas palavras não só uma visão “hermética” do mundo, mas sobretudo a imprescindível necessidade de, tal como a própria escritora, sentir uma “revolta enorme” ante as feridas causadas pelo capitalismo. Como disse a própria Clarice: “me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato”.

Se um dos significados que conferia à morte era o do momento em que não estava escrevendo (“Enquanto eu não escrevo eu estou morta”), pode-se dizer que Clarice nunca esteve tão viva: sua obra segue sendo lida, relida e acolhida, eternizando sua autora em cada um de seus leitores.


[1] “Panorama com Clarice Lispector”, TV Cultura.

[2] “A política em Clarice Lispector”, publicado no Jornal do Brasil, em 29 de Novembro de 1997.

[3] Conto que integra o livro Laços de Família (1960)

[4] Carta que faz parte da coletânea Correspondências, organizada por Teresa Montero, da editora Rocco.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 19 nov 2024

Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas

As recentes revelações e prisões de bolsonaristas exigem uma reação unificada imediata contra o golpismo
Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi