Os trotskistas devem ler Trotsky e os não trotskistas também

Uma polêmica com Nildo Ouriques.

Leandro Fontes 21 dez 2019, 15:24


​Recentemente algumas figuras de opinião na esquerda, declaradamente não-trotskistas, passaram a alimentar algumas polêmicas referente às posições de correntes políticas que se reivindicam da tradição da IV Internacional e de suas frações. Até aí nada de anormal. E evidentemente que o debate entre os socialistas é salutar. Porém, uma provocação emitida por Nildo Ouriques precisa ser respondida. A provocação é a seguinte: “os trotskistas devem ler Trotsky”.  

​O companheiro Nildo é parte das fileiras psolistas e se declara como nacionalista-revolucionário. E pelo que se apresenta, reivindica uma estrutura teórica apoiada nas elaborações de Alberto Guerreiro Ramos e na teoria da dependência, desenvolvida por Ruy Mauro Marini,Vânia Bambirra, Theotonio dos Santos, entre outros.Em um vídeo de seu canal, publicado no dia 16 de dezembro deste ano, Nildo foi absolutamente infeliz ao ter na base de seu comentário o tripé: Coréia do Norte, Trotsky e o MES. E no meio de sua crítica, entre outros pontos desrespeitosos que irei tratar mais abaixo, Nildo Ouriques afirma que os trotskistas devem ler Leon Trotsky.   

​Muito bem. Quero desde já concordar com um aspecto – somente este – do vídeo de Nildo. De fato os trotskistas devem ler Trotsky. E agrego que os não-trotskistas (castro-chavistas, neostalinistas,social-democratas…) devem ler também. Talvez,quem sabe, ainda mais.  

​A discussão ao redor do legado de Trotsky e do trotskismo é apaixonante, profunda e inevitavelmente abarca fortes traços de polêmicas históricas. Isto porque, distinto de outros marxistas revolucionários de seu tempo, como Rosa Luxemburgo e Gramsci, Trotsky fundou uma corrente revolucionária internacional para a ação, a luz da necessidade concreta de uma época e que não ficou somente no terreno da contribuição teórica ao marxismo. Mesmo assim, Trotsky contribuiu de modo contundente com o marxismo com pelo menos quatro elaborações monumentais: a teoria da revolução permanente; teoria do movimento desigual e combinado; teoria dos estados operários burocratizados; o programa de transição.

​A IV Internacional foi fundada com o objetivo de ser o fio de continuidade da inestimável experiência do partido bolchevique. Nesta condução, coube a IV a tarefa de manter vivo, em condições extremamente difíceis, o programa da revolução. Isto é, em essência, dar prosseguimento ao conteúdo do manifesto comunista, dos quatro primeiros congressos da III Internacional e do legado do partido bolchevique. 

​Oitenta anos depois de sua fundação, o balanço inegável é que Trotsky acertou na mosca em propor a construção desta corrente. Pois, mesmo após inúmeras tormentas e divisões, o programa da revolução e o legado de Trotsky seguem vivos. O MES reivindica esta tradição teórica e prática. E igualmente o internacionalismo proletário estampado nas bandeiras sem manchas da IV internacional. 

​Isto posto, vamos a polêmica apresentada por Nildo Ouriques, polêmica esta que tem como razão de fundo a crítica contundente do MES a moção de louvor a Kim Jong Un feita pelo vereador do Rio de Janeiro Leonel Brizola Neto.

​No vídeo em questão Nildo inicia sua abordagem apresentando posições comuns no âmbito do partido, tais como o rechaço ao bloqueio econômico dos EUA aos países independentes ou periféricos, a defesa da autodeterminação dos povos e a condenação da intervenção do imperialismo estadunidense frente a outras nações. Com uma ou outro nuance, a essência desses pontos são consensuais dentro do PSOL.  

​Em seguida Nildo recita uma passagem do livro Escritos Latino-americanos de Trotsky: “Lênin dizia e vale a pena repeti-lo que não se pode impor o caminhos russos aos demais países”. E em seguida Nildo comenta: “essa é a posição que marca a idéia da originalidade das revoluções. E que nós temos,portanto, quando analisar o caso venezuelano, o caso cubano, coreano, chinês, etc… entender a dinâmica nacional recomendada por nada menos que por Trotsky”.

​Quero dizer que não se pode generalizar ou simplificar tal afirmação sem agregar o ponto seguinte da elaboração de Lênin e Trotsky. Isto é, a revolução russa como parte da revolução mundial. É preciso contextualizar e qualificar o que Trotsky disse citando Lênin. Afirmo isto como base de compreensão do que está escrito em parte fundamental de sua obra. A conclusão tirada por Trotsky e Lênin está balizada na experiência concreta e na analise e caracterização do desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Um livro do próprio Trotsky que orienta esta discussão é o Balanço e Perspectiva de 1906.  

​Trotsky compreendeu que o Estado da Rússia czarista era atrasado, aristocrático, espoliava os camponeses e os artesões rurais. Além disso, distinto da Inglaterra, da França e da Alemanha, a burguesia russa não tinha luz própria. Essa classe surge de modo dependente do czarismo, que diante da competição comercial com outros países, se vê forçado a investir na indústria. E assim, dá alguma musculatura à tardia burguesia industrial russa. 

​De tal maneira, a burguesia russa estava umbilicalmente ligada ao estado aristocrático e dependente do mesmo, não tendo capacidade de acaudilhar um projeto próprio. Assim sendo, mesmo estando à frente das grandes fábricas e gerindo alguns investimentos capitalistas, os burgueses russos não tinham autonomia e força para nada mais. 

​Por outro lado, nas fábricas – como a Putilov havia uma gigantesca concentração da jovem e homogênea classe operária russa. Oriunda de uma massa de camponeses que se transferiram do campo para a cidade de São Petersburgo. E diferente da burguesia, a classe operária russa demonstrou já em 1905, no ensaio geral, ter um grande potencial revolucionário. 

​Ai esta uma das singularidades da Rússia antes das revoluções de 1917. O Estado russo era conduzido por uma aristocracia arcaica. A burguesia não continha aptidão e nem força para conduzir uma revolução que derruba-se os Romanov e leva-se o país ao novo Estado com um regime democrático burguês. Mas, sintomaticamente, na Rússia existia uma nova e potente classe operária fabril, com força revolucionária e disposta a cumprir as tarefasimediatas e as tarefas históricas. 

​Portanto, na Rússia havia simultaneamente a combinação do que existia de mais atrasado com o que existia de mais avançado na Europa. Essa era a essência da teoria do movimento desigual e combinado. De tal maneira, para Trotsky, a revolução democrática na Rússia – a derrubada do czarismo – seria um episódio da revolução socialista. Isto significava que as tarefas democráticas da revolução seriam realizadas não pela burguesia e sim pela classe operária como vanguarda do processo apoiada pelo campesinato. E o peso social dos trabalhadores iria dar uma dinâmica de continuidade da revolução, avançando para as medidas socialistas. Esta é à base da teoria da revolução permanente. 

​De tal modo, não era possível encaixar a situação russa no modelo da revolução francesa, nem tampouco da revolução alemã de 1848. Isto é, a conclusão que a revolução na Rússia terá aspectos próprios.

​E é assim porque não há uma única dinâmica capitalista e de desenvolvimento das classes em todo o mundo. As trajetórias são diferentes no tocante da formação das burguesias, das pequeno-burguesias e de formação da classe operaria de cada país. Mesmo que haja uma unidade mundial do sistema capitalista. O que existe na realidade é a singularidade de trajetórias das sociedades nacionais. E, sendo assim, as revoluções de cada país terão aspectos próprios. Por isso, não é possível conceber que as mudanças de sociedade se darão tão somente com o mesmo “gabarito”.

​Entretanto, o ponto importante e que Nildo não menciona no vídeo em questão é que para Trotsky e naturalmente para Lênin, a revolução russa é uma particularidade no contexto universal do capitalismo. Ou seja, ela só pode se completar com a revolução na Europa, etc. A revolução na Rússia para Lênin e Trotsky era parte da revolução mundial. E, de fato, a revolução russa despertou uma onda revolucionária na Hungria, Polônia, Alemanha e depois na Áustria e na Itália. E nesse caso, a hipótese do triunfo da revolução principalmente na Alemanha era chave para os destinos russos e da revolução mundial. Mas, lamentavelmente a história não se deu assim. 

​Contudo, o que fica de lição é que a revolução socialista começa nas fronteiras nacionais, mas ela não pode ficar estacionada nesta estação. Isto num contexto de capitalismo mundial. E o que não avança, retrocede. Portanto, a particularidade não pode substituir a universalidade. Por isso, entre outros pontos, o internacionalismo defendido e praticado por Trotsky e Lênin é tão determinante. 

​O terceiro ponto que Nildo aborda, com elementos campistas na caracterização, é a qualidade da Coréia do Norte como país independente. Nildo chega a dizer que Trump foi forçado a reunir com Kim Kim Jong Un por conta da bomba de hidrogênio que os norte-coreanos possuem. Segundo Nildo, de modo acrítico, “a Coréia do Norte pratica uma política externa independente para o bem dos norte-coreanos”. 

​Evidentemente, não temos nenhum acordo com essa visão. Pois, como afirma a nota do MES de repudio à homenagem a Kim Jong Un: “Nosso partido foi fundado e está comprometido programaticamente com os ideais do socialismo e da liberdade e não apoia nenhum regime político que usurpa o poder popular em prol de uma casta burocratizada. A reflexão e a crítica sobre a restauração capitalista nos países socialistas burocratizados são parte importante dos nossos princípios ideológicos, assim como a defesa da democracia direta dirigida pelos trabalhadores”. O fragmento decorrido tem muito haver com o que Nildo dizia: “é preciso ler Trotsky”. Só que aqui estamos literalmente praticando o seu legado. 

​Isto porque em que pese que a formação da Coréia do Norte ocorresse quase uma década depois de Trotsky ter sido assassinado, em que pese esse dado. Trotsky formulou uma teoria que orienta o caminho para ajudar os revolucionários a caracterizar e ter posições corretas frente os países com regimes burocráticos anti-democráticos.  

​Para Trotsky a experiência concreta dos estados operários irá demonstrar que todos eles foram burocratizados. O caso russo, por exemplo: o estado soviético era um estado operário. Porque expropriou a burguesia russa e o czarismo. Em 1924 Lênin morre e em seguida Stalin triunfa no aparelho do partido. Paralelamente a isto, com os efeitos contrários da guerra civil, milhares de soldados e operários que participaram da revolução são mortes,soma-se ainda a crise na economia, da crise de abastecimento e o isolamento da revolução vide a derrota da revolução alemã, o Estado soviético passa a ter que gerir a escassez. Ai está o pontoconcreto. Pois, nesse contexto os funcionários do Estado e do partido único passam exercer um grande poder. Este é o fundamento em essência da burocracia.

​Esta burocracia, originalmente oriunda da classe trabalhadora, servia aos interesses do estado soviético. Porém, passa a defender, diante das circunstâncias e da escassez, seus próprios privilégios. De tal modo, essa burocracia se torna uma casta privilegiada e anti-democrática. Paratanto, o posicionamento chave da casta é o aparelho de Estado. E simultaneamente, no caso das experiências de tipo stalinistas, o partido único. Qualquer imagem e semelhança com a Coréia do Norte não é mera coincidência.   

​Essa burocracia, por assim dizer, é um produto de um refluxo. Isto gera inevitavelmente o ponto controverso de caracterização dos Estados operários burocratizados, que ao mesmo tempo não são nem capitalistas e nem socialistas. Eles estão, fazendo uma analogia, no meio do rio entre uma ponta e outra. Esse era um pouco o diagnóstico de Trotsky frente à burocratização dos estados operários em seu período de vida.

​Mas, Trotsky não parou por aí no seu prognostico, para ele caso não ocorresse uma contra-revolução imperialista ou uma nova revoluçãosocialista anti-burocrática, a burocracia estabilizada para perpetuar seus privilégios iria se converter em uma espécie de “acionista” das burguesias estrangeiras. Esse processo em série iria levar inevitavelmente a restauranção do capitalismo nos países do “socialismo real” pela própria burocracia. E isto foi o que ocorreu. Tal como Trotsky havia “profetizado”. 

​O caso da China é categórico, a casta burocrática do PC chinês transformou de modo graduado e planejado, o país em uma potência capitalista (dominado por um setor estatal) totalmente integrado e atuante na dianteira domercado mundial. Mas, não só. A China atualmente avança para um tipo de neo-imperialismo emergente. Segundo Pedro Fuentes no livro Bem-Vindo ao Marxismo: “Devido ao seu potencial econômico e político, já tem que enfrentar o imperialismo norte-americano no campo geopolítico, especialmente na Ásia, mas economicamente falando entra agressivamente na África, América Latina e também tenta na Europa”. Além disso, não se pode conceber país imperialista sem poderio bélico. E a China, “já é o segundo exército do mundo, com um aumento da potência naval, principalmente navios de guerra e cruzeiros (mais do que os EUA), embora ainda esteja atrasada nossubmarinos e porta-aviões e nos foguetes continentais e espaciais. Mas isto não significa que não tenha uma curva de progresso. Em todo o caso, o seu investimento no setor militar é três vezes inferior ao dos Estados Unidos, embora tenha aumentado muito nos últimos anos. Enquanto o poder militar dos EUA está consolidado, o da China é um imperialismo emergente” (FUENTES, Pedro. Bem-Vindo ao Marxismo, p. 154).

​O caso da China demonstra que não se pode dourar a pílula na analise e caracterização da luta de classes em âmbito mundial. Utilizando somente a régua das relações geopolíticas entre os países e as potências mundiais.  Este é um dos equívocos crassos do campismo neoestalinista atual. Que por um lado releva ou embeleza regimes e governosautoritários como os da China, Ortega na Nicarágua,Maduro na Venezuela e agora o caso “badalado” da Coréia do Norte. Assim como o campismo do período da guerra-fria, esse campismo de traços neoestalinista que só consegue enxergar a luta política internacional entre blocos. E não entre as classes sociais. Nós, pelo contrário, seguimos com a régua da luta de classes. No entanto, isto não quer dizer que no caso de uma agressão imperialista a um determinado país nossa posição será neutra. Evidente que não, em tal caso, nossa posição é de defesa do país atacado por tropas invasoras. 

​Não há novidade de grande impacto nessa elaboração. Na verdade Trotsky formulou a orientação de defesa dos países operários burocratizados frente a uma guerra mundial e a tentativa de invasão imperialista. Entretanto, Trotsky agregou o conceito de revolução política. Isto é, uma revolução dos trabalhadores contra a casta burocrática. E assim recolocar nos trilhos o trem da revolução socialista sob as bases da democracia operária. Tais revoluções chegaram a existir de modo mais cristalino na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Porém, em ambos os casos, as tropas soviéticas esmagaram os levantes populares. 

​Voltando ao eixo da polêmica, a Coréia do Norte, controlada por uma casta burocrática e familiar, ao nosso entender, deve ser defendida frente à tentativa de uma invasão imperialista. Isto não significa que os revolucionários devam ser acríticos ou, pior ainda, fazer exaltações gratuitas a uma ditadura autocrática e que evidentemente não pode ser interpretada nem de longo como representante das bandeiras do socialismo.

​Para concluir, apenas mais dois comentários.

​Nildo afirmou que o trotskismo brasileiro não teoriza sobre a questão nacional. Diferente do trotskismo argentino que teoriza abundantemente sobre a questão nacional. Mais ainda, Nildo declara que esses trotskismos são de origem distinta. Poisbem… Quero dizer que na grande árvore genealógica dos trotskismos, a origem histórica do MES está conectada com a corrente fundada por Nahuel Moreno nos anos 40 na Argentina. Esta corrente, para nós, foi a mais rica do trotskismo latino-americano e deu contribuições importantíssimas na Argentina, no Brasil, no Peru, etc. Além disso, é importante ter em conta que o PSOL contém uma rica elaboração sobre o país. E que o partido, seu estatuto e seu programa foram elaborados justamente por trotskistas. De tal maneira, as afirmações de Nildo Ouriques se desmancham no ar.

​Por último, Nildo diz que Luciana Genro,Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim (“pessoal do MES”) deram um giro para uma política “identitarista” por conta de votos. Isto é inaceitável. Não toleramos ataques de tamanho baixo nível. Nildo deve respeitar as companheiras citadas por ele, que foram forjadas no calor de anos na luta de classes e necessária defesa das mulheres e dos setores oprimidos. Tendo Luciana Genro como figura de proa na fundação do partido. Nildo nitidamente está mal localizado no tempo e no espaço. E igualmente muito mal informado sobre a ação combativa das figuras publicas do MES. Sugiro ao dirigente da corrente Revolução Brasileira se informar junto aos professores e o funcionalismo público de São Paulo,Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro qual é a opinião deles sobre nossas figuras públicas. Depois disso, seria razoável de sua parte um sincero pedido de desculpas a Luciana, Fernanda e Sâmia.


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