A fé como força mobilizadora dos povos
Contribuição do coletivo Cristãos Contra o Fascismo para a tese do Movimento Esquerda Socialista (PSOL).
O último censo do IBGE, realizado em 2010, apontou que 92% dos brasileiros professam uma religião. Os cristãos representam 86,8% dos brasileiros. No mundo todo as religiões também estão em ascensão e pesquisas apontam que em 2020, 90% da população mundial terá uma afiliação religiosa (em 1970 eram 82% e em 2013 eram 88%). Apesar das previsões modernas de que as influências religiosas diminuiriam gradativamente em conjunto com o surgimento de democracias seculares e os avanços da ciência, suas influências permanecem potentes no século XXI. As religiões têm funcionado ao longo da história humana para inspirar e justificar toda a gama de ações, desde o hediondo ao heroico. Compreender essas influências religiosas complexas é uma dimensão crítica da percepção dos assuntos humanos modernos em todo o espectro de atuação local, nacional e global.
As religiões são coleções de ideias, práticas, valores e histórias que estão integradas em culturas e são indissociáveis delas. Assim como a religião não pode ser entendida isoladamente de seus contextos culturais (inclusive políticos), é equivocado cogitar a hipótese de uma boa leitura da realidade do nosso país, da América Latina e do mundo sem considerar suas dimensões religiosas. Da mesma forma que raça, etnia, gênero, sexualidades e classe socioeconômica são sempre fatores de interpretação e compreensão cultural, assim também é a religião.
Por muito tempo o Brasil foi o país onde ‘futebol, política e religião não se discutem’ e o resultado está aí posto: não só o analfabetismo político impede grande parte da população de entender as tramas e as manobras parlamentares que elas assistem no noticiário, como o analfabetismo religioso tem justificado todo o tipo de violência e retrocesso em nome do sagrado. Em nome de Deus a América Latina tem visto suas lideranças democraticamente eleitas serem depostas em oprobriosos golpes de Estado e em todos os continentes se experiência a ascensão de uma ultradireita fascista.
Na política não existe espaço vazio e ao ignorar completamente a fé e a espiritualidade como uma dimensão humana, marcantemente presente na cultura brasileira, sobretudo nas regiões mais humildes e periféricas, a esquerda política de forma pouco estratégica se distanciou daquilo que talvez seja mais caro para as classes populares: sua fé, suas tradições e sua cultura. Permitimos que este espaço fosse sequestrado pela direita.
Para Diane L. Moore, coordenadora do programa de letramento religioso da Harvard Divinity School, é preciso reconhecer que nossa sociedade vive um perigoso e generalizado analfabetismo religioso, cujas consequências seriam a retroalimentação de preconceitos e antagonismos, dificultando os esforços que buscam promover a cooperação, o pluralismo e a coexistência pacífica. Para Moore, a formação sobre as religiões é capaz de diminuir esses efeitos na sociedade 1. Ao que parece, o estudo das religiões é o único campo da ciência em que é permitido ser ignorante, mas estamos pagando um alto preço por, deliberadamente, fazer deste um terreno desconhecido, onde o adversário domina totalmente o jogo de palavras, detém o livro sagrado e se apropria de Deus para atender seus interesses escusos e privados.
Segundo Desmond Tutu, Nobel da Paz e reverendo anglicano da África do Sul, “a fé é como uma faca, pode ser usada para repartir o pão ou para enfiar nas costas de alguém”. Se eles têm usado da fé para ferir, nós podemos usar da fé para repartir o pão e denunciar as injustiças. A fé não deve ser combatida nem ignorada, mas redimida.
Ademais, não temos medo de afirmar que na década de 80 o Partido dos Trabalhadores só conseguiu a dimensão que teve graças ao trabalho anterior das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais operárias, da juventude e da terra, que já estavam profundamente enraizadas nas classes populares.
Afirmamos, portanto, a urgente necessidade do PSOL debruçar-se sobre este tema, estabelecendo uma setorial que possa se ocupar em estruturar uma formação permanente para os filiados e ações estratégicas que diminuam a distância para um diálogo entre o partido e o público religioso, sobretudo evangélico que tem protagonizado os debates públicos da religião. Uma vez que o terreno da religião costuma ser hostil com a esquerda (e vice-versa, sejamos honestos), interessa que o partido invista em figuras e movimentos cristãos que sejam capazes de construir e enraizar essa proposta progressista junto aos fiéis nos templos, nas casas, organizações religiosas e espaços de formação teológicos, bem como o investimento do partido em candidaturas que disputem essa narrativa e esse público. A presença mais frequente de religiosos progressistas nas mesas de debate organizadas pelo partido é fundamental neste processo de desfazer o estranhamento da esquerda com a religião e da fé com uma política comprometida com a classe que vive do trabalho.
1 MOORE, Diane L. Overcoming Religious Illiteracy: A Cultural Studies Approach. Nova Iorque: Palgrave Macmillian, 2007, p. 71