Cartas de longe
A propósito dos 103 anos da Revolução de Fevereiro.
CARTA 1
A PRIMEIRA ETAPA DA PRIMEIRA REVOLUÇÃO
A primeira revolução gerada pela guerra mundial imperialista eclodiu. Esta primeira revolução não será, certamente, a última.
A julgar pelos escassos dados de que se dispõe na Suíça, a primeira etapa desta primeira revolução, concretamente, da revolução russa de 1 de Março de 1917 terminou. Esta primeira etapa certamente não será a última etapa da nossa Revolução.
Como pôde dar-se um tal “milagre”, como foi possível que em apenas oito dias – o período indicado pelo Sr. Miliukov no seu jactancioso telegrama a todos os representantes da Rússia no estrangeiro – se tenha desmoronado uma monarquia que se tinha mantido durante séculos e se manteve, apesar de tudo, durante três anos das maiores batalhas de classe em que participou todo o povo, em 1905-1907?
Não há milagres na natureza nem na história, mas cada viragem brusca da história, incluindo cada revolução, oferece uma tal riqueza de conteúdo, desenvolve combinações de formas de luta e de correlação entre as forças combatentes de tal modo inesperadas e originais que para um espírito filisteu muitas coisas devem parecer milagre.
Para que a monarquia tsarista pudesse desmoronar-se em poucos dias, foi necessária a conjugação de toda uma série de condições de importância histórica mundial. Indiquemos as mais importantes.
Sem os três anos de formidáveis batalhas de classe e a energia revolucionária do proletariado russo, em 1905-1907, seria impossível uma segunda revolução tão rápida, no sentido de ter concluído a sua etapa inicial em poucos dias. A primeira revolução (1905) revolveu profundamente o terreno, arrancou pela raiz preconceitos seculares, despertou para a vida política e para a luta política milhões de operários e dezenas de milhões de camponeses, revelou umas às outras, e ao mundo inteiro, todas as classes (e todos os partidos principais) da sociedade russa na sua verdadeira natureza, na verdadeira correlação dos seus interesses, das suas forças, das suas formas de acção, dos seus objectivos imediatos e futuros. A primeira revolução, e a época contra-revolucionária que se lhe seguiu (1907-1914), revelaram toda a essência da monarquia tsarista, levaram-na até ao “último limite”, puseram a nu toda a podridão e infâmia, todo o cinismo e corrupção da corja tsarista com esse monstro, Raspútine, à frente, toda a brutalidade da família Románov – esses pogromistas que inundaram a Rússia com o sangue de judeus, de operários, de revolucionários, esses latifundiários, “os primeiros entre os seus pares”, que possuíam milhões de deciatinas de terra e que estavam dispostos a todas as brutalidades, a todos os crimes, a arruinar e estrangular qualquer número de cidadãos, para preservar a sua e da sua classe “sacrossanta propriedade”.
Sem a revolução de 1905-1907, sem a contra-revolução de 1907-1914, teria sido impossível uma “autodeterminação” tão exacta de todas as classes do povo russo e dos povos que habitam na Rússia, uma determinação da relação destas classes entre si e com a monarquia tsarista, que se manifestou durante os 8 dias da revolução de Fevereiro-Março de 1917. Esta revolução de oito dias foi “representada”, se nos é permitido exprimir-nos em termos metafóricos, como que depois de uma dezena de ensaios gerais e parciais; os “actores” conheciam-se uns aos outros, os seus papéis, os seus lugares, o seu cenário, completamente, de ponta a ponta, até ao menor matiz das orientações políticas e métodos de acção.
Mas se a primeira, a grande revolução de 1905, que os senhores Gutchkov e Miliukov e os seus lacaios condenaram como uma “grande rebelião”, deu origem doze anos mais tarde à “brilhante”, “gloriosa” revolução de 1917, chamada “gloriosa” pelos Gutchkov e Miliukov porque (por enquanto) lhes deu o poder – era preciso ainda um grande, poderoso, omnipotente “encenador” que, por um lado, estivesse em condições de acelerar em enorme escala o curso da história mundial e, por outro, de gerar crises mundiais, económicas, políticas, nacionais e internacionais de intensidade inaudita. Além de uma extraordinária aceleração da história mundial, eram igualmente necessárias viragens particularmente bruscas desta para que, numa dessas viragens, pudesse voltar-se de um só golpe o carro da monarquia dos Románov manchado de lama e de sangue.
Este “encenador omnipotente, este poderoso acelerador foi a guerra mundial imperialista.
Agora já não há dúvidas de que esta guerra é mundial, pois que os Estados Unidos e a China já hoje estão meio envolvidos nela, e amanhã estarão envolvidos totalmente.
Agora já não há dúvidas de que se trata de uma guerra imperialista de ambos os lados. Só os capitalistas e os seus lacaios, os sociais-patriotas e sociais-chauvinistas, ou, usando em lugar de definições críticas gerais nomes políticos conhecidos na Rússia – só os Gutchkov e os Lvov, os Miliukov e os Chingariov, por um lado, só os Gvózdev, os Potréssov, os Tchkhenkéli, os Kérenski e os Tchkheídze, por outro lado, podem negar ou escamotear este facto. Tanto a burguesia alemã como a anglo-francesa fazem a guerra para saquear outros países, para estrangular os pequenos povos, para obter a supremacia financeira sobre o mundo, para partilhar e redistribuir as colónias, para salvaguardar o regime capitalista agonizante, enganando e desunindo os operários dos diferentes países.
Era objectivamente inevitável que a guerra imperialista acelerasse extraordinariamente e agudizasse de um modo inaudito a luta de classes do proletariado contra a burguesia e se transformasse numa guerra civil entre as classes inimigas.
Esta transformação iniciou-se com a revolução de Fevereiro-Março de 1917, cuja primeira etapa nos mostrou, em primeiro lugar, um golpe conjunto contra o tsarismo desferido por duas forças: por um lado, por toda a Rússia burguesa e latifundiária, com todos os seus lacaios inconscientes e com todos os seus dirigentes conscientes na pessoa dos embaixadores e capitalistas anglo-franceses, e, por outro lado, pelo Soviete de deputados operários, que começou a atrair deputados soldados e camponeses.(N34)
Estes três campos políticos, estas três forças políticas fundamentais: 1) a monarquia tsarista, cabeça dos latifundiários feudais, cabeça da velha burocracia e do generalato; 2) a Rússia burguesa e latifundiária – outubrista-democrata-constitucionalista(N35), atrás da qual se arrastava a pequena-burguesia (os seus representantes principais são Kérenski e Tchkheídze); 3) o Soviete de deputados operários, procurando tornar seus aliados todo o proletariado e toda a massa mais pobre da população – estas três forças políticas fundamentais revelaram-se com toda a clareza mesmo nos oito dias da “primeira etapa”, mesmo para um observador tão afastado dos acontecimentos e obrigado a limitar-se aos escassos telegramas dos jornais estrangeiros como o autor destas linhas.
Mas antes de falar disto mais pormenorizadamente tenho de voltar à parte da minha carta que é consagrada ao factor de maior importância – a guerra mundial imperialista.
A guerra ligou uns aos outros com cadeias de ferro as potências beligerantes, os grupos beligerantes de capitalistas, os “senhores” do sistema capitalista, os escravistas da escravatura capitalista. Um só novelo sangrento – eis o que é a vida sócio-política do momento histórico que atravessamos.
Os socialistas que passaram para o lado da burguesia no início da guerra, todos esses David e Scheidemann na Alemanha, Plekhánov—Potréssov—Gvózdev e Cª na Rússia, gritam muito e a plenos pulmões contra as “ilusões” do Manifesto de Basileia(N36), contra o “sonhofarsa” da transformação da guerra imperialista numa guerra civil. Eles cantaram em todos os tons a força, vitalidade e adaptabilidade que o capitalismo teria revelado, eles que ajudaram os capitalistas a “adaptar”, domar, burlar e dividir as classes operárias dos diferentes países.
Mas “o último a rir é que ri melhor”. A burguesia não foi capaz de adiar muito a crise revolucionária gerada pela guerra. A crise cresce com força irresistível em todos os países, começando pela Alemanha, a qual, na expressão de um observador que a visitou recentemente, atravessa uma “fome organizada de modo genial”, e terminando pela Inglaterra e pela França, onde a fome se avizinha também e onde a organização é muito menos “genial”.
É natural que na Rússia tsarista, onde a desorganização era a mais monstruosa e onde o proletariado é o mais revolucionário (não devido às suas qualidades particulares, mas devido às tradições vivas do “ano cinco”), a crise revolucionária eclodisse mais cedo do que em qualquer outro lado. Esta crise foi acelerada por uma série de derrotas gravíssimas infligidas à Rússia e aos seus aliados. As derrotas desorganizaram todo o antigo mecanismo governamental e todo o antigo regime, provocaram o ódio de todas as classes da população contra ele, exasperaram o exército e destruíram em grande medida o seu velho corpo de comando de carácter aristocrático-fossilizado e burocrático excepcionalmente corrupto, substituíram-no por um corpo jovem, fresco, predominantemente burguês, raznotchinets, pequeno-burguês. As pessoas que abertamente rastejavam perante a burguesia ou simplesmente sem carácter, que gritavam e vociferavam contra o “derrotismo”, estão agora colocadas perante o facto da ligação histórica existente entre a derrota da monarquia tsarista, a mais atrasada e a mais bárbara, e o começo do incêndio revolucionário.
Mas se as derrotas no início da guerra desempenharam o papel de um factor negativo que veio apressar a explosão, a ligação do capital financeiro anglo-francês, do imperialismo anglo-francês, com o capital outubrista-democrata-constitucionalista da Rússia, foi o factor que acelerou esta crise por meio da organização directa de uma conspiração contra Nicolau Románov.
Esta lado da questão, extremamente importante, é passado em silêncio, por razões compreensíveis, pela imprensa anglo-francesa e é maliciosamente salientado pela alemã. Nós, marxistas, devemos serenamente encarar a verdade de frente, sem nos deixarmos perturbar nem pela mentira, pela mentira oficial adocicada e diplomática dos diplomatas e ministros do primeiro grupo de beligerantes imperialistas, nem pelo piscar de olhos e os risinhos dos seus concorrentes financeiros e militares do outro grupo beligerante. Todo o curso dos acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e “ligações”, que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir acordos “separados” e uma paz separada entre Nicolau II (esperamos e faremos o necessário para que seja o último) e Guilherme II, organizaram directamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e democratas-constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do corpo de oficiais do exército e em especial da guarnição de Petersburgo, para depor Nicolau Románov.
Não nos iludamos a nós próprios. Não caiamos no erro dos que estão prontos agora a cantar, à semelhança de alguns “okistas” ou “mencheviques” que oscilam entre o gvozdevismo-potressovismo e o internacionalismo, desviando-se com demasiada frequência para o pacifismo pequeno-burguês, a cantar o “acordo” do partido operário com os democratas-constitucionalistas, o “apoio” daqueles a estes, etc. Essas pessoas, em conformidade com a sua velha e decorada doutrina (que não é, de modo algum, marxista), lançam um véu sobre a conspiração dos imperialistas anglo-franceses com os Gutchkov e Miliukov, que tem como fim depor o “principal guerreiro”, Nicolau Románov, e substituí-lo por guerreiros mais enérgicos, mais frescos, mais capazes.
Se a revolução venceu tão rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar superficial – de um modo tão radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente original, se fundiram, e fundiram-se com uma notável “harmonia”, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogéneos, tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e Cª a tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista, no interesse da sua condução com ainda maior obstinação e violência, no interesse do extermínio de novos milhões de operários e camponeses da Rússia, para a obtenção de Constantinopla… pelos Gutchkov, da Síria… pelos capitalistas franceses, da Mesopotâmia … pelos capitalistas ingleses, etc. Isto por um lado. E, por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a população pobre da cidade e do campo), com carácter revolucionário, pelo pão, pela paz, pela verdadeira liberdade.
Seria simplesmente estúpido falar de “apoio” do proletariado revolucionário da Rússia ao imperialismo democrata-constitucionalista-outubrista, “amassado” com o dinheiro inglês, tão repugnante como o imperialismo tsarista. Os operários revolucionários demoliam, já demoliram em notável medida e continuarão a demolir até aos alicerces a infame monarquia tsarista, sem se deixar entusiasmar nem perturbar se, em certos momentos históricos, de curta duração e devidos a uma conjuntura excepcional, vem ajudá-los a luta de Buchanan, Gutchkov, Miliukov e Cª para substituir um monarca por outro monarca que seja também, de preferência, um Románov!
Foi assim e só assim que as coisas se passaram. Assim e só assim pode ver as coisas o político que não teme a verdade, que pesa serenamente a correlação de forças sociais numa revolução, que avalia cada “momento actual” não só do ponto de vista de toda a sua originalidade presente, de hoje, mas também do ponto de vista das motivações mais profundas, de uma correlação mais profunda dos interesses do proletariado e da burguesia, tanto na Rússia como em todo o mundo.
Os operários de Petersburgo, tal como os operários de toda a Rússia, lutaram abnegadamente contra a monarquia tsarista, pela liberdade, pela terra para os camponeses, pela paz, contra o massacre imperialista. O capital imperialista anglo-francês, no interesse da continuação e intensificação deste massacre, urdiu intrigas palacianas, tramou conspirações com os oficiais da guarda, incitou e encorajou os Gutchkov e Miliukov, montou um novo governo totalmente acabado que tomou o poder logo depois de a luta proletária ter desferido os primeiros golpes contra o tsarismo.
Este novo governo, no qual os outubristas e os “renovadores pacifistas”(N37), ontem cúmplices de Stolípine, o Enforcador, Lvov e Gutchkov, controlam postos realmente importantes, postos de combate, postos decisivos, o exército e o funcionalismo – este governo, no qual Miliukov e outros democratas-constitucionalistas têm assento sobretudo para decoração, para fachada, para adocicados discursos professorais, enquanto o “trudovique”(N38) Kérenski desempenha o papel de balalaica para enganar os operários e camponeses, este governo não é um conjunto fortuito de pessoas.
São os representantes da nova classe que subiu ao poder político na Rússia, a classe dos latifundiários capitalistas e da burguesia, que já há muito dirige economicamente o nosso país e que tanto no tempo da revolução de 1905-1907, como no tempo da contra-revolução de 1907-1914 e finalmente – e com particular rapidez – no tempo da guerra de 1914-1917, se organizou politicamente de maneira extraordinariamente rápida, tomando nas suas mãos tanto as administrações locais como a educação pública, congressos de todo o género, a Duma, os comités industriais de guerra, etc. Esta nova classe estava já “quase totalmente” no poder em 1917; por isso, bastaram os primeiros golpes contra o tsarismo para que ele se desmoronasse, deixando o lugar à burguesia. A guerra imperialista, exigindo uma incrível tensão de forças, acelerou de tal forma o processo de desenvolvimento da atrasada Rússia que nós, de um só golpe (de facto aparentemente de um só golpe), alcançámos a Itália, a Inglaterra, quase a França, obtivemos um governo “de coligação”, “nacional” (isto é, adaptado para realizar o massacre imperialista e para enganar o povo) e “parlamentar”.
Ao lado deste governo – que, do ponto de vista da actual guerra, no fundo não é mais do que um simples agente da “firma” multimilionária: “Inglaterra e França” – surgiu um governo operário, o governo principal não oficial, ainda pouco desenvolvido, relativamente fraco, que exprime os interesses do proletariado e de todo o sector pobre da população da cidade e do campo. É o Soviete de Deputados Operários de Petrogrado, que procura ligação com os soldados e camponeses, bem como com os operários agrícolas e sobretudo com estes, em primeiro lugar, mais do que com os camponeses.
Tal é a verdadeira situação política, que antes de tudo devemos esforçar-nos por estabelecer com o máximo possível de precisão objectiva para basear a táctica marxista sobre os únicos fundamentos sólidos em que ela deve basear-se, sobre os fundamentos dos factos.
A monarquia tsarista foi destruída, mas ainda não recebeu o golpe de misericórdia.
O governo burguês outubrista-democrata-constitucionalista, querendo levar a guerra imperialista “até ao fim”, é na realidade um agente da firma financeira “Inglaterra e França” que é obrigado a prometer ao povo o máximo de liberdades e de esmolas compatíveis com a manutenção do seu poder sobre o povo e com a possibilidade de continuar o massacre imperialista.
O Soviete de Deputados Operários é a organização dos operários, o embrião do governo operário, o representante dos interesses de todas as massas pobres da população, isto é, de 9/10 da população, que luta pela paz, pelo pão, pela liberdade.
A luta destas três forças determina a situação que se apresenta agora e que constitui a transição da primeira etapa da revolução para a segunda.
A contradição entre a primeira e a segunda força não é profunda, é temporária, é suscitada apenas pela conjuntura do momento, por uma viragem brusca dos acontecimentos na guerra imperialista. Todo o novo governo é composto por monárquicos, pois o republicanismo verbal de Kérenski simplesmente não é sério, não é digno de um político, é objectivamente uma politiquice. O novo governo ainda não tinha dado o golpe de misericórdia na monarquia tsarista e já começava a entrar em conluios com a dinastia dos latifundiários Románov. A burguesia do tipo outubrista-democrata-constitucionalista necessita da monarquia como cabeça da burocracia e do exército a fim de proteger os privilégios do capital contra os trabalhadores.
Quem diz que os operários devem apoiar o novo governo no interesse da luta contra a reacção do tsarismo (e é isso o que dizem, aparentemente, os Potréssov, os Gvózdev, os Tchkhenkéli e também, apesar de toda a sua posição evasiva, Tchkheídze) é um traidor aos operários, um traidor à causa do proletariado, à causa da paz e da liberdade. Pois, de facto, precisamente este novo governo já está atado de pés e mãos pelo capital imperialista, pela política imperialista de guerra e de rapina, já iniciou os conluios (sem consultar o povo!) com a dinastia, já trabalha na restauração da monarquia tsarista, já convida o candidato a novo tsar, Mikhaíl Románov, já se preocupa com o reforço do seu trono, com a substituição da monarquia legítima (legal, que se mantém na base da celha lei) por uma monarquia bonapartista, plebiscitária (que se mantém na base do sufrágio popular falsificado).
Não, para uma verdadeira luta contra a monarquia tsarista, para uma verdadeira garantia da liberdade, não somente em palavras nem com promessas dos charlatães Miliukov e Kérenski, não são os operários que devem apoiar o novo governo, mas este governo que deve “apoiar” os operários! Pois a única garantia de liberdade e da destruição do tsarismo até ao fim é armar o proletariado, é consolidar, alargar, desenvolver o papel, a importância e a força do Soviete de deputados operários.
Tudo o resto são frases e mentiras, auto-engano dos politiqueiros do campo liberal e radical, maquinações fraudulentas.
Ajudai a armar os operários, ou pelo menos não o estorveis – e a liberdade da Rússia será invencível, será impossível restaurar a monarquia, estará garantida a república.
De outro modo os Gutchkov e os Miliukov restaurarão a monarquia e nada realizarão, absolutamente nada das “liberdades” prometidas por eles. Tem sido com promessas que todos os politiqueiros burgueses, em todas as revoluções burguesas, têm “alimentado” o povo e enganado os operários.
A nossa revolução é burguesa – portanto os operários devem apoiar a burguesia – dizem os Potréssov, os Gvózdev, os Tchkheídze, como dizia ontem Plekhánov.
A nossa revolução é burguesa – dizemos nós, marxistas – portanto os operários devem abrir os olhos ao povo quanto à fraude dos politiqueiros burgueses, devem ensiná-lo a não acreditar em palavras, a contar unicamente com as suas próprias forças, com a sua própria organização, com a sua própria unidade, com o seu próprio armamento.
O governo dos outubristas e dos democratas-constitucionalistas, dos Gutchkov e Miliukov, não pode – mesmo que o quisessem sinceramente (só crianças podem acreditar na sinceridade de Gutchkov e de Lvov) – não pode dar ao povo nem paz, nem pão, nem liberdade.
A paz – porque é um governo de guerra, um governo de continuação do massacre imperialista, um governo de pilhagem que deseja pilhar a Arménia, a Galícia, a Turquia, tomar Constantinopla, reconquistar a Polónia, a Curlândia, o Território Lituano, etc. Este governo está atado de pés e mãos pelo capital imperialista anglo-francês. O capital russo é simplesmente uma sucursal da “firma” mundial que manipula centenas de milhares de milhões de rublos e que tem o nome “Inglaterra e França”.
O pão – porque este governo é burguês. No melhor dos casos dará ao povo, como deu a Alemanha, uma “fome organizada de modo genial”. Mas o povo não quererá suportar a fome. O povo aprenderá, e sem dúvida aprenderá rapidamente, que há pão e pode ser obtido, mas não por outro modo senão por meio de medidas que não se inclinem perante a santidade do capital e da propriedade da terra.
A liberdade – porque é um governo de latifundiários e capitalistas, que teme o povo e já começou os conluios com a dinastia dos Románov.
Num outro artigo falaremos dos problemas tácticos da nossa conduta imediata para com este governo. Aí mostraremos em que consiste a peculiaridade do momento actual, da transição da primeira etapa da revolução para a segunda, e a razão porque a palavra de ordem, a “tarefa do dia”, neste momento, deve ser: operários, vós realizastes prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o tsarismo, deveis agora realizar prodígios de organização proletária e de todo o povo para preparar a nossa vitória na segunda etapa da revolução.
Limitando-nos agora à análise da luta de classes e da correlação de forças de classe na actual etapa da revolução, devemos levantar ainda a seguinte questão: quais são os aliados do proletariado na actual revolução?
Tem dois aliados: em primeiro lugar, a grande massa da população dos semiproletários e em parte dos pequenos camponeses da Rússia, que conta muitas dezenas de milhões de pessoas e constitui a imensa maioria da população. Esta massa necessita de paz, pão, liberdade, terra. Esta massa estará inevitavelmente sob uma certa influência da burguesia, e sobretudo da pequena-burguesia, da qual mais se aproxima pelas suas condições de vida, vacilando entre a burguesia e o proletariado. As cruéis lições da guerra, que se tornarão tanto mais cruéis quanto mais energicamente Gutchkov, Lvov, Miliukov e Cª conduzirem a guerra, impelirão inevitavelmente esta massa para o proletariado, obrigá-la-ão a segui-lo. Agora, aproveitando a relativa liberdade do novo regime e os Sovietes de deputados operários, devemos esforçar-nos antes de mais e acima de tudo por esclarecer e organizar esta massa. Os Sovietes de deputados camponeses, os Sovietes de operários agrícolas – eis uma das nossas tarefas mais sérias. Ao fazer isto, os nossos objectivos não consistirão só em que os operários agrícolas criem os seus Sovietes próprios, mas também em que os camponeses deserdados e mais pobres se organizem separadamente dos camponeses abastados. As tarefas específicas e as formas específicas da organização agora vitalmente necessária serão tratadas na próxima carta.
Em segundo lugar, o aliado do proletariado russo é o proletariado de todos os países beligerantes e de todos os países em geral. Ele actualmente encontra-se em grande medida abatido pela guerra, e é demasiada a frequência com que falam em nome dele os sociais-chauvinistas que, tal como Plekhánov, Gvózdev, Potréssov na Rússia, se passaram para o lado da burguesia. Mas a libertação do proletariado da sua influência progrediu em cada mês de guerra imperialista, e a revolução russa acelerará, inevitavelmente, este processo a uma escala enorme.
Com estes dois aliados, o proletariado pode avançar e avançará, utilizando as particularidades do momento actual de transição, à conquista primeiro da república democrática e da vitória completa dos camponeses sobre os latifundiários, em lugar da semimonarquia de Gutchkov e Miliukov, e depois para o socialismo, o único que dará aos povos exaustos pela guerra, a paz, o pão e a liberdade.
N. Lénine
Obras Completas de V. I. Lénine, 5ª Ed. em russo, t. 31, pp. 11-22
CARTA 2
O NOVO GOVERNO E O PROLETARIADO
O principal documento de que disponho hoje [8 (21) de Março] é um exemplar do conservadoríssimo e burguesíssimo jornal inglês Times(N39) de 16/III, com um resumo de informações sobre a revolução na Rússia. É claro que não é fácil encontrar fonte mais favoravelmente – para não dizer mais – disposta em relação ao governo de Gutchkov e Miliukov.
O correspondente deste jornal informa de Petersburgo na quarta-feira l (14) de Março – quando ainda existia apenas o primeiro governo provisório(N40), isto é, o Comité Executivo da Duma, composto por 13 pessoas, com Rodzianko à cabeça e com dois «socialistas» (segundo a expressão do jornal), Kérenski e Tchkheídze, entre os seus membros – o seguinte:
«Um grupo de 22 membros eleitos do Conselho de Estado, Gutchkov, Stakhóvitch, Trubetskói, o professor Vassíliev, Grimm, Vernadski e outros, dirigiram ontem um telegrama ao tsar(1*)» rogando-lhe, para salvar a «dinastia», etc., etc., que convocasse a Duma e designasse um chefe do governo que goze da «confiança da nação». «Qual será a decisão do imperador, que deve chegar hoje, é coisa que ainda não se sabe neste momento», escreve o correspondente, «mas uma coisa é perfeitamente indubitável. Se Sua Majestade não satisfizer imediatamente os desejos dos elementos mais moderados entre os seus leais súbditos, a influência presentemente exercida pelo Comité Provisório da Duma de Estado passará inteiramente para as mãos dos socialistas, que querem a instauração de uma república mas que não são capazes de instituir nenhum governo regular e precipitariam inevitavelmente o país na anarquia internamente e na catástrofe externamente…»
Que sabedoria de Estado e que clareza, não é verdade? Como o correligionário inglês (se não dirigente) dos Gutchkov e dos Miliukov compreende bem a correlação das forças e interesses de classe! Os «elementos mais moderados dos leais súbditos», isto é, os latifundiários e capitalistas monárquicos, desejam receber o poder nas suas mãos, tendo perfeita consciência de que de outro modo a «influência» passará para as mãos dos «socialistas». E porquê precisamente dos «socialistas» e não de outros quaisquer? Porquê o gutchkovista inglês vê perfeitamente que na cena política não há e não pode haver nenhuma outra força social. A revolução foi realizada pelo proletariado, ele deu provas de heroísmo, ele derramou sangue, ele arrastou atrás de si as mais amplas massas da população trabalhadora e pobre, ele exige o pão, a paz e a liberdade, ele exige a república, ele simpatiza com o socialismo. Mas o punhado de latifundiários e capitalistas, encabeçado pelos Gutchkov e pelos Miliukov, quer lograr a vontade ou a aspiração da imensa maioria, concluir um acordo com a monarquia em queda, apoiá-la, salvá-la: designai Lvov e Gutchkov, Vossa Majestade, e nós estaremos com a monarquia contra o povo. Eis todo o sentido, toda a essência da política do novo governo!
Mas como justificar o facto de enganar o povo, lográ-lo, violar a vontade da gigantesca maioria da população?
Para isso é preciso caluniá-lo – velho, mas eternamente novo, método da burguesia. E o gutchkovista inglês calunia, insulta, cospe e espuma: «a anarquia internamente, a catástrofe externamente», «nenhum governo regular»!!
Não é verdade, respeitável gutchkovista! Os operários querem a república, e a república é um governo muito mais «regular» do que a monarquia. Que é que garante ao povo que o segundo Románov não arranjará um segundo Raspútine? A catástrofe será trazida precisamente pela continuação da guerra, isto é, precisamente pelo novo governo. A república proletária, apoiada pelos operários agrícolas e pela parte mais pobre dos camponeses e dos citadinos, é a única que pode assegurar a paz, dar o pão, a ordem, a liberdade.
Os gritos contra a anarquia apenas encobrem os interesses egoístas dos capitalistas, que querem lucrar com a guerra e com os empréstimos de guerra, que querem restabelecer a monarquia contra o povo.
«… Ontem», continua o correspondente, «o partido social-democrata publicou um apelo do mais sedicioso conteúdo, e este apelo foi difundido por toda a cidade. Eles» (isto é, o partido social-democrata) «são simples doutrinários, mas o seu poder para o mal é imenso em tempos como os presentes. O Sr. Kérenski e o Sr. Tchkheídze, que compreendem que sem o apoio dos oficiais e dos elementos mais moderados do povo não podem esperar evitar a anarquia, são obrigados a haver-se com os seus camaradas menos prudentes e são insensivelmente empurrados a tomar uma atitude que complica a tarefa do Comité Provisório…»
Oh, grande diplomata gutchkovista inglês! Quão imprudentemente deixou escapar a verdade!
O «partido social-democrata» e os «camaradas menos prudentes» com os quais «Kérenski e Tchkheídze são obrigados a haver-se» são evidentemente o Comité Central ou o Comité de Petersburgo do nosso partido, reconstituído pela conferência de Janeiro de 1912(N41), os mesmos «bolcheviques» a quem os burgueses apodam sempre de «doutrinários» por fidelidade à «doutrina», isto é, aos fundamentos, aos princípios, aos ensinamentos, aos objectivos do socialismo. É claro que o gutchkovista inglês apoda de sedicioso e doutrinário o apelo(N42) e o comportamento do nosso partido por apelar à luta pela república, pela paz, pela completa destruição da monarquia tsarista, por pão para o povo.
Pão para o povo e paz são sedição, mas lugares ministeriais para Gutchkov e Miliukov são «ordem». Velhos e conhecidos discursos!
Mas qual é a táctica de Kérenski e Tchkheídze, segundo a definição do gutchkovista inglês?
Uma táctica vacilante: por um lado, o gutchkovista louva-os, porque eles «compreendem» (bons rapazes! muito espertos!) que sem o «apoio» dos oficiais e dos elementos mais moderados não se pode evitar a anarquia (pelo contrário, nós pensámos até agora e continuamos a pensar, de acordo com a nossa doutrina, com os nossos ensinamentos do socialismo, que são precisamente os capitalistas que introduzem a anarquia e as guerras na sociedade humana, que só a passagem de todo o poder político para o proletariado e o povo mais pobre pode livrar-nos das guerras, da anarquia, da fome!). — Por outro lado, eles «são obrigados a haver-se» «com os seus camaradas menos prudentes», isto é, com os bolcheviques, com o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, reconstituído e unido pelo Comité Central.
Mas qual é a força que «obriga» Kérenski e Tchkheídze a «haver-se» com o partido bolchevique, ao qual eles nunca pertenceram, que eles próprios ou os seus representantes literários (os «socialistas-revolucionários», os «socialistas populares»(N43), os «mencheviques-okistas», etc.) sempre insultaram, condenaram, declararam um insignificante círculo clandestino, uma seita de doutrinários, etc.? Mas onde e quando é que já se viu que em tempo de revolução, em tempo de acção predominantemente das massas, políticos que não estejam loucos «se havenham» com «doutrinários»?
O nosso pobre gutchkovista inglês embrulhou-se, não diz coisa com coisa, não soube nem mentir completamente nem dizer completamente a verdade, e apenas se traiu.
O que obrigou Kérenski e Tchkheídze a haver-se com o partido social-democrata do Comité Central foi a sua influência sobre o proletariado, sobre as massas. O nosso partido revelou estar com as massas, com o proletariado revolucionário, apesar da prisão e da deportação para a Sibéria, já em 1914, dos nossos deputados, apesar das terríveis perseguições e das prisões a que foi sujeito o Comité de Petersburgo pelo seu trabalho ilegal durante a guerra contra a guerra e contra o tsarismo.
«Os factos são teimosos», diz um provérbio inglês. Permita-me que lho recorde, respeitabilíssimo gutchkovista inglês! O facto de que o nosso partido dirigiu ou pelo menos prestou uma ajuda abnegada aos operários de Petersburgo nos grandes dias da revolução teve de ser reconhecido pelo «próprio» gutchkovista inglês. Ele teve igualmente de reconhecer o facto das vacilações de Kérenski e Tchkheídze entre a burguesia e o proletariado. Os gvozdevistas, os «defensistas», isto é, os sociais-chauvinistas, isto é, os defensores da guerra imperialista de rapina, seguem agora inteiramente a burguesia; Kérenski, ao entrar para o ministério, isto é, para o segundo Governo Provisório, também se passou completamente para ela; Tchkheídze não, ele continua a vacilar entre o Governo Provisório da burguesia, os Gutchkov e os Miliukov, e o «governo provisório» do proletariado e das massas mais pobres do povo, o Soviete de Deputados Operários e o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, unido pelo Comité Central.
A revolução confirmou, por conseguinte, aquilo em que nós insistíamos particularmente ao exortar os operários a esclarecerem com nitidez a diferença de classe entre os principais partidos e as principais correntes no movimento operário e na pequena burguesia – aquilo que nós escrevíamos, por exemplo, no Sotsial-Demokrat(N44) de Genebra, n° 47, há quase um ano e meio, em 13 de Outubro de 1915:
«Continuamos a considerar admissível a participação dos sociais-democratas no governo provisório revolucionário juntamente com a pequena burguesia democrática mas não com os revolucionários-chauvinistas. Consideramos revolucionários-chauvinistas aqueles que querem a vitória sobre o tsarismo para obter a vitória sobre a Alemanha – para saquear outros países -, para consolidar a dominação dos grão-russos sobre os outros povos da Rússia, etc. A base do chauvinismo revolucionário é a situação de classe da pequena burguesia. Ela vacila sempre entre a burguesia e o proletariado. Presentemente ela vacila entre o chauvinismo (que a impede de ser consequentemente revolucionária mesmo no sentido da revolução democrática) e o internacionalismo proletário. Os porta-vozes políticos desta pequena burguesia na Rússia neste momento são os trudoviques, os socialistas-revolucionários, a Nacha Zariá (actualmente Delo), a fracção de Tchkheídze, o CO, o Sr. Plekhánov e outros semelhantes. Se na Rússia vencessem os revolucionários-chauvinistas seríamos contra a defesa da “pátria” deles nesta guerra. A nossa palavra de ordem é: contra os chauvinistas ainda que sejam revolucionários e republicanos, contra eles e pela união do proletariado internacional para a revolução socialista.»
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Mas voltemos ao gutchkovista inglês:
«…O Comité Provisório da Duma de Estado», prossegue ele, «apreciando os perigos que tem pela frente, absteve-se intencionalmente de realizar o seu plano original de prender os ministros, embora ontem se pudesse ter feito isso sem a menor dificuldade. A porta ficou assim aberta para negociações, graças ao que nós» («nós» = capital financeiro e imperialismo inglês) «podemos obter todos os benefícios do novo regime sem passar pela terrível provação da Comuna e da anarquia da guerra civil…»
Os gutchkovistas eram a favor de uma guerra civil em seu benefício, são contra a guerra civil em benefício do povo, isto é, da real maioria dos trabalhadores.
«… As relações entre o Comité Provisório da Duma, que representa toda a nação» (e diz-se isto do comité da IV Duma, latifundiária e capitalista!), «e o Soviete de Deputados Operários, que representa interesses puramente de classe» (linguagem de diplomata, que ouviu com um ouvido sábias palavras e quer esconder que o Soviete de Deputados Operários representa o proletariado e os pobres, isto é, 9/10 da população) «mas em tempos de crise como os presentes tem um poder imenso, causaram não poucos receios entre as pessoas razoáveis que encaram a possibilidade de um conflito entre um e outro, cujos resultados poderiam ser demasiado terríveis.
«Felizmente, este perigo foi eliminado, pelo menos pelo presente» (note-se este «pelo menos»!), «graças à influência do Sr. Kérenski, um jovem advogado com grandes capacidades oratórias, que compreende claramente» (diferentemente de Tchkheídze, que também «compreendeu» mas, na opinião do gutchkovista, evidentemente com menos clareza?) «a necessidade de trabalhar juntamente com o Comité no interesse dos seus eleitores da classe operária» (isto é, para ter os votos dos operários, para namorar com eles). «Um acordo satisfatório(N45) foi concluído hoje [quarta-feira, l (14) de Março] graças ao que serão evitadas todas as fricções desnecessárias.»
Que acordo foi esse, se foi concluído por todo o Soviete de Deputados Operários, quais são as suas condições, não sabemos. Desta vez o gutchkovista inglês silenciou completamente o principal. Pois não havia de ser! Não é vantajoso para a burguesia que estas condições sejam claras, precisas, conhecidas de todos – pois então ser-lhe-á mais difícil violá-las!
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As linhas precedentes estavam já escritas quando li duas informações muito importantes. Em primeiro lugar, no conservadoríssimo e burguesíssimo jornal parisiense Le Temps(N46) de 20/III, o texto do apelo do Soviete de Deputados Operários sobre o «apoio» ao novo governo(N47); em segundo lugar, extractos do discurso de Skóbelev na Duma de Estado em l (14) de Março, reproduzidos num jornal de Zurique (Neue Zürcher Zeitung, 1 Mit.-bl., 21/III) de um jornal de Berlim (National-Zeitung(N48)).
O apelo do Soviete de Deputados Operários, se o seu texto não foi deturpado pelos imperialistas franceses, é um documento notável, que mostra que o proletariado de Petersburgo, pelo menos no momento da publicação deste apelo, se encontrava sob a influência predominante dos políticos pequeno-burgueses. Recordo que incluo entre os políticos deste género, como já assinalei acima, pessoas do tipo de Kérenski e Tchkheídze.
No apelo encontramos duas ideias políticas e duas palavras de ordem que lhes correspondem:
Em primeiro lugar. O apelo diz que o governo (o novo) é composto por «elementos moderados». A definição é estranha, de modo nenhum completa, de carácter puramente liberal, não marxista. Também eu estou pronto a concordar que num certo sentido – na carta seguinte mostrarei precisamente em qual – qualquer governo tem agora, depois de completada a primeira etapa da revolução, de ser «moderado». Mas é absolutamente inadmissível esconder a si próprio e ao povo que este governo quer continuar a guerra imperialista, que ele é um agente do capital inglês, que ele quer restaurar a monarquia e reforçar a dominação dos latifundiários e dos capitalistas.
O apelo declara que todos os democratas devem «apoiar» o novo governo e que o Soviete de Deputados Operários pede e mandata Kérenski para participar no Governo Provisório. As condições são a realização das reformas prometidas já durante a guerra, a garantia da «liberdade» do desenvolvimento «cultural» (só??) das nacionalidades (um programa puramente democrata-constitucionalista, de uma pobreza liberal) e a formação de um comité especial para vigiar as actividades do Governo Provisório, comité composto por membros do Soviete de Deputados Operários e por «militares»(N49).
Sobre este comité de vigilância, que se relaciona com as ideias e palavras de ordem da segunda categoria, falar-se-á em particular mais adiante.
Mas a nomeação de um Louis Blanc russo, Kérenski, e o apelo a apoiar o novo governo são, pode dizer-se, um exemplo clássico de traição à causa da revolução e à causa do proletariado, de traição precisamente do género das que deitaram a perder uma série de revoluções do século XIX, independentemente de quão sinceros e dedicados ao socialismo eram os dirigentes e partidários de semelhante política.
O proletariado não pode e não deve apoiar o governo da guerra, o governo da restauração. Para lutar contra a reacção, para resistir às tentativas possíveis e prováveis dos Románov e dos seus amigos para restaurar a monarquia e reunir um exército contra-revolucionário, o que é necessário não é de modo nenhum apoiar Gutchkov e Cª, mas organizar, alargar e reforçar uma milícia proletária, armar o povo sob a direcção dos operários. Sem esta medida principal, fundamental, essencial, não se pode sequer falar nem de resistir seriamente à restauração da monarquia e às tentativas de retirar ou de restringir as liberdades prometidas nem de tomar firmemente a via que conduz à obtenção do pão, da paz, da liberdade.
Se Tchkheídze, que foi juntamente com Kérenski membro do primeiro Governo Provisório (o Comité da Duma composto por 13 pessoas), não entrou no segundo Governo Provisório realmente pelas considerações de princípios do carácter acima mencionado ou de carácter semelhante, isso honra-o. É preciso dizê-lo francamente. Infelizmente, esta interpretação contradiz outros factos e em primeiro lugar o discurso de Skóbelev, que andou sempre de braço dado com Tchkheídze.
Skóbelev disse, a acreditar na fonte acima mencionada, que «o grupo social (? evidentemente, social-democrata) e os operários têm apenas um ligeiro contacto com os objectivos do Governo Provisório», que os operários exigem a paz e que se a guerra continuar haverá de qualquer maneira uma catástrofe na Primavera, que «os operários concluíram com a sociedade (a sociedade liberal) um acordo temporário (eine vorläufige Waffenfreundschaft), embora os seus objectivos políticos estejam tão longe dos objectivos da sociedade como o céu da terra», que «os liberais devem renunciar aos objectivos insensatos (unsinnige) da guerra», etc.
Este discurso é um exemplo daquilo a que chamámos atrás, na citação do Sotsial-Demokrat, «vacilação» entre a burguesia e o proletariado. Os liberais, continuando a ser liberais, não podem «renunciar» aos objectivos «insensatos» da guerra, os quais são determinados, diga-se de passagem, não só por eles mas pelo capital financeiro anglo-francês, uma força mundial cujo poderio se mede em centenas de milhares de milhões. O que é preciso não é «persuadir» os liberais mas explicar aos operários por que é que os liberais se encontram num beco sem saída, por que é que eles estão atados de pés e mãos, por que é que escondem tanto os tratados do tsarismo com a Inglaterra e outros países como os acordos do capital russo com o capital anglo-francês e outros.
Se Skóbelev diz que os operários concluíram um acordo qualquer com a sociedade liberal, sem protestar contra ele, sem explicar da tribuna da Duma o seu dano para os operários, ele aprova desse modo o acordo. E não se devia fazer isso de modo nenhum.
A aprovação, directa ou indirecta, claramente expressa ou tácita, por Skóbelev do acordo do Soviete de Deputados Operários com o Governo Provisório é uma vacilação de Skóbelev para o lado da burguesia. A declaração de Skóbelev de que os operários exigem a paz, de que os seus objectivos estão tão longe dos objectivos dos liberais como o céu da terra é uma vacilação de Skóbelev para o lado do proletariado.
Puramente proletária, verdadeiramente revolucionária de desígnio e profundamente correcto é a segunda ideia política por nós estudada do apelo do Soviete de Deputados Operários, a saber, a ideia da criação do «comité de vigilância» (não sei se é precisamente assim que ele se chama em russo; traduzo livremente do francês), a saber, da vigilância dos proletários e dos soldados sobre o Governo Provisório.
Isso é que é algo real! Isso é que é digno dos operários que derramaram o seu sangue pela liberdade, pela paz, pelo pão para o povo! Isso é que é um passo real na via das garantias reais tanto contra o tsarismo como contra a monarquia e contra os monárquicos Gutchkov–Lvov e Cª! Isso é que é um sintoma de que o proletariado russo, apesar de tudo, avançou em comparação com o proletariado francês em 1848 ao dar «plenos poderes» a Louis Blanc! Isso é que é uma demonstração de que o instinto e a inteligência da massa proletária não se contentam com declamações, com exclamações, com promessas de reformas e de liberdades, com o título de «ministro por mandato dos operários» e outro ouropel análogo, mas procura apoio apenas onde ele existe, nas massas populares armadas, organizadas e dirigidas pelo proletariado, pelos operários conscientes.
É um passo na via certa, mas apenas o primeiro passo.
Se este «comité de vigilância» permanecer uma instituição de tipo puramente parlamentar, apenas político, isto é, uma comissão que «fará perguntas» ao Governo Provisório e receberá respostas dele, então isto continuará a ser um brinquedo, então isto não é nada.
Mas se isto conduzir à criação, imediatamente e custe o que custar, de uma milícia operária realmente de todo o povo, abarcando realmente todos os homens e todas as muralhas, que não substitua apenas a polícia destroçada e eliminada, não torne apenas impossível a sua restauração por nenhum governo, nem monárquico-constitucional nem democrático-republicano, nem em Petrogrado nem em parte nenhuma da Rússia – então os operários avançados da Rússia tomarão realmente a via de novas e grandes vitórias, a via que conduz à vitória sobre a guerra, à realização na prática da palavra de ordem que, como dizem os jornais, resplandecia na bandeira das tropas de cavalaria que desfilaram em Petrogrado na praça diante da Duma de Estado:
«Vivam as repúblicas socialistas de todos os países!»
Exporei na próxima carta as minhas ideias a propósito desta milícia operária.
Tentarei mostrar aí, por um lado, que é precisamente a criação de uma milícia de todo o povo, dirigida pelos operários, que é a palavra de ordem correcta do dia, que corresponde às tarefas tácticas do peculiar momento de transição que a revolução russa (e a revolução mundial) está a atravessar, e por outro lado que para o êxito desta milícia operária ela deve ser, em primeiro lugar, de todo o povo, de massas até ser universal, abarcar realmente toda a população de ambos os sexos apta para o trabalho; em segundo lugar, ela deve passar à combinação de funções não apenas policiais, mas estatais gerais, com funções militares e com o controlo da produção e distribuição social dos produtos.
N. Lénine
Zurique, 22 (9) de Março de 1917.
P. S.: Esqueci-me de datar a minha carta precedente de 20 (7) de Março.
Obras Completas de V. I. Lénine, 5ª ed. em russo, t. 31, pp. 23-33.
CARTA 3
SOBRE A MILÍCIA PROLETÁRIA
A conclusão que tirei ontem relativamente à táctica vacilante de Tchkheídze foi hoje, 10 (23) de Março, plenamente confirmada por dois documentos. O primeiro é um extracto, comunicado por telégrafo de Estocolmo ao Jornal de Frankfurt(N50), do manifesto do CC do nosso partido, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, em Petrogrado. Neste documento não há nem uma palavra nem sobre o apoio ao governo de Gutchkov nem sobre o seu derrubamento; os operários e soldados são exortados a organizar-se em torno do Soviete de Deputados Operários, a elegerem representantes nele para lutar contra o tsarismo, pela república, pela jornada de trabalho de 8 horas, pela confiscação das terras dos latifundiários e das reservas de trigo e, principalmente, pelo fim da guerra de pilhagem. É particularmente importante e particularmente actual a ideia perfeitamente correcta do nosso CC de que para obter a paz são necessárias relações com os proletários de todos os países beligerantes.
Esperar a paz de negociações e relações entre os governos burgueses significaria enganar-se a si próprio e enganar o povo.
O segundo documento é uma notícia, comunicada também por telégrafo de Estocolmo a outro jornal alemão (Jornal de Voss(N51)), sobre uma reunião da fracção de Tchkheídze na Duma com o grupo do trabalho (? Arbeiterfraction) e com os representantes de 15 sindicatos operários em 2 (15) de Março e sobre um apelo publicado no dia seguinte. Dos 11 pontos deste apelo o telégrafo só expõe três: o 1°, a reivindicação da república, o 7°, a reivindicação da paz e do início imediato de negociações sobre a paz, e o 3°, que reivindica «uma participação suficiente de representantes da classe operária russa no governo».
Se este ponto foi exposto com fidelidade, compreendo por que é que a burguesia louva Tchkheídze. Compreendo por que é que ao louvor dos gutchkovistas ingleses no Times, que citei atrás, se juntou o louvor dos gutchkovistas franceses no Le Temps. Este jornal dos milionários e imperialistas franceses escreve em 22/III: «Os chefes dos partidos operários, particularmente o Sr. Tchkheídze, empregam toda a sua influência para moderar os desejos das classes trabalhadoras.»
De facto, reivindicar a «participação» dos operários no governo de Gutchkov–Miliukov é teórica e politicamente um absurdo: participar em minoria significaria ser um simples peão; participar «paritariamente» é impossível, pois não se pode conciliar a exigência de continuar a guerra com a exigência de concluir uma trégua e iniciar negociações de paz; para «participar» em maioria é preciso ter a força para derrubar o governo de Gutchkov–Miliukov. Na prática a reivindicação de «participação» é o pior dos louisblanquismos, isto é, o esquecimento da luta de classes e das suas condições reais, o entusiasmo pelas frases sonoras e ocas, a propagação de ilusões entre os operários, perdendo em negociações com Miliukov ou com Kérenski um tempo precioso que é preciso utilizar para criar uma força de classe e revolucionária real, uma milícia proletária capaz de inspirar confiança a todas as camadas mais pobres da população, que constituem a sua imensa maioria, de as ajudar a organizar-se, de as ajudar a lutar pelo pão, pela paz, pela liberdade.
Este erro do apelo de Tchkheídze e do seu grupo (não digo do partido do CO, do Comité de Organização, porque nas fontes a que tenho acesso não há nem uma palavra sobre o CO) – este erro é tanto mais estranho quanto na reunião de 2 (15) de Março o correligionário mais próximo de Tchkheídze, Skóbelev, segundo informam os jornais, disse o seguinte: «A Rússia está em vésperas de uma segunda, de uma verdadeira (wirklich, literalmente: real) revolução.»
Esta é uma verdade de que Skóbelev e Tchkheídze se esqueceram de tirar conclusões práticas. Não posso julgar daqui, da minha maldita distância, quão próxima está esta segunda revolução. Estando no local, Skóbelev pode ver melhor. Por isso não me coloco a mim próprio questões para cuja resolução não tenho nem posso ter dados concretos. Sublinho apenas a confirmação por uma «testemunha de fora», isto é, que não pertence ao nosso partido, por Skóbelev, da conclusão factual a que cheguei na primeira carta, a saber: a revolução de Fevereiro-Março foi apenas a primeira etapa da revolução. A Rússia atravessa um momento histórico peculiar de transição para a etapa seguinte da revolução ou, segundo a expressão de Skóbelev, para a «segunda revolução».
Se queremos ser marxistas e aprender com a experiência das revoluções de todo o mundo, devemos esforçar-nos por compreender em que consiste precisamente a peculiaridade deste momento de transição e qual é a táctica que decorre das suas particularidades objectivas.
A peculiaridade da situação consiste em que o governo de Gutchkov–Miliukov alcançou a primeira vitória com uma facilidade incomum graças às três importantíssimas circunstâncias seguintes: 1) a ajuda do capital financeiro anglo-francês e dos seus agentes; 2) a ajuda de uma parte das camadas superiores do exército; 3) a organização já pronta de toda a burguesia russa nos zemstvos(N52), nas instituições urbanas, na Duma de Estado, nos comités industriais de guerra, etc.
O governo de Gutchkov encontra-se metido num torno: amarrado pelos interesses do capital, ele é obrigado a visar a continuação da guerra de pilhagem e de roubo, a garantia dos monstruosos lucros do capital e dos latifundiários, a restauração da monarquia. Amarrado pela sua origem revolucionária e pela necessidade de uma passagem abrupta do tsarismo à democracia, sob a pressão das massas famintas e exigindo a paz, o governo é obrigado a mentir, a manobrar, a ganhar tempo, a «proclamar» e prometer o mais possível (as promessas são a única coisa que é muito barata mesmo numa época de furiosa carestia), a cumprir o menos possível, a fazer concessões com uma mão e a retirá-las com a outra.
Em certas circunstâncias, no melhor dos casos para ele, o novo governo pode adiar um pouco a sua queda apoiando-se em todas as capacidades organizativas de toda a burguesia e intelectualidade burguesa russas. Mas mesmo neste caso ele não é capaz de evitar a queda, porque não é possível escapar às garras do monstro horrível da guerra imperialista e da fome, gerado pelo capitalismo mundial, sem abandonar o terreno das relações burguesas, sem passar a medidas revolucionárias, sem apelar ao imenso heroísmo histórico do proletariado russo e mundial.
Daí a conclusão: não poderemos derrubar o novo governo de um só golpe ou, se pudermos fazê-lo (em tempos revolucionários os limites do possível alargam-se mil vezes), não poderemos conservar o poder sem contrapor à magnífica organização de toda a burguesia russa e de toda a intelectualidade burguesa uma organização do proletariado igualmente magnífica, que dirija toda a massa imensa dos pobres da cidade e do campo, do semiproletariado e dos pequenos proprietários.
Independentemente de se a «segunda revolução» já eclodiu em Petrogrado (disse que seria perfeitamente absurda a ideia de avaliar do estrangeiro o ritmo concreto do seu amadurecimento) ou de se foi adiada por algum tempo ou de se começou já em alguns lugares isolados da Rússia (parecem existir algumas indicações disso) – em qualquer caso a palavra de ordem do momento, tanto em vésperas da nova revolução como durante ela e no dia a seguir a ela deve ser a organização proletária.
Camaradas operários! Realizastes prodígios de heroísmo proletário ontem, ao derrubar a monarquia tsarista. Tereis inevitavelmente, num futuro mais ou menos próximo (talvez mesmo agora, quando escrevo estas linhas), de realizar novamente prodígios do mesmo heroísmo para derrubar o poder dos latifundiários e dos capitalistas, que travam a guerra imperialista. Não podereis obter uma vitória sólida nesta próxima revolução, a «verdadeira», se não realizardes prodígios de organização proletária!
A palavra de ordem do momento é a organização. Mas limitar-se a isto seria ainda não dizer nada, pois, por um lado, a organização é sempre necessária, a simples indicação da necessidade de «organizar as massas» ainda não explica absolutamente nada, e por outro lado quem se limitasse a isso seria um acólito dos liberais, porque os liberais querem precisamente, para reforçar a sua dominação, que os operários não vão além das organizações habituais, «legais» (do ponto de vista da sociedade burguesa «normal»), isto é, que os operários apenas se inscrevam no seu partido, no seu sindicato, na sua cooperativa, etc., etc.
Com o seu instinto de classe os operários compreenderam que em tempo de revolução precisam de uma organização completamente diferente, não apenas da organização habitual, tomaram correctamente o caminho apontado pela experiência da nossa revolução de 1905 e da Comuna de Paris de 1871(N53), criaram o Soviete de Deputados Operários, começaram a desenvolvê-lo, alargá-lo e reforçá-lo atraindo deputados dos soldados e, sem dúvida, deputados dos operários assalariados agrícolas e depois (numa ou noutra forma) de todos os camponeses pobres.
A criação de semelhantes organizações em todas as localidades da Rússia sem excepção, para todas as profissões e camadas da população proletária e semiproletária sem excepção, isto é, todos os trabalhadores e explorados, para empregar uma expressão economicamente menos precisa mas mais popular – tal tarefa é de primeiríssima importância, de importância inadiável. Antecipando-me, assinalarei que para toda a massa camponesa o nosso partido (espero falar numa das cartas seguintes sobre o seu papel particular nas organizações proletárias de novo tipo) deve recomendar particularmente sovietes dos operários assalariados e dos pequenos agricultores que não vendam trigo separados dos camponeses abastados: sem esta condição não se pode nem aplicar uma política verdadeiramente proletária em geral(2*) nem abordar correctamente uma importantíssima questão prática de vida ou de morte para milhões de pessoas: a correcta contingentação do trigo, o aumento da sua produção, etc.
Mas, pergunta-se, que devem fazer os sovietes de deputados operários? «Devem ser encarados como órgãos da insurreição, como órgão do poder revolucionário», escrevemos nós no n.° 47 do Sotsial-Demokrat, de Genebra, de 13 de Outubro de 1915.
Esta proposição teórica, deduzida da experiência da Comuna de 1871 e da revolução russa de 1905, deve ser esclarecida e desenvolvida mais concretamente na base das indicações práticas precisamente da etapa actual precisamente da revolução actual na Rússia.
Necessitamos de um poder revolucionário, necessitamos (para um certo período de transição) de um Estado. É nisto que nos distinguimos dos anarquistas. A diferença entre os marxistas revolucionários e os anarquistas não consiste só em que os primeiros são pela grande produção comunista centralizada e os segundos pela pequena produção dispersa. Não, a diferença precisamente quanto à questão do poder, do Estado, consiste em que nós somos pela utilização revolucionária das formas revolucionárias de Estado para lutar pelo socialismo e os anarquistas são contra.
Necessitamos de um Estado. Mas não da espécie de Estado que a burguesia criou por toda a parte, a começar nas monarquias constitucionais e acabar nas repúblicas mais democráticas. E é nisso que consiste a nossa diferença dos oportunistas e kautskistas dos velhos partidos socialistas, que começaram a apodrecer, que deturparam ou esqueceram as lições da Comuna de Paris e a análise destas lições por Marx e Engels(3*).
Necessitamos de um Estado, mas não de um como aquele de que a burguesia necessita, com organismos do poder separados do povo e opostos ao povo sob a forma da polícia, do exército, da burocracia (funcionários). Todas as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram esta máquina de Estado, apenas a transferiram das mãos de um partido para as mãos de outro partido.
Mas o proletariado, se quiser defender as conquistas da revolução actual e avançar, conquistar a paz, o pão e a liberdade, tem de «demolir», para usar as palavras de Marx, esta máquina de Estado «já pronta» e de substituí-la por uma nova, fundindo a polícia, o exército e a burocracia com todo o povo armado. Seguindo a via apontada pela experiência da Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa de 1905, o proletariado deve organizar e armar todos os sectores mais pobres e explorados da população, para que tomem eles próprios directamente nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, constituam eles próprios as instituições deste poder.
E os operários da Rússia tomaram já esta via na primeira etapa da primeira revolução, em Fevereiro-Março de 1917. Toda a tarefa consiste agora em compreender claramente qual é esta nova via, em avançar por ela com audácia, firmeza e tenacidade.
Os capitalistas anglo-franceses e russos queriam «apenas» afastar ou mesmo «assustar» Nicolau II, deixando intacta a velha máquina de Estado, a polícia, o exército, o funcionalismo.
Os operários avançaram e destruíram-na. E agora não só os capitalistas anglo-franceses mas também alemães uivam de raiva e horror ao ver, por exemplo, como os soldados russos fuzilaram os seus oficiais, como aconteceu com o almirante Nepenine, partidário de Gutchkov e Miliukov.
Disse que os operários a destruíram, a velha máquina de Estado. Mais precisamente: começaram a destruí-la.
Tomemos um exemplo concreto.
A polícia foi em parte exterminada e em parte varrida, em Petrogrado e em muitos outros lugares. O governo de Gutchkov e Miliukov não poderá nem restaurar a monarquia nem em geral manter-se no poder sem reconstituir a polícia como organização especial, separada do povo e a ele oposta, de pessoas que se encontram sob o comando da burguesia. Isto é claro como a luz do dia. Por outro lado, o novo governo tem de ter em conta o povo revolucionário, de alimentá-lo com semiconcessões e promessas, de ganhar tempo. Por isso recorre a uma meia-medida: institui uma «milícia popular» com chefes eleitos (isto soa de modo terrivelmente decente! terrivelmente democrático, revolucionário e bonito!) – mas… mas, em primeiro lugar, coloca-a sob o controlo, sob as ordens dos zemstvos e dos órgãos urbanos de auto-administração, isto é, sob as ordens dos latifundiários e capitalistas eleitos de acordo com leis de Nicolau, o Sanguinário, e de Stolípine, o Enforcador!! Em segundo lugar, ao mesmo tempo que chama «popular» à milícia para deitar poeira aos olhos do «povo», de facto ele não chama todo o povo a participar nesta milícia e não obriga os patrões e os capitalistas a pagar aos empregados e operários o salário habitual pelas horas e dias que eles dedicam ao serviço social, isto é, à milícia.
Aí é que está o gato. Eis por que via o governo latifundiário e capitalista dos Gutchkov e Miliukov procura que a «milícia popular» fique no papel e de facto seja reconstituída pouco a pouco, desapercebidamente, uma milícia burguesa, antipopular, inicialmente constituída por «8000 estudantes e professores universitários» (é assim que os jornais estrangeiros descrevem a actual milícia de Petrogrado) – é claramente um brinquedo! – e depois gradualmente pela velha e nova polícia.
Não deixar reconstituir a polícia! Não largar das mãos o poder ao nível local! Criar uma milícia realmente de todo o povo, geral, dirigida pelo proletariado! – tal é a tarefa do dia, tal é a palavra de ordem do momento, que corresponde de igual modo tanto aos interesses correctamente entendidos da luta de classes ulterior, do movimento revolucionário ulterior, como ao instinto democrático de qualquer operário, de qualquer camponês, de qualquer trabalhador e explorado, que não pode deixar de odiar a polícia, os guardas, os polícias rurais, o comando dos latifundiários e polícias sobre homens armados que obtém poder sobre o povo.
De que polícia precisam eles, os Gutchkov e os Miliukov, os latifundiários e capitalistas? A mesma que havia na monarquia tsarista. Todas as repúblicas burguesas e democráticas burguesas do mundo organizaram ou reconstituíram, depois de brevíssimos períodos revolucionários, precisamente tal polícia, uma organização especial de homens armados separados do povo e opostos a ele, subordinados de uma ou de outra forma à burguesia.
De que milícia precisamos nós, o proletariado, todos os trabalhadores? De uma milícia realmente popular, isto é, em primeiro lugar, constituída por toda a população, por todos os cidadãos adultos de ambos os sexos, e, em segundo lugar, de uma milícia que combine em si a função de exército popular com as funções de polícia, com as funções de órgão principal e fundamental da ordem pública e da administração estatal.
Para tornar estas proposições mais compreensíveis tomarei um exemplo puramente esquemático. Nem é preciso dizer que seria absurda a ideia de elaborar qualquer «plano» da milícia proletária: quando os operários e todo o povo se lançarem verdadeiramente em massa ao trabalho de modo prático, elaborá-lo-ão e organizá-lo-ão cem vezes melhor do que quaisquer teóricos. Não proponho um «plano», quero apenas ilustrar a minha ideia.
Em Petrogrado há cerca de 2 milhões de habitantes. Destes mais de metade têm de 15 a 65 anos. Tomemos metade – l milhão. Subtraiamos mesmo um quarto de doentes, etc., que não participam no momento actual no serviço social por causas justificadas. Restam 750 000 pessoas, que, trabalhando na milícia, suponhamos, l dia em cada 15 (e continuando a receber salário dos patrões durante este tempo) constituiriam um exército de 50 000 pessoas.
É este o tipo de «Estado» de que precisamos!
É esta a milícia que seria de facto, e não apenas em palavras, uma «milícia popular».
É este o caminho que devemos seguir para que não seja possível reconstituir nem uma polícia especial nem um exército especial, separado do povo.
Tal milícia seria constituída em 95% por operários e camponeses, exprimiria realmente a inteligência e a vontade, a força e o poder da imensa maioria do povo. Tal milícia armaria e ensinaria realmente a arte militar a todo o povo, salvaguardando, não à maneira de Gutchkov, não à maneira de Miliukov, contra quaisquer tentativas de restauração da reacção, contra quaisquer maquinações dos agentes tsaristas. Tal milícia seria o órgão executivo dos «sovietes de deputados operários e soldados», gozaria do respeito e confiança absolutos da população, porque ela própria seria uma organização de toda a população. Tal milícia transformaria a democracia de bela etiqueta encobrindo a escravização do povo pelos capitalistas e o escárnio do povo pelos capitalistas em verdadeira educação das massas para a participação em todos os assuntos estatais. Tal milícia incluiria os jovens na vida política, ensinando-os, não só pelas palavras mas pelos actos, pelo trabalho. Tal milícia desenvolveria as funções que, falando em linguagem científica, dizem respeito à «polícia do bem-estar», a vigilância sanitária, etc., recrutando para esse trabalho todas as mulheres adultas. E sem incluir as mulheres no serviço social, na milícia, na vida política, sem arrancar as mulheres ao seu ambiente embrutecedor da casa e da cozinha, não é possível assegurar uma verdadeira liberdade, não é possível constituir sequer a democracia, para já não falar do socialismo.
Tal milícia seria uma milícia proletária porque os operários industriais e urbanos obteriam nela uma influência dirigente sobre a massa dos pobres tão natural e inevitavelmente como natural e inevitavelmente ocuparam o lugar dirigente em toda a luta revolucionária do povo tanto em 1905-1907 como em 1917.
Tal milícia asseguraria uma ordem absoluta e uma disciplina baseada na camaradagem e observada sem reservas. E ao mesmo tempo ela, na dura crise vivida por todos os países beligerantes, daria a possibilidade de lutar de modo verdadeiramente democrático contra esta crise, de realizar correcta e rapidamente a contingentação do trigo e dos outros víveres, de aplicar o «trabalho obrigatório geral», a que os franceses chamam agora «mobilização cívica» e os alemães «serviço cívico obrigatório», e sem o qual não é possível – verificou-se que não é possível – curar as feridas que a guerra bandidesca e terrível causou e continua a causar.
Será que o proletariado da Rússia derramou o seu sangue apenas para receber belas promessas apenas de reformas políticas democráticas? Será que ele não vai exigir e conseguir que cada trabalhador veja e sinta imediatamente uma certa melhoria da sua vida? Que cada família tenha pão? Que cada criança tenha uma garrafa de bom leite e que nenhum adulto de uma família rica ouse consumir leite extra enquanto as crianças não estiverem abastecidas? Que os palácios e bairros ricos, abandonados pelo tsar e pela aristocracia, não fiquem desocupados mas dêem abrigo às pessoas sem casa e sem posses? Quem pode realizar estas medidas senão uma milícia de todo o povo em que as mulheres participem necessariamente em igualdade com os homens?
Tais medidas não são ainda o socialismo. Elas dizem respeito à contingentação do consumo e não à reorganização da produção. Elas não seriam ainda a «ditadura do proletariado» mas apenas a «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato pobre». Do que agora se trata não é de as classificar teoricamente. Seria o maior dos erros tentar meter as tarefas práticas complexas, urgentes e em rápido desenvolvimento da revolução no leito de Procusto de uma «teoria» estreitamente entendida em vez de ver na teoria antes de mais e acima de tudo um guia para acção.
Haverá na massa dos operários russos suficiente consciência, firmeza e heroísmo para realizar «prodígios de organização proletária» depois de ter realizado na luta revolucionária directa prodígios de coragem, iniciativa, espírito de sacrifício? Não sabemos, e seria ocioso pormo-nos a adivinhar, pois só a prática dá as respostas a essas perguntas.
Aquilo que sabemos com certeza e aquilo que nós, como partido, devemos explicar às massas é, por um lado, que existe um motor histórico de enorme força, que gera uma crise sem precedentes, a fome, calamidades incontáveis. Este motor é a guerra, que é travada pelos capitalistas de ambos os campos beligerantes com fins de pilhagem. Este «motor» levou toda uma série das nações mais ricas, mais livres e mais instruídas à beira do precipício. Ele obriga os povos a pôr em tensão até ao extremo todas as suas forças, coloca-os numa situação insuportável, coloca na ordem do dia não a realização de quaisquer «teorias» (nem sequer se pode falar disso, e Marx sempre preveniu os socialistas contra isso) mas a aplicação das medidas mais extremas praticamente possíveis, pois sem medidas extremas é a morte, a morte de fome, imediata e certa, de milhões de pessoas.
Nem é preciso demonstrar que o entusiasmo revolucionário da classe avançada pode muito quando a situação objectiva exige medidas extremas a todo o povo. Este aspecto da questão é claramente observado e sentido por todos na Rússia.
É importante compreender que em tempo de revolução a situação objectiva muda tão rápida e bruscamente como corre rapidamente a vida em geral. E nós devemos saber adaptar a nossa táctica e as nossas tarefas imediatas às particularidades de cada situação. Antes de Fevereiro de 1917 o que estava na ordem do dia era a propaganda revolucionária internacionalista corajosa, o apelo às massas para a luta, o seu despertar. Nas jornadas de Fevereiro-Março exigia-se o heroísmo da luta abnegada para esmagar quanto antes o inimigo imediato – o tsarismo. Agora estamos a viver a transição desta primeira etapa da revolução para a segunda, do «embate» com o tsarismo para o «embate» com o imperialismo gutchkoviano-Miliukoviano, latifundiário e capitalista. Na ordem do dia está a tarefa da organização, mas de modo nenhum no sentido estereotipado do trabalho com organizações apenas estereotipadas, mas no sentido da atracção de massas de uma amplitude sem precedentes das classes oprimidas para uma organização e do cumprimento por esta própria organização de tarefas militares, estatais e económicas.
O proletariado abordou e abordará esta tarefa original por diferentes vias. Numas localidades da Rússia a revolução de Fevereiro-Março põe-lhe nas mãos quase um poder completo; noutras começará talvez a criar e a alargar a milícia proletária de maneira «usurpadora»; numas terceiras procurará provavelmente conseguir eleições imediatas na base do sufrágio universal, etc., para as dumas urbanas e zemstvos, para criar a partir deles centros revolucionários, etc., enquanto o crescimento da organização proletária, a aproximação dos soldados dos operários, o movimento no seio do campesinato, a desilusão de muitos e muitos em relação à validade do governo de Gutchkov e Miliukov não aproximar a hora da substituição pelo «governo» do Soviete de Deputados Operários.
Não esqueçamos também que bem perto de Petrogrado temos um dos países mais avançados, de facto republicanos, a Finlândia, que de 1905 a 1917, a coberto das batalhas revolucionárias na Rússia, desenvolveu a democracia de forma relativamente pacífica e conquistou a maioria do povo para o lado do socialismo. O proletariado da Rússia assegurará à República Finlandesa a completa liberdade, incluindo a liberdade de separação (agora dificilmente haverá um só social-democrata que vacile a este respeito, num momento em que o democrata-constitucionalista Róditchev tão indignamente tenta arrancar em Helsingfors pedacinhos de privilégios para os grão-russos(N55)) – e precisamente com isso conquistará a completa confiança e ajuda fraterna dos operários finlandeses à causa proletária de toda a Rússia. Numa obra difícil e grande são inevitáveis os erros – também nós lhes não escaparemos; – os operários finlandeses são melhores organizadores, eles ajudar-nos-ão neste domínio, eles farão avançar à sua maneira a instauração da república socialista.
Vitórias revolucionárias na própria Rússia – êxitos organizativos pacíficos na Finlândia a coberto destas vitórias – passagem dos operários russos às tarefas organizativas revolucionárias a uma nova escala – conquista do poder pelo proletariado e pelas camadas mais pobres da população – estímulo e desenvolvimento da revolução socialista no Ocidente – tal é a via que nos conduzirá à paz e ao socialismo.
N. Lénine
Zurique, 11 (24) de Março de 1917.
Obras Completas de V. I. Lénine, 5ª ed. em russo, t. 31, pp. 34-47.
CARTA 4
COMO ALCANÇAR A PAZ?
Acabo [12 (25) de Março] de ler no Novo Jornal de Zurique (n° 517 de 24/III) a seguinte comunicação transmitida de Berlim pelo telégrafo:
«Comunicam da Suécia que Maxim Gorki enviou tanto ao governo como ao Comité Executivo uma saudação escrita em termos entusiastas. Ele saúda a vitória do povo sobre os senhores da reacção e exorta todos os filhos da Rússia a ajudarem à construção do novo edifício estatal russo. Ao mesmo tempo exorta o governo a coroar a sua obra libertadora com a conclusão da paz. Não deve ser, diz ele, uma paz a todo o custo; a Rússia tem agora menos razões do que nunca para aspirar a uma paz a todo o custo. Deve ser uma paz que dê à Rússia a possibilidade de existir com honra ao lado dos outros povos da Terra. A humanidade já derramou sangue suficiente; seria um grande mérito do novo governo, não só perante a Rússia mas perante toda a humanidade, se ele conseguisse concluir rapidamente a paz.»
É assim que transmitem a carta de M. Gorki.
Experimenta-se um sentimento amargo ao ler esta carta, inteiramente impregnada dos preconceitos filisteus correntes. O autor destas linhas teve ocasião, em encontros com Gorki na ilha de Capri, de o advertir e de lhe censurar os seus erros políticos. Gorki aparava estas censuras com o seu sorriso incomparavelmente encantador e a ingénua declaração: «Sei que sou um mau marxista. E depois, todos nós, artistas, somos um pouco irresponsáveis.» não é fácil discutir contra isto.
Não há dúvidas de que Gorki é um enorme talento artístico, que foi e será muito útil ao movimento proletário mundial.
Mas por que é que Gorki se há-de meter em política?
Em minha opinião, a carta de Gorki exprime preconceitos extraordinariamente difundidos não só da pequena burguesia mas também da parte dos operários que se encontram sob sua influência. Todas as forças do nosso partido, todos os esforços dos operários conscientes, devem ser orientados para uma luta tenaz, persistente e em todos os aspectos contra estes preconceitos.
O governo tsarista começou e travou a presente guerra como uma guerra imperialista, de pilhagem e de rapina, para pilhar e estrangular povos fracos. O governo dos Gutchkov e dos Miliukov é um governo latifundiário e capitalista, que é obrigado a prosseguir e quer prosseguir precisamente esta mesma guerra. Dirigir-se a este governo propondo-lhe que conclua uma paz democrática é o mesmo que dirigir-se a donos de bordéis com pregações de virtude.
Expliquemos o nosso pensamento.
Que é o imperialismo?
Na minha brochura O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, que foi entregue à editora Párus ainda antes da revolução, aceite por ela e publicada na revista Létopis(N56), respondi assim a esta pergunta:
«O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a Terra entre os países capitalistas mais importantes» (capítulo VII da citada brochura, anunciada na Létopis, quando ainda havia censura, com o título: V. Iline, O Capitalismo Moderno(4*)).
A questão reduz-se a que o capital cresceu até atingir enormes dimensões. As associações de um pequeno número de muito grandes capitalistas (cartéis, consórcios, trusts) manipulam milhares de milhões e dividem todo o mundo entre si. Toda a Terra é dividida.
A guerra foi provocada pelo choque dos dois mais poderosos grupos de milionários, o anglo-francês e o alemão, por uma nova partilha do mundo.
O grupo anglo-francês de capitalistas quer em primeiro lugar roubar a Alemanha, tomando-lhe as colónias (quase todas foram já tomadas), e depois a Turquia.
O grupo alemão de capitalistas quer tomar a Turquia para si e compensar-se pela perda das colónias com a conquista de pequenos Estados vizinhos (Bélgica, Sérvia, Roménia).
É esta a verdade autêntica, encoberta com toda a espécie de mentiras burguesas acerca da guerra «libertadora», «nacional», da «guerra pelo direito e a justiça» e outras cantigas semelhantes com que os capitalistas enganam sempre o povo simples.
Não é com o seu dinheiro que a Rússia trava a guerra. O capital russo é participante do capital anglo-francês. A Rússia trava a guerra para pilhar a Arménia, a Turquia, a Galícia.
Gutchkov, Lvov, Miliukov, os nossos actuais ministros, não o são por acaso. São representantes e chefes de toda a classe os latifundiários e dos capitalistas. Estão amarrados pelos interesses do capital. Os capitalistas não podem renunciar aos seus interesses, tal como um homem não pode erguer-se puxando pelo seu próprio cabelo.
Em segundo lugar, Gutckhov-Miliukov e Cª estão amarrados pelo capital anglo-francês. É com dinheiro alheio que eles travaram e travam a guerra. Prometeram, pelos milhares de milhões emprestados, pagar anualmente um juro de centenas de milhões e extorquir este tributo aos operários russos e aos camponeses russos.
Em terceiro lugar, Gutchkov–Miliukov e Cª estão amarrados por tratados directos sobre os objectivos bandidescos desta guerra com a Inglaterra, a França, a Itália, o Japão e outros grupos de bandidos de capitalistas. Estes tratados foram concluídos ainda pelo tsar Nicolau II. Gutchkov–Miliukov e Cª aproveitaram a luta dos operários contra a monarquia tsarista para conquistar o poder, mas confirmaram os tratados concluídos pelo tsar.
Isto foi feito por todo o governo de Gutchkov–Miliukov no seu manifesto, que a Agência Telegráfica de Sampetersburgo comunicou por telégrafo para o estrangeiro em 7 (20) de Março; «o governo» (de Gutchkov e Miliukov) «cumprirá fielmente todos os tratados que nos ligam a outras potências» – afirma-se neste manifesto. O novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Miliukov, declarou o mesmo no seu telegrama de 5 (18) de Março de 1917 a todos os representantes da Rússia no estrangeiro.
Estes tratados são todos secretos, e Miliukov e Cª não querem publicá-los por duas razões: 1) têm medo do povo, que não quer a guerra de pilhagem; 2) estão amarrados pelo capital anglo-francês, que exige o segredo dos tratados. Mas quem quer que leia os jornais e estude o assunto sabe que nestes tratados se fala da pilhagem da China pelo Japão, da Pérsia, da Arménia, da Turquia (particularmente Constantinopla) e da Galícia pela Rússia, da Albânia pela Itália, da Turquia e das colónias alemãs pela França e pela Inglaterra, etc.
Tal é a situação.
Por isso, dirigir-se ao governo de Gutchkov–Miliukov propondo-lhe que conclua o mais depressa possível uma paz honesta, democrática e num espírito de boa vizinhança é o mesmo que um bom padre de aldeia dirigir-se aos latifundiários e aos comerciantes propondo-lhes que vivam «de acordo com a lei de Deus», que amem o seu próximo e que ofereçam a face direita quando lhes batem na esquerda. Os latifundiários e os comerciantes ouvem a pregação, continuam a oprimir e a roubar o povo e extasiam-se por o padre saber tão bem consolar e acalmar os «mujiques»(5*).
É exactamente o mesmo papel – independentemente do facto de terem ou não consciência disso – que desempenham todos aqueles que durante a presente guerra imperialista dirigem piedosos discursos sobre a paz aos governos burgueses. Por vezes os governos burgueses recusam-se de todo em todo a escutar tais discursos e até os proíbem, outras vezes permitem que sejam pronunciados, espalhando à direita e à esquerda juras de que só fazem a guerra para concluir o mais depressa possível a paz «mais justa» e de que o culpado é só o seu inimigo. Falar de paz aos governos burgueses significa de facto enganar o povo.
Os grupos de capitalistas que inundaram a Terra de sangue por causa da partilha das terras, dos mercados, das concessões, não podem concluir uma paz «honrosa». Apenas podem concluir uma paz vergonhosa, uma paz sobre a partilha do saque roubado, sobre a partilha da Turquia e das colónias.
Mas o governo de Gutchkov–Miliukov, além disso, não está de modo geral de acordo com a paz neste momento porque agora ele obteria do «saque» «apenas» a Arménia e uma parte da Galícia, e ele quer pilhar também Constantinopla e ainda reconquistar aos alemães a Polónia, que o tsarismo sempre oprimiu tão desumana e desavergonhadamente. Para mais, o governo de Gutchkov e Miliukov é por natureza apenas um agente do capital anglo-francês, que quer conservar as colónias roubadas à Alemanha e, para além disso, obrigar a Alemanha a devolver a Bélgica e uma parte da França. O capital anglo-francês ajudou os Gutchkov e os Miliukov a afastar Nicolau II para que eles o ajudassem a «vencer» a Alemanha.
Que fazer então?
Para alcançar a paz (e mais ainda para alcançar uma paz realmente democrática, realmente honrosa), é preciso que o poder de Estado não pertença aos latifundiários e aos capitalistas mas aos operários e aos camponeses mais pobres. Os latifundiários e os capitalistas são uma parte ínfima da população; os capitalistas, como toda a gente sabe, estão a lucrar loucamente com a guerra.
Os operários e os camponeses mais pobres são a imensa maioria da população. Eles não lucram com a guerra, antes se arruinam e passam fome. Não estão amarrados nem pelo capital nem por tratados entre os grupos de bandidos capitalistas; eles podem e querem sinceramente pôr fim à guerra.
Se o poder de Estado na Rússia pertencesse aos sovietes de deputados operários, soldados e campo-neses, estes sovietes e o Soviete de Toda Rússia por eles eleito poderiam e certamente concordariam em aplicar o programa de paz que o nosso partido (o Partido Operário Social-Democrata da Rússia) delineou já em 13 de Outubro de 1915 no n° 47 do Órgão Central deste partido, o Sotsial-Demokrat (que se publicava então, devido à opressão da censura tsarista, em Genebra).
Esse programa de paz seria certamente este:
1) O Soviete de Deputados Operários, Soldados e Camponeses de Toda a Rússia (ou o Soviete de Petersburgo, que o substitui provisoriamente) declararia imediatamente não estar ligado por nenhuns tratados nem da monarquia tsarista nem dos governos burgueses.
2) Publicaria imediatamente todos esses tratados, para cobrir publicamente de opróbrio os objectivos de rapina da monarquia tsarista e de todos os governos burgueses sem excepção.
3) Proporia imediata e abertamente a todas as potências beligerantes a conclusão imediata de um armistício.
4) Publicaria imediatamente para informação de todo o povo, as nossas condições de paz, as dos operários e camponeses: libertação de todas as colónias; libertação de todos os povos dependentes, oprimidos e privados de plenos direitos.
5) Declararia não esperar nada de bom dos governos burgueses e proporia aos operários de todos os países que os derrubassem e que entregassem todo o poder de Estado a sovietes de deputados operários.
6) Declararia que as dívidas de milhares de milhões contraídas pelos governos burgueses para travar esta criminosa guerra de rapina podem ser pagos pelos próprios senhores capitalistas e que os operários e camponeses não reconhecem estas dívidas. Pagar juros sobre estes empréstimos significa pagar durante longos anos um tributo aos capitalistas por eles terem amavelmente permitido aos operários que se matassem uns aos outros por causa da partilha do saque capitalista.
Operários e camponeses! – diria o Soviete de Deputados Operários – estais vós de acordo em pagar centenas de milhões de rublos por ano aos senhores capitalistas como recompensa por uma guerra que foi travada pela partilha das colónias africanas, da Turquia, etc.?
Por estas condições de paz o Soviete de Deputados Operários, em minha opinião, estaria de acordo em travar uma guerra contra qualquer governo burguês e contra todos os governos burgueses do mundo, porque seria uma guerra realmente justa, porque todos os operários e trabalhadores de todos os países contribuiriam para o seu êxito.
O operário alemão vê agora que a monarquia belicosa da Rússia é substituída por uma república belicosa, a república dos capitalistas que querem continuar a guerra imperialista e confirmam os tratados de rapina da monarquia tsarista.
Julgai por vós próprios: pode o operário alemão acreditar nesta república?
Julgai por vós próprios: manter-se-á a guerra, manter-se-á a dominação dos capitalistas na Terra, se o povo russo, que foi e é ajudado pelas recordações vivas da grande revolução do «ano cinco», conquistar a plena liberdade e entregar todo o poder de Estado nas mãos dos sovietes de deputados operários e camponeses?
N. Lénine
Zurique, 12 (25) de Março de 1917.
Obras Completas de V. I. Lénine, 5ª ed. em russo, t. 31, pp. 48-54.
CARTA 5
AS TAREFAS DA ORGANIZAÇÃO PROLETÁRIA REVOLUCIONÁRIA DO ESTADO
Nas cartas precedentes as tarefas do proletariado revolucionário da Rússia no momento actual foram delineadas do modo seguinte: (1) saber chegar pela via mais segura à etapa seguinte da revolução ou à segunda revolução, que (2) deve transferir o poder de Estado das mãos do governo dos latifundiários e capitalistas (dos Gutchkov, dos Lvov, dos Miliukov, dos Kérenski) para as mãos de um governo dos operários e dos camponeses mais pobres. (3) Este último governo deve organizar-se segundo o tipo dos sovietes de deputados operários e camponeses, a saber (4) deve demolir, eliminar completamente a velha máquina de Estado habitual em todos os Estados burgueses, o exército, a polícia, a burocracia (funcionalismo), substituindo esta máquina (5) por uma organização do povo armado que não seja apenas de massas mas seja universal. (6) Apenas um governo assim, «assim» pela sua composição de classe («ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato») e pelos seus órgãos de governação («milícia proletária») está em condições de resolver com êxito a principal tarefa do momento, uma tarefa extraordinariamente difícil e absolutamente inadiável, a saber: alcançar a paz, e não uma paz imperialista, não um acordo entre potências imperialistas sobre a partilha do saque roubado pelos capitalistas e pelos seus governos, mas uma paz realmente sólida e democrática, que não é alcançável sem a revolução proletária numa série de países. (7) Na Rússia a vitória do proletariado só é realizável no futuro mais próximo com a condição de que o seu primeiro passo seja o apoio aos operários da imensa maioria do campesinato na sua luta pela confiscação de toda a propriedade latifundiária (e pela nacionalização de toda a terra, se considerarmos que o programa agrário dos «104»(N57) continua a ser no fundo o programa agrário do campesinato). (8) Em ligação com essa revolução camponesa e com base nela são possíveis e necessários outros passos do proletariado em aliança com a parte mais pobre do campesinato, passos visando o controlo da produção e da distribuição dos produtos mais importantes, a introdução do «trabalho obrigatório geral», etc. Estes passos são ditados de modo absolutamente necessário pelas condições que a guerra criou e que o pós-guerra agudizará mesmo em muitos aspectos; e no seu conjunto e no seu desenvolvimento estes passos seriam a transição para o socialismo, que na Rússia é irrealizável directamente, de um só golpe, sem medidas transitórias, mas é plenamente realizável e urgentemente necessária em resultado de medidas transitórias desse tipo. (9) A tarefa da organização imediata e especial no campo de sovietes de deputados operários, isto é, sovietes de operários assalariados agrícolas, separados dos sovietes dos restantes deputados camponeses, apresenta-se com extrema urgência.
Tal é, em resumo, o programa por nós delineado, baseado na consideração das forças de classe da revolução russa e mundial e também na experiência de 1871 e 1905.
Tentemos agora lançar um olhar geral a este programa no seu conjunto, detendo-nos de passagem no modo como este tema foi abordado por K. Kautsky, o mais importante teórico da «2ª» (1889-1914) Internacional e mais destacado representante da corrente, observada em todos os países, do «centro», do «pântano», que vacila entre os sociais-chauvinistas e os internacionalistas revolucionários. Kautsky abordou este tema na sua revista Tempos Novos (Die Neue Zeit, número de 6 de Abril de 1917, pelo novo calendário), no artigo «As perspectivas da revolução russa».
«Antes de mais», escreve Kautsky, «devemos esclarecer para nós próprios as tarefas que se colocam ao regime (organização estatal) proletário revolucionário.»
«Duas coisas», prossegue o autor, «são urgentemente necessárias ao proletariado: a democracia e o socialismo.»
Esta tese absolutamente indiscutível é infelizmente apresentada por Kautsky numa forma excessivamente geral, de modo que no fundo ela nada dá nem nada esclarece. Miliukov e Kérenski, membros do governo burguês e imperialista, subscreveriam de bom grado esta tese geral, um na sua primeira parte, o outro na segunda…(6*)
Escrito em 26 de Março (8 de Abril) de 1917.
Obras Completas de V. I. Lénine, 5ª ed. em russo, t. 31, pp. 55-57.
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/03/20.htm
Notas de rodapé:
(N33) Cartas de Longe: cinco cartas escritas por Lénine na Suíça em fins de Março e princípios de Abril de 1917. Mal foram recebidos os telegramas que confirmavam os acontecimentos revolucionários na Rússia e a composição do Governo Provisório burguês e do Comité Executivo do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, Lénine começou a escrever para o Pravda, atribuindo particular importância ao trabalho organizativo e de esclarecimento através da imprensa. As ideias da quinta carta, que não foi escrita, foram desenvolvidas por Lénine nas obras Cartas sobre a Táctica (ver Obras Escolhidas em Seis Tomos, t.3, pp. 120-131) e As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (ver Obras Escolhidas em três tomos. t. 2, pp. 21-48)
(N34) Lénine refere-se ao Soviete de Deputados Operários de Petrogrado, surgido nos primeiros dias da revolução de Fevereiro. As eleições para o Soviete processaram-se de modo espontâneo, primeiro em fábricas isoladas, abarcando ao fim de alguns dias todas as empresas. Durante o dia 27 de Fevereiro (12 de Março), antes de se realizar a primeira reunião do Soviete, os mencheviques K. Gvózdev, B. Bodgánov e os membros da Duma de Estado N. Tchkheídze e M. Skóbelev declararam-se Comité Executivo Provisório do Soviete, querendo assegurar para si a direcção do Soviete. Na primeira reunião do Soviete, realizada na noite desse dia, foi formado um praesidium (N. Tchkheídze, A. Kérenski, M. Skóbelev). No Comité Executivo foram reservados lugares para representantes dos comités centrais e de Petrogrado dos partidos socialistas. O Soviete declarou-se órgão dos deputados operários e soldados e era de facto um centro nacional. Em Março o Comité Executivo foi completado com representantes dos soldados. Nas reuniões do Comité Executivo participavam, com voto consultivo, as fracções sociais-democratas de todas as Dumas de Estado, representantes do Bureau Central dos Sindicatos, representantes dos sovietes de bairro e outros. Apesar de a direcção do Soviete estar nas mãos de conciliadores, o Soviete tomou, sob a pressão dos operários e soldados, uma série de medidas revolucionárias: prisão dos representantes do velho poder e libertação das prisões dos presos políticos. Em 1 (14) de Março o Soviete publicou uma ordem que desempenhou um enorme papel na revolucionarização do exército. Segundo esta ordem, nas actuações políticas as unidades militares ficavam subordinadas ao Soviete, os armamentos de toda a espécie eram colocados à disposição e sob o controlo dos comités de companhia e de batalhão, as ordens do Comité Provisório da Duma de Estado só deviam ser cumpridas caso não entrassem em contradição com as ordens do Soviete, etc. Contudo, na noite de 1 para 2 (14 para 15) de Março os conciliadores do Comité Executivo do Soviete cederam voluntariamente o poder à burguesia, ratificando a composição do Governo Provisório, constituído por burgueses e latifundiários. Este acto de capitulação perante a burguesia não foi conhecido no estrangeiro, pois nem todos os jornais eram deixados passar. Lénine só teve conhecimento disso depois de chegar à Rússia.
(N35) Lénine chama latifundista-outubrista-democrata-constitucionalista ao Governo Provisório burguês, que foi formado em 2 (15) de Março de 1917; a maioria dos lugares era ocupada por representantes da grande burguesia e dos latifundiários. Outubristas (União de 17 de Outubro): partido contra-revolucionário dos grandes latifundiários e da burguesia comercial-industrial da Rússia em 1905-1917. Deveu o seu nome ao manifesto tsarista de 17 de Outubro de 1905, que respondia completamente às suas aspirações políticas. Os outubristas apoiavam completamente a política reaccionária do governo tsarista. Depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro, os outubristas tornaram-se um partido governante, lutaram activamente contra a revolução socialista que amadurecia na Rússia, e depois da revolução socialista de Outubro combateram com todas as forças o poder soviético. Democratas-constitucionalistas: membros do partido democrático-constitucionalista, partido dirigente da burguesia liberal monárquica da Rússia. O partido foi fundado em 1905; dele faziam parte elementos da burguesia, dos latifundiários e da intelectualidade burguesa. Para lograr as massas trabalhadoras adoptaram o nome enganador de «Partido da Liberdade do Povo», embora de facto não fossem além da reivindicação de uma monarquia constitucional. Durante a Primeira Guerra Mundial os democratas-constitucionalistas apoiaram activamente a política externa de conquista do governo tsarista; durante a revolução democrática burguesa de Fevereiro tentaram salvar a monarquia. Ocupando uma posição dirigente no Governo Provisório burguês, os democratas-constitucionalistas aplicaram uma política antipopular e contra-revolucionária. Depois da vitória da revolução socialista de Outubro combateram activamente o poder soviético.
(N36) Manifesto de Basileia: manifesto sobre a guerra adoptado em 25 de Novembro de 1912 no Congresso Socialista Internacional Extraordinário de Basileia. O congresso reuniu-se para decidir da questão da luta contra o crescente perigo de uma guerra imperialista mundial. O manifesto adoptado pelo congresso revelava os objectivos de pilhagem da guerra que os imperialistas preparavam e exortava os operários de todos os países a lutar decididamente pela paz e contra a ameaça de guerra. No caso de surgir uma guerra imperialista, o manifesto recomendava aos socialistas que utilizassem a crise económica e política causada pela guerra para lutarem pela revolução socialista.
(N37) «Renovadores pacíficos»: membros do partido da «renovação pacífica», organização monárquica constitucional da grande burguesia e dos latifundiários, formada em 1906 depois da dissolução da I Duma de Estado. Pelo seu programa, o partido estava próximo dos outubristas. A actividade do partido visava a defesa dos interesses da burguesia comercial-industrial e dos latifundiários que geriam as suas explorações de modo capitalista.
(N38) Trudoviques: grupo de democratas pequeno-burgueses nas Dumas de Estado. A fracção dos trudoviques foi formada em Abril de 1906 por deputados camponeses à I Duma de Estado. Os trudoviques vacilavam entre os democratas-constitucionalistas e os sociais-democratas revolucionários.
(N39) The Times (Os Tempos): jornal diário fundado em 1785 em Londres, principal órgão dos círculos conservadores da burguesia inglesa. Um dos jornais mais influentes e bem informados, exercendo pressão sobre a política dos países pequenos. Através dos seus correspondentes, o jornal esteve a par dos acontecimentos na Rússia em 1905 e 1917.
(N40) O primeiro governo provisório – o «Comité Provisório da Duma de Estado» – foi formado em 27 de Fevereiro (12 de Março) de 1917, depois de, em resposta a um telegrama ao tsar do Conselho dos Decanos da IV Duma sobre a situação crítica em Petrogrado e sobre a necessidade de adoptar medidas imediatas «para salvar a pátria e a dinastia», o presidente da Duma, M. Rodzianko, ter recebido um decreto do tsar dissolvendo a Duma. Reunidos numa sessão não oficial num momento em que o povo insurrecto cercava a Duma e soldados e operários armados enchiam o edifício da Duma, os deputados elegeram apressadamente o Comité Provisório da Duma de Estado para «apoiar a ordem em Petrogrado e estabelecer contacto com diferentes instituições e pessoas».
(1*) Nicolau II. (N. Ed.)
(N41) Em Janeiro de 1912 realizou-se em Praga a VI Conferência de Toda a Rússia do POSDR (conferência de Praga). A questão da participação na campanha eleitoral para a IV Duma de Estado ocupou um grande lugar nos trabalhos da conferência. A conferência sublinhou que a tarefa principal do partido nas eleições e da fracção social-democrata na própria Duma consistia em realizar propaganda de classe socialista e em organizar a classe operária. A conferência avançou como principal palavra de ordem eleitoral do partido nas eleições para a Duma as reivindicações da república democrática, da jornada de 8 horas e da confiscação de todas as terras latifundiárias. Em Março de 1912 Lénine expôs a plataforma eleitoral do POSDR num folheto especial em nome do CC do partido. A conferência de Praga do POSDR desempenhou um importante papel na construção do partido bolchevique e no reforço da sua unidade. Fez o balanço de toda uma fase histórica da luta dos bolcheviques contra os mencheviques e, expulsando do partido os mencheviques liquidacionistas, reforçou a vitória dos bolcheviques. A conferência definiu a linha política do partido nas condições do novo ascenso revolucionário.
(N42) Lénine chama apelo ao Manifesto do Partido Operário Social-Democrata da Rússia a Todos os Cidadãos da Rússia, do CC do POSDR, publicado em 28 de Fevereiro (13 de Março) de 1917.
(N43) Socialistas-revolucionários: membros de um partido pequeno-burguês da Rússia em 1901-1923. Os Socialistas-revolucionários não viam diferenças de classe entre o proletariado e o campesinato, velavam a diferenciação de classe e as contradições dentro do campesinato e negavam o papel dirigente do proletariado na revolução. Durante a Primeira Guerra Mundial a maioria dos socialistas-revolucionários adoptaram posições sociais-chauvinistas. Depois do derrubamento do tsarismo, em Fevereiro de 1917, os Socialistas-revolucionários foram, juntamente com os mencheviques, o principal esteio do contra-revolucionário Governo Provisório burguês-latifundário, e os dirigentes do partido entraram para o governo. Os Socialistas-revolucionários lutaram contra a classe operária, que preparava a revolução socialista, e participaram na repressão do movimento camponês no Verão de 1917. Depois da revolução socialista de Outubro os socialistas-revolucionários lutaram activamente contra o poder soviético. Socialistas-populares: membros do pequeno-burguês Partido Socialista-Popular do Trabalho, que se separou da ala direita do partido socialista-revolucionário em 1906. Os socialistas-populares pronunciavam-se por um bloco com os democratas-constitucionalistas. Lénine chamou-lhes «socialistas-democratas-constitucionalistas», «oportunistas filisteus» e «mencheviques socialistas-revolucionários», sublinhando que esse partido pouco se diferenciava dos democratas-constitucionalistas, pois recusava a reivindicação de república e de nacionalização da terra. Depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro os socialistas-populares apoiaram activamente o Governo Provisório. Depois da vitória da revolução socialista de Outubro participaram nas conspirações contra-revolucionárias e nas acções armadas contra o poder soviético.
(N44) Sotsial-Demokrat (O Social-Democrata): jornal ilegal, órgão central do POSDR, publicado em 1908-1917 (Vilnius, Paris, Genebra). A redacção ao Sotsial-Demokrat era composta, de acordo com uma decisão do CC do POSDR eleito no V Congresso (de Londres), por representantes dos bolcheviques, dos mencheviques e dos sociais-democratas polacos. O real dirigente do jornal era Lénine, cujos artigos ocupavam um lugar central. O Sotsial-Demokrat teve uma enorme importância na luta dos bolcheviques contra os oportunistas, pela manutenção do partido marxista ilegal, pela consolidação da sua unidade e o reforço da sua ligação com as massas.
(N45) Trata-se do acordo sobre a formação do Governo Provisório burguês, concluído na noite de 1 para 2 (14-15) de Março de 1917 pelo Comité Provisório da Duma de Estado e pelos dirigentes socialistas-revolucionários e mencheviques do Comité Executivo do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques entregaram voluntariamente o poder à burguesia, concedendo ao Comité Provisório da Duma de Estado o direito de formar segundo o seu arbítrio o Governo Provisório.
(N46) Le Temps (O Tempo): jornal diário publicado em Paris de 1861 a 1942. Reflectia os interesses dos círculos dirigentes de França e era de facto o órgão oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
(N47) O apelo Do Comité Executivo do Soviete de Deputados Operários e Soldados, publicado em 3 (16) de Março de 1917 simultaneamente com a informação do Governo Provisório sobre a formação do primeiro gabinete de ministros, dirigido pelo príncipe G. Lvov, foi redigido pelo Comité Executivo conciliador do Soviete de Petrogrado. O apelo dizia que a democracia apoiaria o novo poder «na medida em que o poder nascente actue no sentido da realização… das obrigações e da luta decidida contra o velho poder». O apelo não informava que o Soviete tinha encarregado Kérenski de participar no Governo Provisório, pois em 1 (14) de Março o Comité Executivo tinha tomado a decisão de não fornecer «representantes da democracia» para o governo. O jornal Lê Temps escreveu sobre isso na base de uma informação do seu correspondente. Em 2 (15) de Março o Soviete aprovou por maioria de votos a entrada não autorizada de Kérenski para o governo como ministro da Justiça.
(N48) Neue Zürcher Zeitung und schweizerisches Handelsblat (Novo Jornal de Zurique e Folha Comercial Suíça): jornal burguês publicado em Zurique desde 1780. Até 1821 publicou-se com o nome Zürcher Zeitung. Actualmente é o jornal mais influente da Suíça. National-Zeitung (Jornal Nacional): jornal burguês publicado em Berlim de 1848 a 1938.
(N49) Na base das informações da imprensa estrangeira sobre a criação pelo Soviete de Petrogrado de um órgão especial que controlava o Governo Provisório, Lénine teve inicialmente uma atitude positiva em relação a esse facto, indicando ao mesmo tempo que só a experiência mostraria se esse órgão se justificaria. Na realidade, a «comissão de contacto» para influir e controlar a actividade do Governo Provisório, formada pelo Comité Executivo conciliador do Soviete em 8 (21) de Março, ajudava o governo a utilizar o prestígio do Soviete para mascarar a sua política contra-revolucionária. Por meio das «comissões de contacto» as massas eram desviadas da luta revolucionária activa pela passagem do poder para os sovietes. A «comissão de contacto» foi suprimida em meados de Abril de 1917.
(N50) Frankfurter Zeitung (Jornal de Frankfurt): jornal diário, órgão dos grandes bolsistas alemães; publicou-se em Frankfurt de 1856 a 1943. Recomeçou a publicar-se em 1949 com o nome de Frankfurter Allgemeine Zeitung.
(N51) Vossische Zeitung (Jornal de Voss): jornal liberal moderado alemão publicado em Berlim de 1704 a 1934.
(N52) Zemstvos: órgãos eleitos de auto-administração na Rússia, introduzidos em 1864. Tratavam de questões de instrução, saúde, construção de estradas, etc. O sistema eleitoral assegurava o domínio dos latifundiários. A esfera da actividade e os direitos dos zemstvos eram controlados pelo Ministério do Interior e eram constantemente cerceados pelo governo. Foram suprimidos em 1918.
(N53) Comuna de Paris: primeira experiência de criação de uma ditadura do proletariado da história. O governo revolucionário da classe operária criado em Paris em consequência da insurreição de 1871 manteve-se 72 dias – de 18 de Março a 28 de Maio. A Comuna de Paris, que era um órgão simultaneamente legislativo e executivo, separou a Igreja do Estado e a escola da Igreja e aplicou uma série de medidas para melhorar a situação económica dos operários e dos pobres da cidade, etc. Contudo, o medo de nacionalizar o Banco de França, a indecisão na liquidação das forças contra-revolucionárias de Paris, a táctica da defesa passiva e a subestimação da importância da aliança com o campesinato apressaram a queda da Comuna de Paris. Em 21 de Maio de 1871 as tropas do governo contra-revolucionário de Thiers lançaram uma repressão feroz contra os operários parisienses. Os communards lutaram nas barricadas até 28 de Maio.
(2*) No campo desenvolver-se-á agora uma luta pelo pequeno campesinato e em parte pelo médio campesinato. Os latifundiários, apoiando-se nos camponeses abastados, tentarão conduzi-lo a subordinar-se à burguesia. Nós devemos, apoiando-nos nos operários assalariados agrícolas e nos pobres, conduzi-lo à mais estreita aliança com o proletariado das cidades. (Nota do Autor)
(3*) Numa das cartas seguintes ou num artigo à parte deter-me-ei pormenorizadamente nesta análise, feita, em particular, em A Guerra Civil em França, de Marx, no prefácio de Engels à 3ª edição desta obra, nas cartas de Marx de 12.IV.1871 e de Engels de 18-28.III.1875, e também na completa deturpação do marxismo por Kautsky na sua polémica de 1912 contra Pannekoek sobre a questão da chamada «destruição do Estado» (Nota do Autor) [ Ver sobre este assunto a obra de Lénine O Estado e a Revolução]
(N55) Nos primeiros dias da sua existência o Governo Provisório nomeou o outubrista M. Stakhóvitch general-governador da Finlândia e o democrata-constitucionalista F. Róditchev ministro (ou comissário) para os assuntos da Finlândia. Em 8 (21) de Março foi publicado o Manifesto sobre a Ratificação do Grão-Principado da Finlândia e sobre a Sua Plena Aplicação. Era reconhecido à Finlândia o direito à autonomia, com ratificação pelo governo da Rússia das leis adoptadas pela Dieta finlandesa. As leis impostas aos finlandeses durante a Primeira Guerra Mundial e que contradiziam a sua legislação foram mantidas em vigor durante todo o tempo da guerra. O Governo Provisório procurou que a Dieta incluísse na constituição um ponto sobre a igualização dos cidadãos russos com os finlandeses nos aspectos do comércio e da indústria, pois sob o governo tsarista esse direito não era reconhecido pelas leis finlandesas e era aplicado por via violenta. A recusa do Governo Provisório de resolver a questão da autodeterminação da Finlândia conduziu a um conflito agudo com a Finlândia, que só foi resolvido depois da Grande Revolução Socialista de Outubro. Em 18 (31) de Dezembro de 1917 o governo soviético concedeu à Finlândia a completa independência.
(N56) Párus (A Vela): editora de Petrogrado, fundada por M. Gorki; existiu de 1915 a 1918. Létopis (Anais): revista literária, científica e política em que colaboravam antigos bolcheviques (machistas) e mencheviques. Publicou-se entre 1915 e 1917.
(4*) Ver Obras Escolhidas de V. I. Lénine em seis Tomos, t. 2, p. 368. (N. Ed.)
(5*) Camponeses. (N. Ed.)
(N57) Programa agrário dos 104: projecto de lei agrária assinado por 104 membros da I Duma de Estado, apresentado em 23 de Maio (5 de Junho) de 1906 à consideração da Duma por um grupo de democratas pequeno-burgueses (trudoviques). Os trudoviques apresentavam a reivindicação da criação de um «fundo fundiário nacional», do qual deviam fazer parte todas as terras do Estado, da família imperial, dos mosteiros e da Igreja; deviam ser obrigatoriamente alienadas a esse fundo as terras latifundiárias e outras de propriedade privada se as dimensões das propriedades excedessem a norma estabelecida para a localidade dada. Previa-se uma certa compensação para as terras privadas alienadas. As pequenas terras privadas deviam ser conservadas durante algum tempo pelos seus proprietários; o projecto de lei previa que no futuro também estas terras passassem gradualmente para a propriedade de todo o povo. A reforma agrária devia ser aplicada por comités locais eleitos por sufrágio universal, directo, igual e secreto.
(6*) O manuscrito interrompe-se aqui. (N. Ed.)