Novas janelas para a humanidade

A pandemia apenas escancarou um dos aspectos mais brutais e essenciais do capitalismo: sua incapacidade em lidar com o humano.

Iolanda Silva Barbosa 24 mar 2020, 19:42

“A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la, como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade.”

Ernst Fischer em A Necessidade da Arte[1]

 Embora todos os esforços de Bolsonaro em negar a dimensão e os efeitos da pandemia de Coronavírus (Covid-19), a cada dia a realidade se prova mais dura e desafiadora para todos nós, especialmente sob este (des)governo. Na contramão do que afirmou o Ministro da Saúde, o presidente não é timoneiro de barco algum, mas sim aquele que irresponsavelmente nos conduz ao naufrágio enquanto busca garantir botes salva-vidas para si mesmo e para os seus.

 Diante de todo esse cenário, no entanto, podemos constatar a validade de um dos princípios revolucionários: a premente necessidade de reinvenção do modo de vida, da dinâmica econômica e social. Por óbvio, a luta por tais mudanças corre longe de buscar os mesmos efeitos catastróficos da atual pandemia, mas se baseia no próprio caráter insustentável da realidade capitalista.

 Nesse sentido, pode-se dizer que a pandemia apenas escancarou um dos aspectos mais brutais e essenciais do capitalismo: sua total incapacidade em lidar com o elemento humano (em suas amplas e profundas acepções) ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, depende dele para o funcionamento de suas engrenagens, através do trabalho e da geração de capital.

 Sabemos que parte da burguesia mundial e, principalmente, brasileira, se mostra disposta a ir até as últimas consequências para garantir seus lucros, negando o direito ao isolamento social a milhares de trabalhadores e trabalhadoras ou sendo artífice e cúmplice de medidas como a reforma trabalhista, que garantiu a precarização das condições de trabalho e aumento da informalidade, o que neste cenário significa, por exemplo, que trabalhadores de aplicativos colocam suas vidas em risco para garantir seu sustento.

 Vale pontuar que é em decorrência de todo esse cenário que lutar pelo afastamento de Bolsonaro e pela implementação de medidas como as propostas pelo PSOL e seus parlamentares, a exemplo da renda básica emergencial, é garantir a sobrevivência de milhões de brasileiros e brasileiras.

 Mas, para além disso, lancemos um olhar mais detido para uma questão fundamental levantada acima: a incapacidade do capitalismo em lidar com o elemento humano e a necessidade- cerne da luta revolucionária- de mudança do modo de vida e da dinâmica econômica e social. A realidade comum à maior parte da classe trabalhadora no Brasil é uma rotina que se divide sumariamente entre várias horas de trabalho, estudo e locomoção, de modo que restam poucas horas para o direito ao descanso, ao lazer ou à simples convivência social. Ademais, é necessário compreender que, na maior parte dos casos, a situação das mulheres é ainda mais grave, uma vez que a elas são delegados os cuidados com a casa e com os filhos.

 Essa grande sobrecarga de trabalho e consequente cerceamento de direitos básicos aniquilam muitas das possibilidades e necessidades do que se entende por humano, reduzindo os indivíduos à sua força de trabalho. A análise de tal problemática ganhou espaço sobretudo a partir dos estudos da escola de Frankfurt, em sua teoria crítica contra a opressão social. Max Horkheimer aponta, por exemplo, em sua obra Eclipse da razão, queO avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de desumanização” (p. 6)[2]. Segundo ele, tal fenômeno adviria de uma Razão Instrumental, ou seja, uma razão utilizada enquanto ferramenta para dominação social, por meio da morte da razão crítica pela asfixia das relações de produção capitalista.

 No campo literário, relembremos A metamorfose, de Franz Kafka. Como se sabe, o personagem principal da obra, Gregor Samsa, tal como alguns de nós atualmente (ainda que por motivos diversos), se vê confinado em casa. Tal ocorre pois, sem razão aparente, ele se transforma em um “inseto monstruoso”. Ao longo da narrativa, no entanto, percebe-se o quanto a vida de Samsa, anterior à metamorfose, era puramente dedicada ao trabalho e ao sustento material de sua família: “-Ah, meu Deus! – pensou. – Que profissão cansativa eu escolhi.” (p. 8)[3].

 Como uma das possibilidades de análise interpretativa da obra e sem qualquer intensão de reduzi-la, poder-se-ia sugerir que a metamorfose de Gregor nada mais é do que resultado da opressão do mundo do trabalho, o que implicaria em assumir que a obra de Kafka exemplifica, de forma literal, a desumanização proposta por Horkheimer. Curiosamente, é interessante notar que, em contrapartida, a irmã da personagem é aquela que, através da arte, leva a ele algum consolo, ao tocar seu violino: “[…] Era ele um animal, já que a música o comovia tanto?” (p. 60). Seria este, portanto, um atestado de que é a arte uma ferramenta de enfrentamento à desumanização?

 Embora o lazer seja apontado por Horkheimer e Theodor Adorno[4] como um mecanismo de diluição e apaziguamento dos problemas sociais, em especial através da Indústria Cultural, teóricos como Walter Benjamin insistem, de forma mais otimista, nessa defesa da arte como instrumento de politização, reduto da razão crítica e emancipatória. Nesse mesmo sentido, apesar de seus limites, cabe também relembrar o caráter humanizador da Literatura, defendido por Antonio Candido em “O direito à literatura”[5].

 Embora todas as questões que se abrem a partir dessas considerações, aqui me atenho à uma, especificamente, levando em conta o cenário atual de pandemia, desgoverno e desesperança: nos vemos diante de uma inevitável mudança de paradigmas na dinâmica econômica e social. Não à toa, aqueles que têm garantido seu direito ao isolamento social se veem obrigados a reinventar suas rotinas, nas quais a cultura se torna elemento essencial: ainda que como recurso de distração e manutenção de saúde mental, temos lançado mão de séries, filmes, música e livros, em escala muito maior à que estamos acostumados a fazer (na maioria dos casos em decorrência da massacrante rotina de trabalho no mundo capitalista, certamente). Criando ou recuperando laços sociais, afetivos e de solidariedade, nos vemos voltados para nossos núcleos domésticos, por vezes alcançando também seus arredores: a confraternização, em suas diversas formas, através de janelas e sacadas de prédios, tem se tornado imagem comum e consoladora nas últimas semanas.

 Ao contrário do que ocorreu com Gregor Samsa, portanto, creiamos que, apesar de todas as dificuldades e desafios, não nos animalizaremos em nossos confinamentos, mas sim que teremos a oportunidade de recuperar (ainda que parcialmente) o elemento humano que o capitalismo insiste em negar e subtrair.

 Nesse ponto, se cabe uma indicação, Notícias de lugar nenhum, de William Morris, se mostra uma leitura oportuna. Na obra, o avanço tecnológico liberta os indivíduos “das tarefas tediosas e desagradáveis para que possam se dedicar a uma atividade humana livre e criadora”, o que nos permite vislumbrar novos possíveis horizontes. Em tempo, vale mencionar que o nome da obra, tal como relembram Michal Löwy e Leandro Konder em seu prefácio, é uma evidente homenagem a Utopia, de Thomas More, em que os habitantes de uma ilha estabelecem um novo modelo social. Metaforicamente, pode-se dizer que, no estado atual de isolamento social, podemos, de nossas “ilhas”, repensar nosso modo de vida e meios de modifica-lo.

 Cabe ainda relembrar os versos de Caetano em “Livros”: a literatura (a arte e a cultura, em sentido mais amplo) é capaz de apontar novos universos e suas expansões, de “lançar mundos no mundo” e de impedir que nos lancemos pelas janelas- ainda que nos utilizemos devidamente delas para clamar a queda dos déspotas e compartilhar o que tivermos de mais humano.


[1] Ed. Zahar, 1959, p. 57.

[2] Ed. Labor do Brasil, 1976.

[3] Coleção Folha, v. 13, 2016.

[4] A dialética do esclarecimento, 1947.

[5] Vários Escritos (1988).


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