O presidente do esgoto e o fim das Ciências Humanas

Governo aproveita situação de crise para atacar as Ciências Humanas e produzir condições políticas para o seu extermínio.

Alexandre Filordi 30 mar 2020, 17:33

Naomi Klein tem toda razão em sua obra A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre: ações espúrias e pouco palatáveis aos interesses da população são tomadas quando desastre natural, econômico, social ou político emergem. O capitalismo aproveita, e até estimula, tais desastres com o intuito de causar desorientação nas pessoas. A desorientação ou o estado de choque enfraquece a nossa capacidade de atentar para questões de pouca visibilidade, mas quase sempre de grande impacto na vida futura, uma vez passado o choque. Mas, daí, invariavelmente é tarde demais.

Foi assim que a parte baixa de New Orleans foi toda confiscada pela especulação imobiliária pós-Katrina, além da privatização de vários serviços públicos, o escolar inclusive; de igual modo acorreu nos paraísos litorâneos do Sri-Lanka depois do tsunami de 2014, quando seus povos autóctones foram despejados de suas terras, em nome da futura segurança, dando lugar aos resorts de luxo. Mas choques também são produzidos com finalidades específicas: a invasão do Iraque, em nome do combate ao terrorismo, para a expropriação de campos de petróleo; o golpe no Chile para impedir a reestatização das minas de cobre, a reforma agrária encaminhada por Allende, etc.

Com quase metade do planeta em quarentena devido à pandemia do COVID-19, um novo choque é vivenciado. Em terras tupiniquins, sob uma política quixotesca, o sistema político vigente, mordomo do rentismo e do patronato, está aproveitando a situação para, sub-repticiamente, atacar as Ciências Humanas e, até mesmo, produzir condições políticas para o seu extermínio.

No último dia 20 de março, baixou-se o Decreto N. 10.282 para definir os serviços públicos e as atividades essenciais durante a pandemia do coronavírus. Abrangem-se muitos itens: desde atividades religiosas de qualquer natureza até atividades de pesquisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia. O Decreto, celebrado no portal o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, fundação pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, sublinha a defesa das atividades científicas como essenciais. Por outro lado, há algo não dito, fazendo soar um importante alarme: em momento algum as Ciências Humanas foram e são consideras como atividades essenciais.

Seria ingênuo cogitar que tal lapso é circunscrito ao choque da pandemia. Na verdade, estamos diante de uma movimentação sagaz que, aproveitando das circunstâncias, expande o que já vamos perdendo de horizonte: a ativação total do ideário do Future-se. Excluído o cinismo beligerante contra tudo que é científico – terraplanismo, sucateamento dos laboratórios de pesquisas científicas decorrente do estancamento dos investimentos públicos, cortes de verbas para o investimento em recursos humanos, etc. – é preciso recordar que o Future-se defende: a) cessação do investimento público em todo nível universitário, empurrando as universidade para a privatização branda e/ou a precarização; b) ênfase nas áreas pretensamente lucrativas; c) beligerância o todo campo científico crítico – como se fosse possível ciência sem crítica; d) possibilidade de cobrança de mensalidades; etc.

Tudo isso coincide com a nova política de concessão de bolsas despachada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em fevereiro deste ano, como já mostramos aqui. A partir de então, os Programas de Pós-Graduação passam a perder até 50% dos recursos destinados aos pesquisadores em formação, além de já sabermos que, desde 2016 e muito mais acentuado no atual governo, a cada ano as verbas foram sendo suprimidas vertiginosamente.

As Ciências Humanas são rentáveis, sim. A sua “renda”, contudo, não é reduzida aos dividendos; ao contrário, as Ciências Humanas interpelam a desumanização e o tecnocracismo que tais dividendos são capazes de produzir em todo tecido social, gerando pobreza, exclusão social, concentração de renda. Dotadas de uma vigorosa fortuna simbólica, cultural, subjetiva, singular e, essencialmente crítica, as Ciências Humanas assumem o risco de denunciar que não podemos continuar a viver como estamos vivendo; elas colocam o dedo na origem das feridas dos processos de desigualdades sociais; elas mostram o quanto a nossa história é basal das injustiças sociais. As Ciências Humanas gritam que o imperador está nu e, por ser soberano, o imperador não gosta.

Não é à toa que BolsoNero reduz tudo ao patético ridículo e gera sempre choque ao interlocutor ou ao espectador razoável. Aliás, se há alguém que gosta de esgoto deve ser ele e não os brasileiros que, alijados das condições do saneamento básico, vivem sem opções senão a do precariado e da vulnerabilidade existencial. 

A esta altura, precisamos lembrar que esgoto vem do francês que alude, segundo o dicionário de Littré, ao que esgota. Estamos esgotados com tanta sandice; estamos esgotados com tanto descaso; estamos esgotados com um governo e uma equipe de alucinados que manejam a política e a máquina do Estado para caçar a capacidade científica de anunciar as razões pelas quais basta!

Educadores, Filósofos, Sociólogos, Antropólogos, Economistas, Linguistas, Jornalistas, Historiadores, Geógrafos, Antropólogos, Artistas, Advogados, Psicólogos, Servidores Sociais e sucessivamente são mesmo uma ameaça: revelamos o esgoto, com todos seus vermes e ratos, que têm nos governado.  


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