Depois de Mandetta: ausência de testes e subnotificações na ponta do iceberg
Sobre a demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde.
O que todos já sabiam se confirmou, às 16 e 15, no Twitter, antes mesmo da entrevista coletiva anteriormente convocada. Luiz Henrique Mandetta informa que já não será mais o Ministro da Saúde. Mais um passo na crise política e na crise do governo, que expressa a batalha entre as duas orientações possíveis diante da escalada da Covid-19: ampliar ou flexibilizar o chamado isolamento social. Por trás dessas duas concepções, chocam-se forças sociais e políticas, concepções que condicionam o futuro da crise combinada – política, sanitária e econômica.
Junto com Mandetta, deve deixar o Planalto parte de sua equipe, que, apesar das variações políticas, construía um corpo técnico robusto e alinhado com as diretrizes da OMS: um setor de profissionais oriundos da direita, mas que carrega anos de trabalho em universidades e na área de pesquisa em saúde como João Gabbardo dos Reis, Wanderson Oliveira e Erno Harzheim, consumando uma ruptura essencial no período de combate à Covid-19.
Um salto na tensão política, justamente na semana em que há uma escalada nos casos de óbitos e mortos. A condução do Ministério da Saúde já estava marcada pela contradição geral do governo. Depois de uma semana de luta surda, quando Mandetta quase foi demitido, ganhou popularidade, enquanto Bolsonaro perdeu apoio. A “trégua” durou menos de uma semana. Depois da entrevista à Rede Globo, no domingo, a senha para demissão foi anunciada. Ao se diferenciar publicamente do presidente, o efeito foi mais “lenha na fogueira”, com os militares lhe retirando o apoio, abrindo caminho para a demissão. De qualquer maneira, Bolsonaro demorou ainda mais quatro dias para demitir Mandetta, deixando clara sua fragilidade, mesmo com a “caneta na mão”, como costuma dizer.
Nesse período de contágio, a luta fundamental para evitar o pior dos cenários se concentra em manter o isolamento social e a garantia da mais ampla coordenação de esforços, entre sociedade, entes governamentais e autoridades sanitárias. Sendo Mandetta “ejetado” do cargo, o cenário fica ainda mais trágico; sem a mínima coordenação, como um exército que combate às cegas e sem o devido equipamento, o combate à Covid- 19 entra num assustador túnel da morte. Por um lado, os efeitos da falta de coordenação e da subestimação do isolamento; por outro, as duas pontas do iceberg: a ausência de testes e a gigantesca subnotificação.
O que vem pela frente? Ainda é cedo para mensurar os efeitos da demissão de Mandetta na sua totalidade. Enquanto isso, setores querem aproveitar o caos para endossar a luta pela chamada “flexibilização da quarentena”. Um movimento internacional da extrema-direita, que em Michigan, nos Estados Unidos, levou neonazistas e conservadores de todo tipo, com armas em punho, às ruas para pressionar pela reabertura do comércio. Aqui, de forma mais primária e rudimentar, a sanha dos neofascistas também vai buscar recrutas para ações que tensionem o fim da quarentena.
Bolsonaro caminha para um isolamento “ofensivo”. A questão da própria pandemia deixa milhões de brasileiros a sua própria sorte. Sem testes e com os números manipulados, a catástrofe que se aproxima já deixa suas primeiras marcas, apesar da cegueira de parte da base de apoio do governo.
O fim da era Mandetta
O marco da crise política do governo em relação ao enfrentamento à Covid-19 remete ao dia 18 de março. Naquela quarta-feira, onde começava a quarentena, Bolsonaro foi enfático ao assumir a linha negacionista, chamando de “gripezinha” e se diferenciando da OMS. A resposta das janelas foi um panelaço massivo que marcou a entrada de um setor da classe média na linha de denúncia do governo. Dali para frente, Mandetta conquistou apoios. Por quê?
As pesquisas colocam a popularidade do ministro da saúde na faixa dos 75%. Ele apareceu como defensor do SUS, com seu jaleco, a favor da ciência e mesmo preocupado com temas sensíveis como o da saúde indígena. Obviamente, tal localização nada tem a ver com sua construção política, marcada por uma visão conservadora e orientada pela defesa da saúde privada. Contudo, apareceu como o contraste visível de Bolsonaro, levando ao choque de orientações.
O acordo na semana passada representou um passo atrás para ambos. Bolsonaro ficou desmoralizado e Mandetta aceitou uma “trégua”. Gerou uma linha errática quando admitiu, permitindo que as tropas de fake news infestassem as redes, aumentando a pressão dos setores que querem flexibilizar a quarentena, gerando uma sensação e uma real maior circulação nos dias próximos à Páscoa. Ainda assim, manteve a imagem de responsável e de opositor à linha da extrema-direita. Ganhou pontos entre a chamada “opinião pública”.
A jogada seguinte foi a entrevista no Fantástico, onde confirmou a linha de “ser colocado para fora”. Apesar de ter custado o apoio do núcleo militar dentro do governo, a entrevista foi clara na separação da orientação do presidente, atacando-o implicitamente, fato inédito no atual governo. Apesar da entrevista demonstrar que não existe um plano consistente de enfrentamento à pandemia – nítido quando se admite que não existem testes e que viveremos “dias duros, muito duros” –, Mandetta se alçou para o duelo com Bolsonaro.
Ao aceitar a linha da extrema-direita, de Onyx e Osmar Terra, Bolsonaro assume o ônus do que virá nos próximos dias. Isola-se mais, gerando a mais importante ruptura em seu governo desde o começo da crise aguda.
Como efeito imediato, Bolsonaro fica mais solitário, gerando ainda mais repúdio, com panelaços por todo lado, a grande imprensa repercutindo seu despreparo e gerando tensões por todo lado.
Como efeito colateral, a aproximação entre Mandetta e Caiado, operando parte de seu plano do “bunker de Goiânia”, aponta uma ruptura ainda maior com o governo. Terá impacto sobre o conjunto do setor do “agro”, onde a ministra Teresa Cristina, todos do DEM e do Centro-Oeste do país, chocam-se cada vez mais com a linha olavista anti-China.
Com Bolsonaro mais isolado e sem comando comum para enfrentar a pandemia, ficamos às cegas, quando explodem os casos, eivados de dados manipulados, subnotificações e ausência de testes.
Como definiu bem o jornalista Camarotti, Mandetta caiu porque “evidenciou que o rei estava nu”.
Subnotificações: o pior não passou
Por todo lado, especula-se que o número de casos é muito menor do que o divulgado. Até o momento em que este texto é publicado, há oficialmente mais de 30 mil casos e quase 2 mil óbitos. Até mesmo agentes do poder público assumem que tais estatísticas estão erradas. O movimento nos cemitérios de São Paulo e as denúncias de casos suspeitos em Minas Gerais, não incluídos nas estatísticas oficiais já indicavam um absurdo.
Contudo, o estudo da UFPEL, no Rio Grande do Sul, publicado pela Folha de São Paulo de quinta-feira 16 de abril, materializa o tamanho do problema.
Justamente quando não estamos nem perto do chamado “pico” da doença (o Estado de São Paulo prevê para a primeira quinzena de maio), os dados são ainda mais alarmantes e vão na contramão da pressão dos setores que tensionam pela reabertura do comércio.
Segundo os estudos da pesquisa Epicovid19, coordenada pela UFPEL e pelo governo gaúcho, o número de infectados no Rio Grande do Sul chega a 0,05% do total da população, o que poderia ser traduzido em cerca de 5650 casos, muito acima dos 747 admitidos oficialmente. Segundo esses dados, o número de casos é sete vezes maior, com desigualdades.
O estudo do portal Covid-19, que reúne pesquisadores da UNB, USP e UFRJ, é ainda mais assustador. Segundo esses dados, teríamos, de forma variável, 313 mil casos confirmados até o último sábado (11/04) – 15 vezes mais que os 20727 oficiais.
Isso leva a uma hipótese de que rapidamente entraremos em caos hospitalar em algumas regiões. Em São Paulo, já são 70% dos leitos da UTIs públicas ocupados, dado que chega a 88% no Rio de Janeiro e 100% em Fortaleza. O caso da Manaus é mais grave: com a explosão de casos, a capital do norte do Brasil, está completamente desprovida de leitos e estrutura hospitalar adequada, numa situação de calamidade nunca vista. Manaus serve como péssimo exemplo do que pode acontecer se seguir a falta de coordenação, a ausência de testes e o relaxamento da quarentena.
A exigência de testes massivos, panelaços e “fora, Bolsonaro!”
A única forma de deter o vírus é combinar o isolamento social com a testagem em massa. A recomendação da OMS é “testar, testar, testar”. Enquanto os Estados Unidos lutam para monopolizar os insumos, equipamentos e testes da China, estamos sem capacidade de construir um esforço de guerra para garantir testagem massiva e rápida aos milhões. A pirataria do governo dos Estados Unidos deve ser denunciada e combatida, ao contrário da postura da cúpula bolsonarista, que, com sua submissão, aprofunda o desastre no país, longe do patriotismo que dizem defender.
Por outro lado, as universidades, como USP, Unicamp e UFSCar, estão colocando a ciência no posto de comando, com iniciativas que estão dando certo e podem ser massificadas no âmbito dos testes, desde que haja investimento e coordenação por parte dos governos. Isso é mãe de todas as batalhas. Para garantir o esforço de guerra, além de disponibilizar os testes e a proteção aos trabalhadores da saúde (a luta por EPIs toma conta de todos os centros de atendimento), é preciso acelerar todo processo de reconversão industrial, com as fábricas produzindo equipamentos de saúde, álcool gel, máscaras e respiradores.
A bronca social cresce na mesma proporção que o negacionismo de Bolsonaro, que deu novo salto ao demitir Mandetta. Em seu lugar, assume o médico Nelson Teich, empresário do ramo clínico, prometendo voltar o mais rápido possível à normalidade. Escutaram-se panelaços por todas as capitais do Brasil, mesmo em horário pouco habitual, às 17 horas, quando se publicaram as notícias da troca de mando na saúde. O vídeo de Teich, que já circula nas redes, demonstra bem o seu caráter ganancioso ao menosprezar a vida dos idosos, com seu enfoque voltado para os lucros. O salto no vazio que o país está dando só poderá ser respondido com uma plataforma concreta, que passe pelo plano emergencial e a exigência de testes massivos. Bolsonaro, cada vez mais isolado, precisa ser derrotado em seus planos. O pedido de impeachment e a luta para derrubar seu governo conectam-se com a luta mais geral. É hora de mobilizar toda a ampla rede em defesa da ciência, da pesquisa e do SUS para fazer valer essas exigências e somar forças no grito que se escuta nas janelas do Brasil: Fora Bolsonaro.