O ponto de não retorno

A crise sanitária e a crise econômica retroalimentam a crise política do governo Bolsonaro.

Israel Dutra 11 abr 2020, 17:28

A atualização dos dados da pandemia de Covid-19, na sexta-feira da paixão, 10/04, aponta uma curva mórbida. Passam de cem mil óbitos no mundo, com o epicentro chegando a nosso continente. Os Estados Unidos em breve devem superar a Itália no número de mortes; em números de casos, já são mais 500 mil testes positivos em terras estadunidenses. Aqui no Brasil, foi cruzada a linha divisória do milhar de mortes. O horizonte da recessão já se desenha pelo planeta. O efeito devastador dessas duas pestes, o coronavírus e o derretimento da economia, está chegando com força ao continente latino-americano. A foto das fossas em Nova York é uma antecipação do que virá.

A crise sanitária e a crise econômica retroalimentam a crise política do governo Bolsonaro. Nosso país se tornou um laboratório da radicalização da extrema-direita e Bolsonaro vai muito além de Trump, sua principal referência. Com verdadeiros lances surreais, na medida em que relativiza os perigos da pandemia em cada frase ou gesto, o governo se equilibra para manter sua linha de “ofensiva permanente”. A questão é que uma linha vermelha foi cruzada, os números de casos e mortes crescem já em progressão geométrica e a linha de quebrar a quarentena está colocando por terra o “tempo ganho” pelos governadores. E a economia ameaça paralisar o país. As vendas caíram quase 40% na média das últimas três semanas.

A semana contou com uma “rendição relativa” do governo, que não levou adiante a linha de demitir Mandetta, como queria o clã Bolsonaro. O último pronunciamento em rede nacional de televisão demonstrou um Bolsonaro abatido, buscando conciliar duas orientações opostas quanto à quarentena; derrotado pelo STF, que deu razão aos governadores, Bolsonaro optou por defender-se como pai da renda mínima e colocar sua ênfase no duvidoso medicamento cloroquina como chave de todas as saídas. De outra parte, pelas redes sociais e nas cidades, insufla os seus seguidores a adotar uma postura de ceticismo quanto ao caráter devastador do vírus, a abrir o comércio e espalhar todo tipo de fake news. No campo oposto, os governadores tentam ganhar tempo para ampliar o sistema de saúde, adotando uma orientação similar à da OMS – distanciamento social e quarentena para todos os serviços não essenciais. Trata-se de uma disputa, em que há divisões: alguns governadores, como o de Santa Catarina, já aceitam reabrir o comércio, enquanto o mineiro Romeu Zema convoca a volta às aulas. A disputa ao redor da defesa dos cuidados do isolamento social enseja uma disputa ainda maior: a de um campo abertamente negacionista, que quer empurrar o país para um verdadeiro genocídio contra os mais pobres. 

Estamos ainda marcados pela conjuntura aberta na semana do 15 a 18 de março: com a chegada de vez do coronavírus, os primeiros casos de transmissão comunitária e os primeiros momentos da quarentena; a primeira onda de paralisia da economia e o panelaço do dia 18, espontâneo, que jogou um setor das camadas médias para uma posição mais combativa contra o governo. O dia 18/03 também radicalizou o bolsonarismo, na linha de desconsiderar os efeitos da Covid-19, tratando-a pela estúpida noção de “gripezinha”. Isso gerou um descolamento maior da superestrutura, com o Legislativo e o Judiciário operando um plano de emergência (suspensão das dívidas dos estados, aprovação da renda emergencial de 600 a 1200 reais e pacote de 40 bilhões para salvar pequenas e médias empresas). A apresentação, por parte de Fernanda Melchionna, Sâmia Bomfim, David Miranda, Luciana Genro e diversas personalidades de um pedido de impeachament, apoiado por um milhão de brasileiros, arrastou outros setores, até então hesitantes, para a linha do “Fora Bolsonaro”. A crise da semana seguinte – na qual Bolsonaro, em conjunto com Osmar Terra e Onyx Lorenzoni, prometeu demitir Mandetta, cogitando o próprio Terra ou a médica Nise Yamaguchi para seu posto – terminou com uma arranjo precário. Sob tutela dos militares e dos demais poderes, Bolsonaro voltou atrás e manteve o ministro da saúde em seu cargo. Uma espécie de “empate catastrófico” nascia na segunda à noite, no Palácio do Planalto. Derrotado, Bolsonaro não está morto. Ainda.

As pesquisas de opinião revelam que Bolsonaro está realizando uma lenta curva descendente, ao contrário de Mandetta, que concentra 76% de apoio popular. Um dado interessante é que Bolsonaro perdeu 17% de apoio entre seus eleitores. Levando em conta que é um governo que já começou minoritário no Nordeste e entre os mais jovens, Bolsonaro aposta conscientemente em coesionar sua base, mesmo perdendo apoio. Durante seus 15 meses de gestão, Frota, o PSL e o falecido Bebianno passaram para trincheira da oposição. Witzel virou seu inimigo público e os tempos de “Bolsodória” ficaram para trás em São Paulo. Entretanto, as pesquisas mostram que ainda conserva algum tipo de apoio, mesmo que minoritário. Bolsonaro organiza suas trincheiras e busca, com carreatas, passeios e ataques em redes sociais, mobilizar tanto seguidores quanto setores sociais desesperados, como pequenos e médios comerciantes. A próxima semana será decisiva. O cenário que foi visto nas grandes cidades, de um pequeno crescimento do fluxo de pessoas nas ruas, será mantido? A entrada do vírus em grandes concentrações populacionais, como as favelas do Rio, terá que efeito? Até quando haverá subnotificações? Moro informou que os primeiros casos são registrados dentro do sistema prisional. Tivemos a morte de um jovem indígena Yanomami no dia de hoje. E uma grande capital do Norte, Manaus, está à beira do colapso de leitos, caso inédito no país.

Ainda assim, devemos nos perguntar como uma corrente de opinião de posições semifascistas chega ter influência em setores de massa? Com qual programa Bolsonaro atua para mover suas posições de força diante da crise? Como a grande imprensa vai reagir? A tragédia anunciada irá se materializar.

A questão é que a linha de Bolsonaro é radicalizar os elementos da “pulsão de morte”, que sempre estiveram presentes em sua narrativa. A banalização do mal está impregnando a orientação dos bolsonaristas por todo lado, autorizando uma linha mais violenta (um tiro contra o panelaço foi registrado em condomínio no bairro Perdizes em São Paulo, o apresentador do SBT “Marcão do Povo” defendeu espécie de campo de confinamento para doentes com Covid-19, seguem os assassinatos políticos de lideranças indígenas e políticos do PSOL), utilizando a situação para ganhar terreno. Safatle chegou a pensar no conceito de “Estado Suicidário” como projeto de regime que Bolsonaro quer transitar nas ruínas da constituição de 1988.

Essa estratégia de Bolsonaro exige uma resposta que se oriente na via inversa: ampliar a noção de solidariedade, defender a proteção da vida, a intervenção do Estado na garantia de direitos e, o mais importante, do controle público e popular sobre os agentes estatais.

Esse choque de orientações vai ser o coração da luta política nas próximas duas semanas. Como bem afirmou Roberto Simon (FSP, 11 de abril), Bolsonaro não tem condições políticas e sociais de impor maiores restrições ao regime, como fizeram Orban, Erdogan e Netanyahu. E, na esteira dessa luta política, devemos defender com mais vigor nossa plataforma de urgência, diante do ponto de não retorno.

Não sabemos como a economia vai reagir diante da perspectiva de derretimento. O pagamento da renda básica universal será capaz de evitar saques e convulsões sociais, somada a incapacidade de resposta imediata dos trabalhadores fabris que aceitam a redução salarial como único horizonte. Mas essa fuga para frente não resolverá nenhuma das contradições de um regresso social muito veloz, um verdadeiro agravamento, para além do comum, dos sofrimentos e da miséria das camadas populares. Guedes admitiu uma queda do PIB entre 1 e 4%, a depender dos efeitos da pandemia.

Tampouco sabemos o que vai passar diante da explosão de casos e mortes. O relaxamento relativo do isolamento social, fruto da ignorância espalhada nas redes, com uma leitura muito aparente de parte da população de que “não é tanto assim”, marcou os dias próximos ao feriado de Páscoa. Contudo, uma onda mais forte deve levar mais gente a voltar à quarentena mais rigorosa, com alguns especialistas falando em interrupção total da circulação (lockdown) durante o pico previsto para segunda quinzena de abril.

O parlamento terá que se deparar com todos esses temas, a começar sobre o pacote de socorro aos estados, que Maia e os governadores precisam aprovar no Senado.

No calor desse embate político, em situações excepcionais, porque não se pode convocar e organizar passeatas de rua, vamos forjar uma luta de vida e morte durante os próximos episódios da pandemia e das crises combinadas.

Do lado da vida, precisamos apresentar seguir insistindo em medidas de urgência, como a produção em larga escala de EPIs, respiradores artificiais como prioridade da indústria, mantendo os postos de trabalho; a proibição das demissões em escala nacional; a defesa dos trabalhadores da saúde, a primeira linha do combate à pandemia. Que a crise seja paga pelos ricos, pelos bancos e pelos setores privilegiados: além de taxar as grandes fortunas, é preciso anistiar as dívidas individuais, os aluguéis e as tarifas de serviços para a ampla maioria da população. A defesa de investimentos maçiços no SUS e a centralização de leitos pelo poder público.

Uma luta que é física: contra a corrente que apregoa a morte e o genocídio dos mais pobres, levantamos a bandeira da vida, da saúde, da ciência e da solidariedade. Assim lutam os metroviários e rodoviários de todo país; os educadores contra a reabertura das escolas e o não pagamento dos salários, como Zema e Crivella querem. Em tempos de guerra, estamos nas trincheiras da vida, com as bandeiras da maioria social, que move o verdadeiro Brasil.


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