Teoria Monetária Moderna e a Auditoria Cidadã da Dívida: Reflexões sobre o alvo e a pontaria

Análise marxista sobre estas duas vertentes de oposição do neoliberalismo.

Marcos Diligenti e Ricardo Souza 20 abr 2020, 18:14

Vem ganhando  força nos círculos progressistas, desde a grande crise de 2008, a chamada Teoria Monetária Moderna (do inglês MMT). Esta perspectiva é defendida pelos democratas Alexandria Cortez , Bernie Sanders e pelo trabalhista britânico Jeremy Corbyn, como alternativa ao neoliberalismo e à austeridade fiscal e apresenta importantes reflexos no debate do panorama econômico brasileiro atual.

No entanto, deve-se ressaltar que os seus pressupostos, vem entrando em rota de colisão com uma bandeira histórica da esquerda socialista: a Auditoria da Dívida Pública, com consequências políticas e programáticas, inclusive no debate interno do Psol.

Tanto a vertente  da MMT,  quanto  a Auditoria Cidadã da Dívida(ACD), movimento encabeçado por Maria Lúcia Fatorelli e Rodrigo D’ávila , que historicamente denuncia o sistema da dívida e luta pela sua auditoria,se opõem ao receituário neoliberal, mas  apresentam  claras diferenças teóricas e táticas. Cabe, portanto, uma breve análise sob a ótica Marxista, no sentido de esclarecer as diferenças de suas propostas na perspectiva da construção programática da esquerda socialista.

Financeirização e Dívida Pública

O processo de financeirização do capital não é um fenômeno inédito nem recente no modo de produção capitalista. Foi observado, ainda no  final do século XIX por Karl Marx, que já identificava, à sua época,  a relevância do crédito a juros para impulsionar o processo de acumulação capitalista, com o propósito de estabelecer em seu ciclo em diferentes formas funcionais: Capital Industrial, Capital Comercial e o Capital Portador de Juros (capital este gerido pelos bancos). Importa ressaltar que todo o juro é uma fração do lucro extraído na produção de mais valia no capital industrial, em  contrapartida aos empréstimos bancários. Este processo gerou um mercado de títulos de ganhos futuros para estes setores, que vieram a representar a gênese do chamado Capital Fictício, como imagem. No tomo 3 d’O Capital, os principais mecanismos de extração de capital fictício são elencados no mercado acionário, no sistema bancário e nas dívidas públicas, quando esta dinâmica se estende  aos Estados Nacionais.

Com a virada do século XX, desenvolve-se o fenômeno descrito por Lênin em sua obra “Imperialismo, a fase superior do capitalismo’, da fusão do capital bancário (ou portador de juros) com capital industrial, passando este a denominar-se Capital Financeiro. Desta forma, as potências imperialistas passaram a exportar capitais às economias dependentes, em geral as ex-colônias. Portanto, as dívidas públicas instituíram-se como importantes instrumentos de subordinação dos Estados nacionais e  de  transferência de valor para o capitalismo central.

A América Latina, por exemplo,  passou por longos períodos de endividamento público, desde o século XIX, que iniciou logo após as “independências nacionais” das metrópoles ibéricas, quando os países periféricos já foram compelidos a contrair dívidas com o imperialismo  britânico. Esta situação perdurou por séculos posteriores e atuais, na exploração imposta, predominantemente, pelo imperialismo estadunidense.

Mais recentemente, com a crise do petróleo no final da década de 1970, decididamente o modelo keynesiano-fordista deu lugar ao neoliberalismo. Um dos marcos históricos deste processo ocorreu no dia 19 de agosto de 1971, quando o presidente norteamericano Richard Nixon determinou a ruptura do parâmetro ouro-dólar, estabelecido, até então, pela conferência de Breton Woods.

Foi aberta a “Caixa de Pandora”, desencadeando a completa desregulamentação monetária e financeira de caráter abstrato e fetichizado, permitindo uma maior flexibilidade para atender as demandas de emissão de moeda norte-americana, que assumiram um caráter fiduciário, sem o correspondente lastro em ouro.

Neste cenário, nas economias centrais não foi mais possível “abafar” as contradições do capitalismo, nem manter concessões à classe trabalhadora, que à época vivia próxima do pleno emprego, com grande poder de compra e direitos sociais conquistados. Já nas economias dependentes, a classe trabalhadora, que não viveu o chamado “bem-estar social”  teve as suas condições de vida ainda mais precarizadas, em muitos casos sustentadas pelo uso da força, a exemplo das ditaduras  civil-militares no Cone Sul. Muitas das dívidas públicas foram contraídas em plenas ditaduras civil-militar,  sem o conhecimento e contrária ao interesse dos povos.

Pode-se afirmar que mesmo com a redemocratização formal, nas décadas seguintes, o terrorismo de mercado passou a substituir a coerção explícita, para impor as suas regras no Brasil, na Argentina, no Chile e em muitos outros países latino-americanos. Com isto , inicia-se um período  de Acumulação Flexível, com a completa desregulamentação monetária  e financeira nestas áreas.

O Capital  Portador de Juros em sua forma fetichizada, passa a criar “dinheiro do próprio dinheiro”,o chamado Capital Fictício, à sua imagem e semelhança. Ou ainda, aquilo que Marx apontava: dinheiro que aparenta gerar dinheiro, sem passar pelas agruras da produção.

Apesar desta hegemonia, cabe enfatizar que nada substitui a necessidade do trabalho produtivo na criação de um novo valor, apenas de forma articulada, impõe-se novas dinâmicas à produção, sobretudo com a precarização ainda mais intensa das condições de trabalho, ao transpor para a produção real, a exigência da rentabilidade aplicada pelos acionistas na forma de dividendos e juros. Como já observamos, o juro extraído nada mais é do que a repartição de fração da mais-valia extraída do  trabalho produtivo.

Desta forma, o capital a juros rearticula-se para retomar as suas taxas de lucro. Françoais Chesnais destaca dois grandes negócios que se destacam no final do século XX e início XXI nesta dinâmica: os fundos de pensão e as dívidas públicas. Ambos com fundamental aporte estatal.

Os serviços de dívida pública, ou mercado de obrigações, principalmente com a compra de títulos da dívida de países periféricos, para saldar os juros, contrair novos empréstimos, reproduz a especulação rentista, mantendo a subordinação econômica e política destas nações diante dos oligopólios financeiros dos países centrais.

Por esta razão, para o capital e seus representantes políticos, dada inclusive a preponderância do mercado externo sobre o interno, os direitos sociais são considerados como “custos” e necessitam, portanto, ser duramente precarizados e reduzidos. Por isso uma importante bandeira anticapitalista defendida pela esquerda mundial é a Auditoria das Dívidas Públicas, como forma de desnudar e denunciar as operações do Capital Fictício, em conluio com o Estado burguês, seja suas ilegitimidades e ilegalidades. Auditoria esta que pode instrumentalizar a busca pela soberania nacional e popular.

No Brasil  com a “redemocratização”,  a Constituinte de 1988 previu  a Auditoria da Dívida, proposta nunca cumprida em mais de 30 anos ,  em que o País foi regido por um ajuste fiscal permanente. O Superávit Primário, a Meta de Inflação  e o Câmbio Flutuante (tripé macroeconômico) foi o mantra da macroeconomia seja durante um viés mais ortodoxo, de Collor e FHC, seja em um viés neodesenvolvimentista, de Lula e Dilma, seja no período do Austericídio Neoliberal, de Temer e , finalmente, na atual Necropolítica de Bolsonaro. 

Cabe ressaltar que no período neodesenvolvimentista, durante o  governo Lula, foi “comemorado” o pagamento da dívida externa com FMI, mas se manteve uma dívida em reais, inclusive com credores estrangeiros que não pagam imposto algum sob as remessas de lucros ( neste caso o erário público foi novamente saqueado, pela substituição de uma antiga dívida externa, por uma composição da dívida externa/interna, com juros significativamente superiores). Portanto à transferência de valores segue, mesmo com passivos em reais, fato este que permite inferir a não  diferença se à dívida é interna ou externa. Ainda em 2015, a então presidenta Dilma, já com Joaquim Levy chefiando a equipe econômica, vetou o projeto do Psol que previa a Auditoria da Dívida Pública.

Observou-se que uma  série de  contrarreformas  constitucionais que atacam os direitos sociais  e o  orçamento destinado  aos  serviços  públicos foram aprovadas:  A Lei de Responsabilidade Fiscal (criminaliza o  governante que gastar mais que arrecada), a Desvinculação da Receita da União/DRU (toma 30% do  orçamento da Seguridade Social), a ‘Pec do Teto” (limita à despesa social à inflação  por 20 anos)  e uma  série de  contrarreformas na previdência e nas relações de trabalho. Todas estas medidas para limitar o  recurso  público para áreas sociais e  honrar os pagamentos da dívida.

Anualmente em média 40% do orçamento da união é comprometido em juros e amortização da dívida pública. Enquanto os valores destinados a saúde e educação não  chegam à 5% cada um.

Ao longo dos últimos 30 anos estes bilhões de reais são  carreados para o  pagamento de juros e amortizações, de modo a remunerar o  sistema financeiro e ‘compensar” a perda de competitividade  e a consequente desindustrialização imposta pela liberalização  financeira deste período. A burguesia brasileira hoje é predominantemente agroexportadora e rentista, de modo a reproduzir a condição de dependência, reprimarização da economia e de superexploração  da força de trabalho.

Dentre os mecanismos do  sistema da dívida denunciados pela ACD, pse verifica a rolagem da dívida, pagando a mesma com nova dívida, de modo a não reduzir o estoque de endividamento.. Mesmo com o elevado montante pago; via operações compromissadas, nas quais o Estado remunera a “sobra de caixa” dos bancos, de modo a subsidiar juros elevados; ou ainda a securitização de créditos, no qual o Estado assume os prejuízos dos bancos,  com a compra de “títulos podres” ,tema este que voltou à pauta via PEC 10/2020 do Orçamento de Guerra, durante a atual pandemia do COVID19.

Teoria Monetária Moderna: Contribuições e Contradições

 A MMT, vertente neokeynesiana propõe  uma revisão da abordagem monetarista da economia e vem ganhando adeptos mundo afora, inclusive com verniz marxista. Ela parte de uma “descrição da realidade”, sobre a moeda,  enquanto meio de financiamento originário do próprio Estado. Nesse sentido não há limite para a capacidade  de compra de um Estado Nacional com soberania monetária.

Sua principal contribuição é a de desconstituir o receituário neoliberal da necessidade do superávit primário a qualquer custo, sob pena da inflação galopante, pelo menos não  enquanto  houver capacidade produtiva a ser acionada, mesmo que isto gere déficit público. Nesta perspectiva o Estado enquanto indutor econômico não dependeria da tributação para se financiar. O Estado emite a moeda, adquire produtos e serviços,  remunera servidores públicos e recolhe os tributos de modo a controlar o  volume de dinheiro  circulante.

Esta teoria retoma o  preceito anticíclico já praticado  em outros períodos de  crise,  permitindo  maior investimento público  e déficit estatal, de forma a promover o  desenvolvimento econômico e mitigar o endividamento das famílias e empresas. Não a toa que  ganha prestígio inclusive entre economistas burgueses, keynesianos de ocasião, como André Lara Rezende, Armínio Fraga e  Henrique Meirelles, obviamente, desde que  seja utilizado para salvar os bancos e não para à garantia  dos direitos sociais.

A MMT também ignora  à relação capital-trabalho, o trabalho como gerador de Valor e centraliza o debate na moeda emitida pelo Estado, portanto, se limita à teoria econômica nos marcos do Estado burguês.

Dado o domínio do Capital sobre o debate público e os grandes meios de comunicação, qualquer voz que se opõe ao receituário do ajuste fiscal é silenciada, deslegitimada e atacada. 

Tanto os defensores da Auditoria Cidadã, quanto da Teoria Moderna são eventualmente acusados de “terraplanismo econômico”, ou ainda são questionadas suas aptidões técnicas , tal como as constantes críticas ao gráfico da ACD por supostas “falhas técnicas”.

No entanto, somam-se aos liberais  e aos saudosistas acríticos da era Lula  novos argumentos da MMT, que criam uma polêmica com a ACD. Entre os adeptos desta polêmica podemos citar: Laura Carvalho, Luiz Fevereiro e David Decache, os 2 últimos economistas ligados a ala majoritária do PSOl, que defendem esta teoria com “pitadas’ de marxismo. Inclusive esta visão refletiu na candidatura de Guilherme Boulos à presidência, assessorados  por aqueles que não  defendem em seu programa econômico à Auditoria da Dívida Pública- bandeira histórica do PSOL, defendida por Luciana Genro, Plínio Sampaio e Heloísa Helena nos pleitos eleitorais anteriores.

Estes criticam a Auditoria Cidadã  por “criminalizar o endividamento público” que seria uma prática recorrente nas economias centrais do capitalismo.Aliás EUA e Japão operam com elevado endividamento público, mesmo assim mantêm elevado padrão de desenvolvimento.

Ainda segundo esta perspectiva, acusam a  ACD de propor o corte de despesas e não o redirecionamento às áreas de interesse social. Também alegam que uma dívida em reais  pode simplesmente ser solvida por emissão de moeda e que o real  problema seria apenas a elevada taxa de juros historicamente praticada.

Ou  ainda uma auditoria e uma eventual revisão de  contratos da dívida pública, seria entendida  como um calote, que causaria à fuga de capitais e uma tendência à elevação da taxa de juros.

No entanto,  todas  estes argumentos não resistem à uma análise genuinamente marxista da economia. Primeiro não cabe comparar economias da centralidade com economias dependentes, principalmente ao tratar-se dos EUA, que emitem o dólar, moeda que determina o lastro mundial. Países dependentes agroexportadores como Brasil tornam-se neste contexto  mais vulneráveis aos organismos  imperialistas como BIS o FMI.

Ainda sobre a capacidade de emissão de moeda,  porque esta medida surge apenas para salvar o  sistema  financeiro, não para viabilizar políticas de saúde pública e gratuita, moradia popular,renda e emprego, educação, ciência e tecnologia para enfrentar  crise do Covid-19 ? 

Ratificando, se nem a própria burguesia cumpre a sua própria legalidade, devemos nós da esquerda socialista defendê-la?  Se há bancos “grandes demais para quebrar”, que precisam ser salvos com dinheiro público,  porque não  estatizá-los? Se a dívida é feita para não ser sanada porque continuar pagando?

Tais polêmicas ganham  voz na esquerda em um período  que a pauta ultraliberal avança,crescem as operações compromissadas, na qual  os títulos podres são  colocados dentro da PEC do Orçamento para pandemia como um “Cavalo de Tróia”, em  tempos que Paulo Guedes aprova por portaria  um crédito suplementar para rolagem da dívida pública.

Por isso convém ajustar a pontaria  contra o  verdadeiro  inimigo  comum: o capital  financeiro. A MMT apresenta importantes aportes, mas tem fragilidades e vácuos, na relação capital- trabalho e não  propõe alternativas aos países sem soberania monetária, nem estados e municípios, em que em muitos casos no Brasil vivem o parcelamento de salários de servidores  para sanar dívidas intermináveis com a União.  

 Enquanto isso, por outro lado, a Auditoria Cidadã cumpre um papel fundamental de denunciar o sistema financeiro  que opera em  conluio com os governantes, além de disseminar  dados e debates densos, considerados “técnicos demais” para o  conjunto da população, de modo  a armar a classe para a luta política e econômica. É perfeita síntese de agitação e propaganda.

 Na medida em que a mundialização e financeirização do capital se impõe como dinâmica, principalmente em países periféricos, enfrentar a dinâmica de endividamento estatal é uma tarefa tática e estratégica em nome da soberania nacional e da classe trabalhadora. Portanto a auditoria da dívida pública, é uma bandeira fundamental de enfrentamento ao capital financeiro e da transição para o socialismo. Para tanto é necessário definir o alvo e ajustar a pontaria.


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