Capitalismo e coronavírus

Uma análise a partir da estratégia da classe capitalista transnacional.

William Robinson 8 maio 2020, 11:19

O confinamento em casa decretado nos Estados Unidos e em muitos países do mundo para enfrentar o Covid-19 paralisou a economia capitalista e, portanto, demoliu o processo da acumulação de capital. Que esta paralisia econômica jogue dezenas de milhões de trabalhadores numa crise de sobrevivência é totalmente fortuito à preocupação da classe capitalista transnacional (CCT) de reativar já a maquinaria lucrativa, pois o capital não pode permanecer ocioso sem deixar de ser capital.

O impulso para reavivar a acumulação explica que tenha havido em muitos lugares dos EUA manifestações da ultradireita para exigir o fim da quarentena, da mesma maneira que os setores mais reacionários do capital promoveram o Tea Party após o colapso financeiro de 2008, movimento que por sua vez se ativou em apoio ao trumpismo.

Embora os protestos pareçam espontâneos, foram organizados por agrupamentos conservadores, entre eles, a Fundação Heritage, Freedom Works, e o Conselho Estadunidense de Intercâmbio Legislativo (ALEC, por sua siglas em inglês), que reúne os diretores executivos das grandes corporações junto com os legisladores direitistas locais nos EUA. O próprio presidente Trump inflamou os manifestantes mediante tweets, entre eles um que rezava liberar a Virgínia, e proteger sua grande Segunda Emenda, que está sob assédio. O chamado a defender tal emenda da Constituição, que assegura o direito a portar armas, quase constituiu um chamado à insurreição armada. Dias atrás, Trump afirmou ter poder total – a clássica definição de totalitarismo – para levantar a quarentena.

Apesar de sua retórica populista, o trumpismo tem servido bem aos interesses da CCT em implementar um programa de neoliberalismo em esteroides que vai desde a reforma impositiva regressiva e a ampla desregulação e privatização, até uma expansão de subsídios ao capital, cortes ao gasto social e repressão sindical. Trump – ele próprio membro da CCT – retomou onde deixou o Tea Party na sequência do colapso financeiro de 2008, forjando uma base social entre os setores da classe operária majoritariamente brancos que gozaram antes de privilégios, tais como emprego estável e bem remunerado, que em anos recentes experimentaram uma aguda desestabilização socioeconômica e mobilidade descendente ante a globalização capitalista. Do mesmo modo que o Tea Party que lhe precedeu, Trump soube desviar a cada vez maior ansiedade social que sentem estes setores, desde uma crítica radical ao sistema capitalista rumo a uma mobilização racista e jingoísta contra os bodes expiatórios, como os imigrantes. 

A cada vez maior crise do capitalismo acarretou uma rápida polarização política na sociedade global entre uma esquerda insurgente e forças ultradireitistas e neofascistas que conseguiram adeptos em muitos países. Ambas as forças recorrem à base social dos milhões que foram devastados pela austeridade neoliberal, o empobrecimento, o emprego precário e o descaso com as fileiras da humanidade supérflua.

O nível de polarização social global e desigualdade é agora sem precedentes. O 1% mais rico da humanidade controla mais da metade da riqueza do planeta enquanto os 80% mais pobres têm que se conformar com apenas 4,5% dessa riqueza. Enquanto se estende o descontentamento popular contra esta desigualdade, a mobilização ultradireitista e neofascista joga um papel crítico no esforço dos grupos dominantes de canalizar tal descontentamento para o apoio da agenda da CCT, disfarçada numa retórica populista.

É neste contexto que os grupos conservadores nos EUA se empenharam em organizar uma resposta ultradireitista à emergência sanitária e a crise econômica, abarcando uma maior dose de subterfúgio ideológico e uma renovada mobilização de forças de choque que agora exigem o fim do confinamento. A mobilização de massas desde abaixo bem poderia exigir que o Estado proporcione socorro em grande escala para os milhões de trabalhadores e famílias pobres em lugar de insistir na imediata reabertura da economia. Mas a CCT e seus agentes políticos buscam a todo custo evitar que as massas demandem um Estado de bem-estar social como resposta à crise. É por isso que promovem a revolta reacionária contra o confinamento avivada por Trump e a ultradireita.

A CCT se empenhou em transferir a carga da crise e o sacrifício que impõe a pandemia às classes trabalhadoras e populares. Para este fim pôde contar com o poder do Estado capitalista. Os governos no mundo aprovaram novos resgates massivos para o capital, enquanto escorrem deste roubo algumas migalhas para as classes trabalhadoras. Os governos estadunidense e europeus prometeram 8 trilhões de dólares em empréstimos e subsídios às corporações privadas, aproximadamente equivalente a todos os seus lucros nos últimos dois anos.

Trata-se da luta de classe a partir de cima. Enquanto estes trilhões de dólares se acumulam na parte mais superior da pirâmide social, a crise desatada pela pandemia deixará com sua passagem mais desigualdade, tensão política, militarismo e autoritarismo. A Organização Internacional do Trabalho advertiu que centenas de milhões de pessoas poderiam perder seu emprego, enquanto a agência internacional Oxfam calculou que até 500 milhões estão em risco de cair na pobreza. Ainda mais  ameaçador, o Programa Mundial de Alimentos advertiu sobre uma “fome de proporções bíblicas”, calculando que até 130 milhões de pessoas poderiam morrer de fome pelo possível colapso das cadeias de abastecimento de alimentos. 

O caráter classista da pandemia fica desnudado. Ao vírus não lhe importa a classe, a etnia ou a nacionalidade de seus portadores humanos, mas são os pobres, os marginalizados e as classes trabalhadores os que não gozam das condições de se proteger nem podem assegurar a atenção médica em caso de contágio. Milhões poderiam morrer, não tanto pela infecção, mas pela falta de acesso aos serviços e recursos vitais. As classes dominantes utilizarão a pandemia como cortina de fumaça para consolidar um estado policialesco global. No final, a crise capitalista desatada pelo coronavírus será mais mortal para os trabalhadores empobrecidos que o próprio vírus.

Artigo originalmente publicado em La Jornada. Tradução de Charles Rosa.


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