Defender os que estão na linha de frente

É preciso cercar de solidariedade os trabalhadores da saúde, exigir a ampliação do orçamento do SUS e o acesso da população mais carente.

Israel Dutra 3 maio 2020, 00:14

Arlindo Ritter é um técnico em segurança do trabalho que tem 60 anos, a maior parte deles dedicada ao trabalho na área da saúde e ao Hospital Conceição, em Porto Alegre. Ao testar positivo, contraindo coronavírus, ficou internado durante seis dias. Entre a vida e a morte, uma forte corrente de solidariedade se espalhou entre colegas e amigos. Dirigente sindical, líder da associação dos trabalhadores do Grupo Hospitalar Conceição, Arlindo saiu do hospital agitando a luta em defesa do SUS. Foi emocionante. Falo de Arlindo, porque o conheço há 17 anos, me fiz seu amigo, e sei que ele é daqueles exemplos dos “melhores da nossa classe”. Mas poderia estar falando de milhões de histórias no país.

Muitos desses profissionais não tiveram a mesma sorte. São vários que vieram a falecer, verdadeiras mortes da primeira fila de combate à Covid-19. Muitos foram infectados, alguns lutam pela vida, muitas trajetórias interrompidas. Em comum: uma vida entregue à defesa da vida.

No Brasil e no mundo, inclusive, a ampla maioria da “linha de frente”, ou seja, de profissionais da saúde, são mulheres. Dados estimados apontam que, no Brasil, entre as diferentes ocupações ligadas à área da saúde, as mulheres compõem mais de 70% da força de trabalho. Esta é também a força das e dos que combatem na linha de frente.

Amparada nessa força, o grande destaque do 1º de Maio, para além das “lives” das centrais sindicais, foi o protesto organizado pelo sindicato da enfermagem de Brasília na Praça dos Três Poderes. Com uma organização exemplar, ao respeitar as regras de isolamento e distanciamento social, as mulheres da linha de frente reivindicaram melhores condições de trabalho, defesa da quarentena e equipamentos de proteção individual, além de criticarem a política de genocídio do governo Bolsonaro. A cena que ganhou o mundo mostrava um troglodita bolsonarista tentando atacar uma enfermeira, que o expulsou do ato, mostrando coragem.

Nesse exemplo, condensa-se uma das lutas mais importantes do período em que vivemos, marcado pela pandemia e pelas barbaridades de Bolsonaro: a luta dos profissionais da saúde e a luta da “linha de frente”, que simboliza a principal oposição, em termos de valores, práticas e solidariedade, ao negacionismo da extrema-direita.

A situação do governo é terrível. Mandetta, como ministro da saúde, em sua última entrevista, já admitia que não havia plano algum, poucas condições, sem utilizar testes rápidos massivos, e que o melhor era se preparar para o “pior”. A linha da OMS, com apoio dos governadores, surtiu certo efeito, retardando a curva de contágio. No entanto, a linha bolsonarista de confusão, expressa na nova doutrina “Teich”, jogou mais gente nas ruas, ampliando o caos semanas antes da previsão de pico nas grandes cidades do país.

Os leitos já estão superlotados. Faltam EPIs, não há testes massivos para todos os profissionais de saúde e as previsões todas falam em dezenas de milhares de mortos nas próximas semanas. Os profissionais que lutam pela vida, na linha de frente, estão desprotegidos, não contam com os governos e os gestores dos grandes hospitais, e estão apenas apoiados pela solidariedade popular e por sua capacidade de organização. 

Enquanto o governo central desmorona, explodem protestos na área da saúde por melhores condições de trabalho, com urgência. Houve protestos no Piauí; no pronto-socorro de Belém, onde dois turnos de auxiliares de enfermagem foram à frente do hospital protestar contra a falta de EPIs; e em Macapá, também pela falta de EPIs.

Em São Paulo, o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), junto ao ativismo de base, fez, no dia 23 de abril, uma ação de agitação em frente ao Hospital Universitário, contra a precariedade dos equipamentos em uso, sobretudo máscaras, a resistência da direção do hospital em afastar os trabalhadores do grupo de risco e, também, contra a falta de vontade política de João Doria, que sequer cogita um plano de novas contratações emergenciais.

Menos de uma semana depois, foi no Hospital Conceição, em Porto Alegre, sob o comando da ASERGHC e do Sindisaúde, que os trabalhadores fizeram um amplo protesto, nesse caso, além das condições de trabalho, contra a privatização do hospital.

Assim, o plano do governo é mesmo de guerra, mas guerra contra os trabalhadores. Teich deu a entender, em entrevista, que se deve escolher “prioridades” nas situações mais graves, o que quer dizer escolher quem deve ou não viver. Guedes anuncia que vai privatizar diversos hospitais no país, inclusive referências como o GHC e o Hospital de Clínicas em Porto Alegre.

As lutas da linha de frente estão começando. Hoje, sábado 2 de maio, um belo protesto dos médicos do Hospital de Clínicas de SP chamou a atenção da sociedade.

O cenário vai polarizar. O governo vai endurecer e querer deixar expostos os trabalhadores que estão na primeira fileira. O movimento não irá aceitar. Os choques serão inevitáveis. A defesa do SUS, nesse contexto, ganha um caráter estratégico. É a defesa da vida.

Precisamos cercar de solidariedade esses trabalhadores. Debater medidas emergenciais que passam por ampliar o orçamento imediato do SUS e garantir o acesso da população mais carente. Assim, se faz muito importante a proposta – apresentada como projeto de lei por várias figuras do PSOL – de centralização da fila de leitos pelo SUS. Ou seja, defender os direitos dos mais pobres avançando na oferta do melhor serviço público de saúde que temos.

A discussão de ampliar orçamento para o SUS, garantindo mais verba para contratação imediata de novos profissionais, além de valores adicionais ao salário de quem já está na linha de frente, por conta da alteração de rotina, deve levar à revogação da “PEC da Morte”, a PEC do teto de gastos. E por reverter a política fiscal, taxando grandes fortunas, atacando o lucro parasitário dos bancos e debatendo o problema das dívidas públicas.

Além disso, diversas organizações e setores que estão indo às ruas precisam estabelecer conexões para garantir uma rede, um comitê de emergência que atue diante da incapacidade completa do governo federal. Unir profissionais da saúde, da ciência e da pesquisa, através de seus sindicatos, seus conselhos, suas instâncias é um passo nessa direção.

Um programa mínimo poderia partir da sistematização de medidas que vem sendo propostas, como:

1) Unificação dos leitos e controle pelo SUS – com investimento direto na saúde pública, pela incorporação dos hospitais filantrópicos pelo Estado e pelo fim dos contratos com Organizações Sociais de Saúde para construção, gestão e contratação dos trabalhadores nos hospitais de campanha;

2) Testagem em massa de toda a população – para garantir a detecção precoce dos infectados e adotar medidas de isolamento diminuindo a circulação do vírus;

3) Convocação de trabalhadores aprovados em concurso e contratação de contingente emergencial, para atuação nos serviços de saúde, pelo prazo mínimo de 24 meses e com renda compatível ao risco de vida exposto; ampliação dos valores de contrato para suprir novas despesas durante o período extraordinário;

4) Condições adequadas de trabalho e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para todos em quantidade e qualidade suficientes. Máscaras de maior qualidade como medida obrigatória para todos hospitais;

5) Pela reconversão industrial – que a produção nacional de itens essenciais, como respiradores, máscaras, álcool gel, entre outros, esteja voltada a atender a demanda imediata da população, dos trabalhadores e serviços de saúde. A simpatia que as “heroínas e heróis” da saúde despertam em amplas camadas do povo deve levar não apenas a aplausos mas à solidariedade ativa e à auto-organização de uma rede que evidencie o programa e a autodefesa daqueles que estão na linha de frente. Assim, é possível romper a inércia rotineira das principais direções sindicais e políticas a fim de ampliar a defesa dos trabalhadores de serviços essenciais e colocar em movimento, durante o esforço de guerra, os interesses daqueles que estão nas trincheiras. Essa é a tarefa primordial da nossa classe em tempos de pandemia.


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