Jim Jones nas carreatas das mortes
Mais do que especular as apostas, se Bolsonaro vai figurar como Mussolini ou Jim Jones, devemos lutar para derrotar e derrubar seu governo.
Os mais novos não conhecem Jim Jones, um dos personagens mórbidos do século XX.
Na noite do dia 18 de novembro de 1978, na cidade criada pela sua seita, Jonestown, nordeste da Guiana, o pastor Jim Jones, liderou um dos maiores crimes do século, um suicídio em massa que vitimou mais de 900 pessoas. Além disso, foi assassinado o deputado estadunidense Leo Ryan, que tinha sido enviado pelo Congresso para acompanhar denúncias contra Jones. Com uma retórica de que “estava com o povo”, Jim Jones se tornou uma referência em relação ao absurdo e a morte: o nome de sua seita era “Templo do povo”, sendo que Jones chegou a viver no Brasil e era amigo íntimo do torturador Dan Mitrone.
Bolsonaro quer trazer para si ares de Mussolini, comparando a carreata do domingo com a “marcha sobre Roma” de 1922. O que talvez deva ser analisado é que o presidente está mais próximo de Jones do que do fascista italiano.
Depois de frequentes tentativas de desconsiderar a gravidade da pandemia de Covid-19 no Brasil, Bolsonaro, exultante, celebrou a carreata central que seus apoiadores fizeram em Brasília. Após esconder os resultados de seus exames, Bolsonaro apareceu sem máscaras, discursando a favor da ditadura para um pequeno séquito de apoiadores, eletrizados com a “elevação do tom” adotada por seu líder. A tragédia é tamanha que, no mesmo dia da carreata de Brasília, 3 de maio, o ministro da saúde da extrema-direita estava em Manaus para presenciar pessoalmente o colapso sanitário e funerário que vive a capital do Amazonas. Como escreveu Vladimir Safatle, sobre a relação da pulsão de morte com a atitude do bolsonarismo mais radical, o projeto dos semifascistas é um verdadeiro “Estado suicidário”: querem a morte como insígna. A morte como via dos que não tiverem condições de enfrentar o vírus, em hospitais abarrotados e caóticos; o louvor dos torturadores como senha da morte, com a defesa aberta da ditadura. Bolsonaro chegou a receber Sebastião Curió, notório assassino e torturador, do time de Fleury, Ustra e outros agentes dos porões da ditadura militar.
Contudo, as ameaças acontecem no momento de perda de apoio do governo. O Brasil já superou os 100 mil casos de infectados, em breve chegaremos a 10 mil mortes, mesmo com as subnotificações absurdas. O Brasil lidera o ranking da morte dos países periféricos. Isso tem custos enormes. A ruptura com Moro debilitou Bolsonaro, que quer aparentar o inverso. O duelo sobre a troca de mensagens que configura interferência pessoal do presidente no trabalho de Moro está longe do final, bem como pelo controle das indicações da PF. Enquanto isso, o derretimento da economia apenas começa. Todo um cenário que leva Bolsonaro a perder parte da sua base social. Em recentes declarações, líderes caminhoneiros afirmam que não acompanham Bolsonaro na sua linha de desrespeito ao isolamento social.
A linha do bolsonarismo combina uma estratégia consciente e, no nosso entendimento, um flerte com a irracionalidade. A linha consciente é: ampliar sua base para parte do chamado “centrão”, deixando mais nítida a aliança com setores fisiológicos e milicianos da política, tanto no parlamento quanto na sociedade. Isso seria uma medida preventiva contra o impeachment e forma de pressionar o poder legislativo, em rota de colisão com o núcleo duro do governo. Parte da estratégia consciente de Bolsonaro é opor a ativação da economia à defesa de medidas de proteção das vidas, como distanciamento social e as recomendações da OMS. Assim, mobiliza uma base desesperada da pequena burguesia, dos setores informais menos politizados e obedece à burguesia emergente do varejo, encarnada em Luciano Hang, da Havan.
Aproveitando que a “esquerda e o progressismo” estão orientando a manutenção das regras sanitárias que os governadores decretaram, o campo fica “livre” para manifestações de rua do bolsonarismo mais duro. Seja através das “carreatas da morte”, seja em atos simbólicos como o do próprio presidente. Caravanas de bolsonaristas do Brasil inteiro estão se organizando para ir à Brasília. Na capital federal, liderados pela ativista de extrema-direita Sara Winter, grupos de “choque” promovem ações, agridem jornalistas e agitam uma radicalização. Deputados ligados ao bolsonarismo vocalizam o desejo de criar milícias políticas, inspiradas em grupos terroristas de direita da Europa.
A questão é que tal estratégia leva uma irracionalidade flagrante. O autoengano das tropas bolsonaristas joga com a morte e com a negação da própria realidade. Não se trata de subestimar o neofascismo dessas hordas. Porém, dentro dos ruídos, estouros e aplausos dos convertidos, a euforia do presidente ganha contornos radicais e desmedidos. As provocações parecem não ter fim. Sentido-se forte, Bolsonaro desafia a todos, às vésperas da fase mais aguda de contágio da Covid-19 e com um arranjo de governo extremamente precário. As Forças Armadas sustentam e tutelam seu governo, sem que se posicionem diretamente a favor de todos os seus lances. Esse autoengano levou parte dos comerciantes, de baixa, média e alta patentes, a acreditar que era apenas uma “gripezinha”. Isso está levando as milícias reais e virtuais a desfilarem orgulhosas com as bandeiras de Bolsonaro, mesmo levando a enfrentamentos físicos como a luta entre bolsonaristas e moristas em frente da Polícia Federal, no último sábado, em Curitiba.
Redobrar a aposta, deixando o cheiro da morte no ar, buscando dobrar pela vontade da força todos os setores que lhe cercam: eis a estratégia manifesta de Bolsonaro. Por outro lado, despenca nas pesquisas de opinião e tem uma bomba-relógio ligada à gestão da crise da Covid-19, em conflito aberto com os governadores e os outros poderes centrais. Mesmo nomes do seu ministério, como Guedes e Teresa Cristina, já sofrem rumores de demissão. A ação das milícias conseguirá dar respaldo coordenado e força para seu despreparo no poder? Mesmo numa inusitada situação de obstrução das ruas, a opinião da maioria da população vai se pronunciar? Mais do que especular as apostas, se Bolsonaro vai figurar como Mussolini ou Jim Jones, devemos lutar, com as brechas que existem, para impor, por meio da maioria social, a derrota e a derrubada do governo. Antes que tarde, o povo brasileiro vai transformar o bolsonarismo e seus adeptos (mais assemelhados a uma seita de morte) numa peça bizarra dos museus da história, tal qual o episódio “Black Museum” da série “Black Mirror” da Netflix.