Marx e Freud

O enigma humano só pode ser desvendado a partir de uma radical condição humana: ela uniu a Marx e Freud.

Israel Dutra 9 jun 2020, 14:52

Nossa visão de mundo não permite concluir correlações formais entre as datas de nascimento e as trajetórias e personalidades dos indivíduos, de forma pura. As teorias que defendem a visão a partir do zodíaco, foram refutadas – e bem refutadas – por diversas vezes no embate do pensamento moderno. Contudo, as coincidências podem servir de ponte para acessar temas como um recurso literário, inclusive para apresentar outros distintos, vinculando-os entre si.

O presente caso, dos dias 5 e 6 de maio na história, passa de uma coincidência para um necessário exame da relação entre as ideias desses dois homens, nascidos no século XIX. Ambos morreriam em Londres, em séculos diferentes.

Karl Marx completaria 202 anos em 5 de maio. Positivamente, as redes sociais foram inundadas de declarações, artigos, pequenas biografias e informações sobre esse gigante do pensamento e da ação humana. O “Mouro”, como era carinhosamente chamado, foi um personagem do seu tempo. Teve uma amizade fiel, até o final da vida, com seu camarada Friedrich Engels; teve uma torrente história de amor com Jenny Von Westephalen, companheira da vida toda; sofreu com o infortúnio da pobreza, perdeu parte da família, ficou doente, amargou restrições pessoais e civis. 

Como Engels imortalizou no discurso diante de seu túmulo:

 “A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar. Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontrámo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre.

O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com [a morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana(…)”

Escreveu, também em parceria com Engels, o livro que, junto à bíblia, mais circulou ao longo dos últimos dois séculos, o “Manifesto Comunista”. Abordou, como homem da ciência, temas variados, sempre pulsando a serviço da estratégia de construção de movimentos revolucionários. Sua obra máxima, “O Capital”, é a mais universal das explicações sobre a forma como as coisas e o mundo se organizam. Marx despertou, nas gerações futuras, a sede pelo conhecimento e pela transformação radical e igualitária das condições históricas e sociais. Unificou a classe trabalhadora com seus escritos, traduzidos em dezenas de línguas e diferentes alfabetos.

Sigmund Freud veio ao mundo no dia 6 de maio de 1856, em meio às grandes transformações que a Europa conhecia. Nasceu na República Tcheca. Faleceu no último ano da década de trinta, em Londres. Desterrado por conta da perseguição à ciência, aos judeus e ao pensamento crítico imposta pelo regime totalitário de Hitler.

São belas as biografias de Freud. A mais conhecida é de Peter Gay. E o filme “Freud, Além da Alma” leva à tela grande o rigor e a descoberta de Freud. Sua obra sempre foi marcada pelo rigor. Neurologista, aplicou critérios sólidos para avançar rumo a uma nova ciência. Como pioneiro, foi frequentemente questionado, sem deixar de acreditar nas suas convicções. Também encontraria Marx na definição de que “nada que é humano, estranha”.  Mais que um navegador que descobre um novo continente, o inconsciente, Freud fundou uma ciência que o agrega a Darwin, Galileu e ao próprio Marx. Uma definição plenamente humana, mas que nos deixava “nus”. Não éramos capazes de nos governar, senão refletir algo que não tínhamos plenitude do comando.

Foi um passo decisivo para a racionalidade abraçar, outra vez, a definição socrática, de que nada sabemos, como ponto de partida da sabedoria e da verdade. Ao descortinar o inconsciente, Freud lutou com força por suas ideias, ora mais extremadas, ora mais conciliadoras. Seu libelo contra as formas religiosas e metafísicas de mundo, “O futuro de uma ilusão”, é também um manifesto pela emancipação humana. Suas posições políticas, contudo eram incompletas e conflituosas, refletindo a crise do modelo capitalista, a desesperança e a visão estreita de mundo da culta aristocracia, dos círculos de Viena.

Trotsky foi um dos primeiros líderes bolcheviques a reconhecer a necessária aproximação com psicanálise. Tanto na sua visão de Estado quanto no tratamento das dificuldades emocionais de Zina, sua filha mais querida, Trotsky se interessava e discutia a obra de Freud e a psicanálise.

Anos mais tarde, na escola francesa, Louis Althusser buscou a aproximação – sem perder de vista as diferenças no campo metodológico e de objeto – entre Freud e Marx.

O enigma humano só pode ser desvendado a partir de uma radical condição humana. Ela uniu a Marx e Freud. Sob as reflexões desses gigantes, nossa estatura pequena não pode nos eximir responsabilidades. Os dados seguem lançados.

Artigo originalmente publicado no Jornal do Juntos!.

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