Marxismo e saúde: o direito à vida e à saúde universal

A produção de saúde emancipadora é um trabalho de práxis marxista, não sendo uma tarefa exclusiva dos profissionais ligados ao cuidado.

O materialismo histórico é necessário para compreender como se configura a saúde pública brasileira, e também compreender como os atores sociais e contribuíram para a organização das coisas. O conhecimento vindo do marxismo se dá pela análise da dinâmica e transformação. O horizonte da luta de classes nos orienta na compreensão de saúde e como questões-limite de vida e de morte são escancaradas, e as tensões em relação à diferença entre as classes no viver, adoecer, morrer e se curar.

Historicamente, temos um sistema universal e gratuito de saúde, ainda que incompleto, não é pura concessão burguesa. Foram muitas as movimentações pressionaram desembocando nessa conquista. Os movimentos da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e reforma psiquiátrica dão início, no final dos anos 70, a uma mudança de perspectiva pela disputa do conceito de saúde. Vieram de movimentos de trabalhadores e ativistas da saúde, universitários, sindicalistas e movimentos comunitários/de bairro. Não chegou a ser um movimento político organizado, com direção e programa global, mas erupção de movimentações sociais de expressão política relativamente centralizada; tinham como bandeira melhores condições sanitárias para o povo, uma abordagem mais coletiva e menos biológica/individual no campo da saúde e reformas na forma da assistência à saúde no Brasil. Também eram anti-ditadura militar. Apesar de não se organizarem partidariamente, haviam lideranças partidárias marxistas importantes, como Sérgio Arouca, e outros.

Toda essa organização desaguou na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, sendo um marco na luta pela saúde pública brasileira, conquistada na lei em 88. Seu Documento Final foi base para a legislação do SUS. Na lei lei 8.080/90, vemos a incorporação de teorias sociais para a percepção de saúde, considerando determinantes e condicionantes para a saúde: alimentação, moradia, renda, saneamento, educação, transporte, lazer e acesso a serviços.

Apesar da influência da RSB na configuração do que viria a ser o SUS, o que ficou de política pública foi organizado para o clima da Nova República. Existiram avanços importantes, em especial na disputa para que o conceito geral de serviço de saúde deixasse de se relacionar apenas a aspectos biológicos, curativos, medicalizados e centrado nos grandes hospitais, para se relacionar com a saúde preventiva, considerando a diversidade, a necessidade de integralidade e maior democratização no acesso aos serviços. Essa é, porém, uma lógica ainda social-democrata, colocando a saúde como política pública de um estado burguês que oferece o mínimo necessário.

Para os marxistas da RSB, a saúde era um campo estratégico dos revolucionários, onde questionava-se porque os processos de adoecimento e cura se davam de maneira completamente diferentes entre as classes, também as lógicas de financiamento público e privadas, questionando um sistema econômico que inviabiliza o bem estar e a capacidade das pessoas de usufruírem plenamente de suas capacidades físicas, intelectuais e criativas. Mais concretamente, o marxismo fundamenta o avanço de uma concepção latino-americana de saúde, a partir da teoria da determinação social do processo saúde-doença, colocando o trabalho como determinante desse processo, pois é mediador das relações estabelecidas entre indivíduo, a sociedade e natureza. Se comprometendo com uma classe social específica, torna-se uma ferramenta para a busca da superação das contradições da sociedade em que se vive pelos trabalhadores da saúde e sociedade civil organizada

Atualmente, mesmo no SUS “abrandado” -pela mediação da Nova República- por estar ameaçado, é natural levantarmos sua bandeira como garantidor da vida. Mas é preciso, também saber de suas contradições, pois pela sua própria legislação, oferece brechas para o avanço constante do capital. Como disse o próprio Sérgio Arouca, idealizador da RSB e do SUS: “O modelo assistencial é anti-SUS. Aliás, o SUS como modelo assistencial está falido, não resolve nenhum problema da população. Esta lógica transformou o governo num grande comprador e todas as outras instituições em produtores. A Saúde virou um mercado, com produtores, compradores e planilhas de custos. O modelo assistencialista acabou universalizando a privatização.”

Existe um distanciamento entre a construção do nosso sistema de saúde o processo de emancipação humana pelo qual lutamos. Ainda em 2005, um ex-economista do FMI disse que “a próxima grande batalha entre o socialismo e o capitalismo se dará em torno da saúde humana e da expectativa de vida”. Mesmo ganhando posições nas décadas passadas, com o movimento sanitarista e o SUS, perdemos muito recentemente. É necessário criatividade e organização para agir rumo a emancipação humana, pela livre autodeterminação, por maior participação pública nas decisões coletivas, para que hábitos saudáveis não sejam uma decisão individual, mas um conjunto de condições sociais e econômicas viabilizadas a partir de uma verdadeira revolução no modo de vida.

Espaços de discussão comunitárias sobre saúde precisam ser estimulados. A produção de saúde emancipadora é um trabalho de práxis marxista, não sendo uma tarefa exclusiva dos profissionais ligados ao cuidado. É um constante movimento de atos coletivos,  com reflexo nas individualidades. A formação nos cursos da área precisam debater cada vez mais seu papel dentro da sociedade, não como detentores de saberes, mas no papel de estar a serviço dos coletivos.  E, num momento como o da atual pandemia, fica clara essa necessidade histórica. A saúde passa a ser uma trincheira fundamental, de onde, se agirmos de forma organizada, pode emergir globalmente um movimento de questionamento à ordem barbárica do neoliberalismo.

Artigo originalmente publicado no Jornal do Juntos!.

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Pedro Micussi