Periferia quer viver! Renda Permanente já!
A renda básica permanente pode e deve ser pensada como direito universal.
Desde que a pandemia do novo coronavírus avança a passos largos no Brasil, temos visto e participado ativamente de inúmeras iniciativas de solidariedade, aliando medidas urgentes e assistenciais como arrecadação de alimentos, kits de higiene, livros, brinquedos e apoio psicossocial, à organização política das demandas populares, especialmente nas periferias urbanas. Se estas iniciativas fundamentais representam um importante alento neste momento desesperador para a maior parte do povo brasileiro, elas também mostram-se absolutamente insuficientes perto do aprofundamento da crise econômica, social, sanitária e ambiental.
É neste sentido, na esteira da manutenção da solidariedade ativa, da ampliação dos laços organização popular e da luta urgente para que se mantenha o Auxílio Emergencial conquistado até agora, que temos que avançar na luta política para que haja uma renda básica digna e permanente paga pelos ricos desse país por meio da tributação da renda e das grandes fortunas. Está na hora de expor e retomar a cobrança da dívida histórica da desigualdade. Por este caminho podemos encontrar uma solução para a crise que não seja, mais uma vez, o chamado ao sacrifício do povo pobre.
Com se sabe, o avanço da Covid-19 no Brasil representa uma tragédia de grandes proporções. Contudo, ela não atinge todas as pessoas da mesma forma. Seja pela desigualdade social, pela desigualdade de gênero e pelo racismo estruturantes da sociedade brasileira, seja pela postura criminosa de muitos governos – em especial do governo federal de Bolsonaro -, desenvolvem-se políticas de morte que atingem com muito mais violência os pobres, as mulheres, a negritude e os moradores das periferias. Além deles, uma gama mais ampla de trabalhadoras e trabalhadores que antes figuravam em camadas médias se vêm arrastados também para essa realidade trágica diante da destruição de postos de trabalho, da redução da jornada e salários, da precarização do trabalho e do avanço da pobreza.
Dentro deste quadro, após uma pesada pressão contra o próprio governo Bolsonaro, foi aprovado no Congresso o Auxílio Emergencial de R$ 600 para algumas famílias mais pobres. Ainda que o Auxílio tenha muitos problemas – entre eles o fato de que, ao não partir do entendimento da renda básica como direito fez com que parte da população mais necessitada fosse excluída do seu recebimento – para muitas famílias que estavam tendo que viver à sombra da fome, do desemprego e da pandemia, foi um desafogo que evitou um cenário provável de maiores explosões sociais e saques nas periferias do país.
Hoje, o debate em torno da extensão do Auxílio Emergencial e a necessidade de uma renda básica tem mobilizado a maioria dos setores políticos do país. Está evidente, até para economistas liberais, que a ausência da renda básica pode provocar uma crise social de escala inédita e imprevisível. Contudo, além do desgaste que a retirada ou diminuição do Auxílio – como sinalizaram Guedes e Bolsonaro – pode causar nas camadas populares em ano eleitoral, o fato do programa ser considerado por eles como caro gera também pressões dos abutres liberais e do capital financeiro contra a extensão da medida.
Neste debate, há uma armadilha. Propostas como a “Renda Brasil” de Paulo Guedes ou o “Programa Renda Básica Brasileira” de um deputado da direita começam a circular. Estes projetos baseados em concepções liberais como a do “imposto de renda negativo” de Milton Friedman, nada mais são do que uma extensão da política dos “vauchers”, isto é, ao mesmo tempo que desmantelam programas sociais e serviços públicos, concedem uma pequena renda para que estes mesmos serviços sejam consumidos na esfera privada. Neste engodo, o que concedem com a mão do “corona vaucher”, retiram na saúde e na educação públicas, no programa de erradicação do trabalho infantil, no seguro defeso, nas políticas de seguridade, entre outras. Além disso o financiamento do programa não propõe atacar a injustiça tributária que estrutura a sociedade brasileira. São os pobres e as classes médias que pagam a conta. Estas políticas de “rendas básicas” associadas à pilhagem dos recursos públicos e ao ataque a direitos, se é ruim mesmo do ponto de vista da fria matemática econômica, por seu turno também não resolve e, ao contrário, piora substancialmente os problemas sociais que a geraram.
O fato é que a grande maioria dos prognósticos econômicos ou não vêem ainda um caminho de saída ou apontam para uma crise prolongada. Sem expectativa de retomada de crescimento econômico que permita a política que temos visto recorrentemente em economias liberais de distribuição das “bordas do bolo”, não há dúvidas de que, ao lado do avanço exponencial das mortes por Covid nas periferias que ora verificamos, a tendência mais forte é a enorme ampliação da pobreza e o aumento substancial da miséria do povo. Ao não ter uma política efetiva de reversão deste cenário fazendo com que os mais ricos paguem a conta, ao aumento do abismo entre os super-ricos e os mais pobres seguramente se somará a clássica solução de força com a qual as elites históricas do Brasil lidam, tratando os problemas sociais como casos de polícia. Já vemos isso hoje: aumento da violência do Estado contra a população mais vulnerável – negra, em sua maioria – e mais repressão para conter os descontentamentos.
Dentro deste cenário vemos que temos duas tarefas imediatas. A primeira é multiplicar a luta em todos os terrenos para que haja a prorrogação do Auxílio Emergencial de R$ 600, buscando corrigir seus graves problemas, isto é, lutando para incluir no programa novos desempregados, famílias não atualizadas no cadastro do bolsa-família, imigrantes, famílias de presidiários além de todos os excluídos pela desigualdade de acesso à internet e pelos problemas burocráticos.
Concomitantemente é necessário começar desde já, a partir das periferias, uma luta organizada por uma renda básica digna e permanente financiada pela tributação da renda, das grandes empresas e dos ricos. No Congresso já há uma luta histórica pela regulamentação do imposto sobre as grandes fortunas e por mecanismos que combatam a histórica e injusta estrutura tributária brasileira, onde a tributação incide muito mais no consumo e renda do trabalho do que na renda do capital e no patrimônio. Ou seja, é preciso inverter a pirâmide do Brasil onde o pobre paga mais imposto que o rico. O projeto de reforma tributária elaborado pela Luciana Genro e agora levados adiante pela bancada do PSOL são bons exemplos. Além disso, segundo estudo do CEDEPLAR/UFMG sobre o Auxílio Emergencial, boa parte do que se gastaria com uma renda básica também voltaria aos cofres públicos como impostos, por meio da produção e consumo.
Assim, a renda básica permanente, uma urgência para o povo mais pobre pela qual temos que lutar imediatamente, pode e deve ser pensada também como direito universal tal qual o devem ser a educação e a saúde públicas e universais. Sua adoção daria alternativa ao mercado de trabalho especialmente àqueles que por falta de um piso mínimo de renda têm que se submeter a trabalhos indignos e precários. Mas o mesmo pode-se dizer a muitos outros trabalhadores como os jovens que buscam o primeiro emprego ou a artistas e trabalhadores da cultura, por exemplo. Junto disso, a luta pela renda básica de hoje, garantida pela tributação dos mais ricos, é uma oportunidade de fazer justiça social fazendo com que a conta dessa crise seja paga por aqueles que nos trouxeram até aqui.
Referências: