Em defesa do socialismo

Homenagem ao centenário de nascimento de Florestan Fernandes.

Florestan Fernandes 22 jul 2020, 14:53

Em homenagem ao centenário de nascimento de Florestan Fernandes, maior sociólogo brasileiro de todos os tempos, publicamos abaixo seu Em defesa do socialismo, de 1990. No momento em que o ideário revolucionário poderia parecer desacreditado com a ascensão neoliberal, o autor escreve este belo texto resgatando o que de mais potente existe na práxis marxista. O autor, que à época militava junto aos setores da esquerda do PT, traça aqui um diagnóstico preciso da realidade brasileira. Para a superação de seus problemas, Florestan entende haver uma única saída possível.

O título deste escrito lembra Mariátegui, que reuniu vários ensaios em um famoso livro: Em defesa do Marxismo. As oscilações históricas provocam essas recorrências. A grande esperança dos que se chamam neoliberais consiste nisso: que o socialismo desapareça e que o marxismo se torne uma peça de museu, tema de mera reflexão abstrata de historiadores, filósofos e cientistas sociais. Ora, o que é questionável é a existência de um “neoliberalismo”.

Harold Laski já demonstrou que o liberalismo não sobreviveu à transformação histórica das condições que o engendraram. Hoje, sua argumentação encontra suporte ainda mais sério. Que “neoliberalismo” poderia ajustar-se ao desenvolvimento das multinacionais, à internacionalização do modo de produção capitalista em seu modelo oligopolista e ao sistema de poder que resultou dessas metamorfoses do capital? È indubitável que o capital e os capitalistas se tornaram os beneficiários das últimas revoluções da ciência e da tecnologia avançada. Elas fortaleceram as grandes corporações, o controle ideológico monolítico do tope da sociedade civil sobre as classes e a dominação de classe, o Estado capitalista moderno, com sua versão cruel de “bem estar social” e de imperialismo. Não suprimiram o trabalho como mercadoria, a expropriação do excedente econômico (ou da “mais valia relativa”) pelo capital, a classe e a dominação de classe como instrumentos da supremacia burguesa, a democracia restrita ou de participação ampliada, o estado como núcleo de poder das elites das classes dominantes, a partilha capitalista do mundo etc.

O neoliberalismo não possui nenhum espaço para concretizar-se, porque nessa situação histórica o liberalismo foi liquidado. A revolução burguesa foi interrompida nas nações capitalistas centrais como requisito da continuidade da dominação econômica, social, ideológica e política das classes burguesas, bem como da reprodução da “civilização industrial”; e nas nações capitalistas periféricas, porque as burguesias associadas e dependentes não podiam arriscar-se à alternância de “promessa e repressão” diante da virulência da rebelião popular e por causa de sua rendição silenciosa aos interesses e às pressões do sistema capitalista mundial de poder.

Portanto, não houve um “fim das ideologias”. O liberalismo cessou de expandir-se e entrou em colapso porque o imperialismo da era atual passou a definir como “inimigos mortais” tanto os dissidentes e os revolucionários internos, quanto os que propagavam praticamente a dissolução do capitalismo nos países da periferia alinhados ou que se achassem em transição para o socialismo. As ideologias estão vivas. Só que o liberalismo foi substituído por concepções agressivas de “defesa da democracia no mundo livre”, que ocultam e mistificam um equivalente psicológico e político do “fascismo potencial” (para uso interno e externo). E o socialismo preservou-se como a única alternativa viável de superação do capitalismo em seu apogeu histórico.

O capital não gera nada mais além de sua negação pelas contradições que nascem do trabalho e da associação que se constitui graças à articulação e, por vezes, à fusão de trabalho manual e trabalho intelectual nas grandes corporações transnacionais. Assim, os trabalhadores, em sentido restrito ou em sentido lato, são os portadores dos ideais socialistas e os agentes históricos da revolução dentro da ordem e da revolução contra a ordem. O socialismo continua vivo e o marxismo contém o mesmo significado científico, ideológico e político que sempre teve, seja como meio de descoberta e de difusão da compreensão global, dos processos gerais de transformação da civilização existente, seja como organização partidária dos portadores da “ótica comunista” da auto-emancipação coletiva dos trabalhadores e de sua revolução social.

Esse parece ser, em síntese, o quadro atual da posição entre os capitalistas, na era em que perderam a sua concepção originária do mundo e das funções criadora da burguesia, e os trabalhadores assalariados, depois que descobriram que a transição para o socialismo só pode realizar-se plenamente nas condições apontadas pelos clássicos do socialismo utópico e do socialismo científico. A volta aos clássicos e a compreensão do presente com as categorias de explicação e de ação que eles inventaram revela a congruência lógica e a força histórica do socialismo. E sugere os rumos da civilização em crise: de seus escombros britará uma civilização sem barbárie, na qual a democracia terá como premissa histórica a liberdade com igualdade e como objetivo a fraternidade humana e a felicidade de todos.

Essas cogitações não são extemporâneas. Elas devem estar na cabeça de todos os militantes e simpatizantes do PT, no momento em que começamos a aprofundar a questão da natureza do partido, de sua relação fundamental com as classes trabalhadoras e de seus papéis históricos no Brasil, na América Latina e no mundo. Muitos estão confusos com o que acontece na União Soviética, no leste da Europa, na China ou na Nicarágua. E tiram conclusões precipitadas, que mais respondem a um enquadramento ao radicalismo burguês, em que os nossos adversários pretendem encerrar-nos, do que àquilo que o PT deve ser para desempenhar coerentemente e firmemente as tarefas históricas que lhe cabem, em virtude de seus elos com as classes trabalhadoras e com as massas populares. Falar em socialismo “moderno” ou em socialismo “democrático” não passa de uma farsa. Só se moderniza o socialismo colocando-o em prática e forjando as fronteiras da revolução anticapitalista.

Por sua vez, o socialismo é, por sua essência, a “democracia da maioria” e deve assegurar, quando esta se dissolve por desnecessária, a democracia plena. Os acontecimentos recentes abalaram as convicções até de militantes exemplares. Foram buscar nos paradigmas da Europa Ocidental as retificações que lhes parecem imperativas. E tomaram do radicalismo abstrato de professores universitários ou de intelectuais brilhantes do pensamento socialista europeu “moderno” – distanciados da militância partidária reformista ou revolucionária e com freqüência meros “críticos revisionistas” dos clássicos do anarquismo, do socialismo e do comunismo – o sistema de referência teórico para a nossa prática socialista. Por maior respeito que tenhamos por esses companheiros, devemos condenar a sua rota e traçar outros caminhos para o PT.

Não há duas vias a seguir:

1º) devemos partir dos fatos crus de nossa realidade histórica;

2º) temos de interpretá-los à luz da ótica intrínseca ao pensamento socialista revolucionário (admitindo-se a contingência introduzida pelas peculiaridades da situação histórica vigente).

Ir do particular ao geral e chegar ao concreto por meio da interpretação e da representação do real. Isso conduz à recuperação dos clássicos sem a mediação de autores que nos distanciariam da versão íntegra do socialismo proletário e revolucionário (afastando as conhecidas “infecções burguesas”, muitas vezes associadas ao labor acadêmico mais sério). Ao mesmo tempo, abre a rota da incorporação das concepções anarquistas, socialistas e comunistas ao solo histórico brasileiro, latino-americano e mundial de nossa era.

Feita essa fusão, haveria lugar para trabalhar com os epígonos[1], como diria Gramsci, porque suas contribuições positivas poderiam ser filtradas com rigor. Em suma, discutir o socialismo e o PT não nos obrigaria a atravessar duas modas concorrentes – a dos pensadores críticos, que não são militantes e com freqüência se acomodam ao drama de não poderem ser revolucionários de forma confortável; de apanhar o PT em sua via crucis, de ver-se compelido a tirar a revolução social de elementos crus dos dilemas das classes trabalhadoras e das massas populares. O partido revolucionário não produz as premissas históricas da revolução social necessária, mas opera como o principal agente coletivo de sua estimulação, propagação, amadurecimento e eclosão.

A Europa industrial caminhou na direção do aburguesamento da social-democracia e do socialismo. Em seguido, fomentou a social-democratização do comunismo. Nos dias que correm, até na Itália todos os gatos são pardos… É forte o movimento de fusão, talvez porque se pense que o grande capital enfrenta todos os ricos (porque conseguiu vencer, em condições propícias, os obstáculos à sua reprodução e expansão). Abandonou-se tanto a guerra de posições quanto a de guerra de movimento, para adotar-se o desgaste insidioso a partir de dentro e de cima (segundo o paralelo do cavalo de Tróia).

Tudo isso não leva nem levou a nada, porque só se reforçou a reforma capitalista do capitalismo, remédio que até agora só os Estados Unidos e o Japão puderam dispensar, combinando miséria, riqueza e segurança segundo padrões próprios. Aceitar esse modelo implica em desistir do socialismo e de sua utopia axial[2], o advento do comunismo. Há um consolo: esperar que o capitalismo feneça por seu êxito, não por suas contradições (de acordo com a engenhosa hipótese de Schumpeter). É claro que nos deparamos, neste limite, com a cruel “infecção burguesa” do anarquismo, do socialismo e do marxismo. Há tempo marxistas importantes tornaram-se dissidentes ou abandonaram as antigas posições em nome da democracia. Não obstante, sabiam as limitações da democracia que está ao alcance de uma sociedade burguesa, mesmo civilizada (no sentido de um conhecido contraste estabelecido por Bobbio).

Ora, há na essência da concepção socialista uma relativização do conceito de democracia. A democracia é, sem dúvida, um valor; mas ela não escapa às determinações da sociedade civil. Por isso, não pode ser representada como um valor em si e, muito menos, como um valor absoluto. Há uma grande tendência a ver com desconfiança o contraste entre democracia burguesa e democracia operária ou popular. Lênin tem sido crucificado mesmo pelos que nunca leram O Estado e Revolução. O que dizer que Miliband, Colletti e alguns sociólogos norte-americanos tiraram a mascar do Estado capitalista em exemplos tidos como modelares? As carências e as vicissitudes brasileiras atropelaram as reflexões e as investigações mais sérias.

E nos conduziram a uma visão míope da democracia, que não leva em conta que, se ela é essencial, como valor e como meio para outros fins (da grande burguesia, das classes intermediárias, dos trabalhadores e dos excluídos), ela jamais poderá ser convertida no que ela não é (nem pode ser) sob o capitalismo e sob o socialismo desvirtuado pela burocracia. Esse “culto da democracia” convém à reprodução da ordem e ajuda os partidos de esquerda a galgar posições na competição institucional. Todavia, ele não se cruza com as tarefas históricas das classes trabalhadoras em um país que se defronta com os dilemas sociais que imobilizam o Brasil. Daí ser tão imperioso afastar as conquistas democráticas da capitulação calculada inerente a fórmulas anti-operárias de reforma social e de revolução dentro de ordem.

Pior que ter medo de ser socialista vem a ser a mercantilização político da social-democracia e do socialismo democrático, segundo paradigmas tidos como de “centro esquerda”. Vivemos um momento da história humana muito rico de promessas e de transformações profundas em processo. Os que vaticinam que “não há mais história” recaem no wishful thinking[3].

Descortina-se a decadência próxima dos Estados Unidos como “nação imperial”; o mercado europeu e a unificação da Alemanha engendram tensões, mas apontam para novos dinamismos históricos no coração da Europa; a ascensão do Japão sacode todo mundo capitalista, no centro e na periferia, e suscita a indagação: por quanto tempo; a formação de um sistema mundial de poder capitalista transfere revoluções contra a ordem para diante, mas não as anula, compelindo a periferia a submeter-se a novas rendições passivas, enquanto fermentam dentro dela rebeliões e revoluções que escapam do compasso ditado pelas nações capitalistas hegemônicas e sua superpotência.

Em resumo, a história explode por dentro do mundo capitalista e só o futuro permitirá decifrar se as novas correntes civilizatórias conciliarão continuidade e mudança. De outro lado, a União Soviética entra em convulsão: a “revolução interrompida” (na acepção de Deutscher) sofre um estilhaçamento, que se patenteia como o principal processo histórico dos últimos anos do século XX. Os que especulam negativamente vêem nesse processo o “desmoronamento do comunismo” (o feitiço voltando-se contra o feiticeiro, pois o esperado “desmoronamento do capitalismo” não se concretizou – poderíamos acrescentar: ainda). Na verdade, ele põe a nu a vitalidade de uma revolução política latente, que sempre conviveu com uma forma multiplamente deturpada de transição para o socialismo.

O processo atinge todo o mundo, o centro e a periferia, os países capitalistas e os países em transição para o socialismo ou para regimes de nacionalismo libertário e revolucionário. A América Latina também sofre suas conseqüências. Os Estados Unidos, já sob a compressão do “perigo amarelo” (por enquanto, só nipônico) e da expansão do mercado europeu, sentem-se acuados: voltam sua atenção para o seu “quintal”, indo além do Caribe e da América Central. Retorno ao “big stick” sob outras formas e a práticas violenta aberrantes (contra o Panamá, a Nicarágua, El Salvador), afiando suas garras para ir mais longe e mais fundo. Portanto, o aquecimento da revolução política dentro da União Soviética esmigalha o edifício da guerra fria e rasga novos horizontes para todos os países do mundo.

Dentro dessa moldura, as interpretações difundidas a partir do núcleo capitalista e neoliberal são reconfortantes. Contudo, a história oscila e possui faces desconcertantes e assustadoras. Feita pelos seres humanos, ela transcende objetivamente as suas esperanças e a todos os freios. O caldeirão está fervendo na União Soviética. Não obstante, é visível que o alçapão irá alcançar as nações capitalistas e às certezas infantis do neoliberalismo.

Dentro da União Soviética ela não é só destrutiva. Ela restabelece os liames da revolução com suas origens históricas, exigindo que as promessas dos bolcheviques sejam cumpridas de fato. As alterações ocorridas vão nessa direção, indicando que o partido único – seu monopólio do poder em detrimento dos sovietes – e a autocracia dos burocratas sofrerão reveses profundos. A autogestão provavelmente se alastrará e os componentes autoritários do plano centralizado tenderão a perder seu monolitismo e a desvanecer-se. Os avanços conquistados no crescimento de infra-estrutura, por sua vez, irão refletir-se mais profundamente na estrutura da sociedade soviética e em sua superestrutura.

A questão das nacionalidades apresenta dificuldades evidentes, mas a autodeterminação das etnias e nacionalidades satelizadas fazia parte das bandeiras da Revolução de Outubro. Se é certo que a União Soviética não superará rapidamente seus dilemas econômicos, culturais e políticos, constitui uma falácia a propaganda ocidental de que a revolução será vendida a varejo, a preços baratos. Ao contrário, a flexibilização da produção e do mercado já foi experimentada pela NEP, com resultados positivos.

Hoje, a União Soviética dispõe de uma base econômica e social capaz de oferecer lastro para inovações na estrutura e funcionamento do Estado que foram excluídas no passado, sob a falsa bandeira do combate à contra-revolução. O avanço na implantação de medidas democráticas terá fatalmente de impor constrangimentos e sacrifícios. Mas não pairam dúvidas de que tal avanço indica que a transição para o socialismo ganhará novo impulso, o qual ajudará a remover os estigmas (tão difundidos no exterior pela contra-propaganda política) de que o socialismo e democracia não se conciliam. Por isso, os burocratas encontrarão cada vez menor espaço para deter a revolução política, que se impôs a partir de baixo e ganha crescente apoio na classe operária e na massa dos cidadãos soviéticos.

A situação dos chamados “países do leste” apresenta outros contornos. Em alguns deles, a experiência histórica com o marxismo e a revolução chegou a acender-se, como aconteceu na Hungria. No entanto, tradições, culturais, religiosas, étnicas e nacionalistas reduziram, com freqüência, as formações socialistas reformistas ou revolucionárias a grupúsculos políticos. Aqui e ali surgiram combatentes corajosos e produtivos, que deixaram um legado intelectual e exemplos políticos modelares. A “revolução” não eclodiu como parte de um processo histórico em zigue-zague, de longa ou curta duração. Mas da ocupação militar soviética. Uma “revolução de cima para baixo”, sem sentido, conteúdos e paradigmas revolucionários. Constituíram-se partidos políticos improvisados, que de socialistas ou comunistas só tinham o nome. Na realidade, eram instrumentos da agregação dos países, como satélites, à União Soviética. Curvavam-se a manipulações diplomáticas, que não poderiam evitar, e integravam-se às suas organizações internacionais econômicas, políticas e culturais.

Apesar disso, puderam participar de transformações que reproduziram os modelos soviéticos de transformação agrária, industrial e educacional. Desprenderam-se, assim, dos marcos capitalistas ou semi-capitalistas anteriores e se assimilaram às novas matrizes, de origem e cunho soviéticos. Dadas as condições reinantes, para os de baixo as inovações foram construtivas, embora as rivalidades políticas, étnicas, religiosas etc., conduzissem as avaliações negativas e de resistência cultural. Serviços sociais fundamentais foram difundidos e a orgulhosa disciplina aristocrática reprimida (ou abafada). Alguns países, como a Tchecoslováquia e especialmente a República Democrática Alemã, lograram adiantar-se por conta própria, com referência às inovações soviéticas. Possuíam um ponto de partida mais sólido e dispunham de perspectivas para acelerar sua evolução interna.

O edifício ruiu não só por causa das contradições entre o sistema de poder montado e as compulsões que exigiam valores socialistas na organização da produção, na reparticipação em todos os níveis e na expansão da democracia operária (ou popular). Mas da escassez, que tornou permanente a norma espoliativa decorrente do “socialismo de acumulação”, que não permitiu nem a observância da norma “a cada um de acordo com sua contribuição”, nem a passagem para o objetivo mais elevado “a cada um de acordo com a sua necessidade”. Ou seja, as razões do colapso são as mesmas que estão presentes na crise da União Soviética. Só que o sistema de poder centralizado não exibiu a mesma eficácia defensiva e o mínimo de flexibilidade que no centro hegemônico.

O valor dos casos dos “países do leste” para o diagnóstico do experimento socialista está muito mais distante que o da União Soviética (e que o da China). O que se pode aprender é óbvio: o socialismo não se difunde, se aperfeiçoa e se consolida com base na ocupação militar e por métodos comparáveis aos usados pelas nações imperialistas em suas colônias e territórios dependentes. A emulação socialista é revolucionária, trata-se de reforma social ou de conquista revolucionária do poder strictu sensu. Se ela não atinge as cabeças e os corações dos seres humanos, ela oscila e se aniquila. Operários e camponeses se ofereciam para ir morrer nas frentes de batalha, na defesa da Revolução Russa.

O mesmo jamais poderia ocorrer no leste da Europa, porque as inovações, por confortáveis que fossem aos trabalhadores e aos mais pobres, recebiam rejeições justas e injustas. Pois não há “revolução de cima para baixo” sob ocupação militar, a menos que os “invasores” sejam encarados, pela imensa maioria como exércitos libertadores. Os que se viram prejudicados e ficaram nos países, converteram-se, desde o início (mesmo quando retiraram vantagens de sua “adesão”), em uma crescente massa contra-revolucionária. Nesse sentido, é possível afirmar-se que Isaac Deutscher equivocou-se no emprego da analogia.

Ela remontava a Lênin, porém se referia a alterações internas possíveis no complexo institucional do poder (e também falhou na experiência concreta, já que não se comprovou tal oportunidade de composição dos de baixo com os de cima, em uma sociedade tão estratificada e autocrática quanto à Rússia). As conclusões que se evidenciam são claras. A revolução dos de baixo carece de condições complexas, que não se deram no leste da Europa. O repúdio do regime vigente não põe em questão o socialismo, mas sua implantação e desenvolvimento em condições adversas, que desacreditam o seu significado psicológico, social e político, independentemente de êxitos relativos em um ou em vários aspectos da transição.

O debate que se te travado no Brasil suscita, ainda, dois temas interligados. O primeiro tem que ver com a condenação do comunismo e dos clássicos do marxismo. O segundo passou despercebido, porque não foi ventilado nas ondas da moda “crítica” procedentes do exterior. Trata-se dos requisitos funcionais ou das premissas históricas que condicionam a eclosão, a persistência e a renovação do socialismo em países de desenvolvimento capitalista desigual.

Quanto ao primeiro tópico, os malogros não afetam nem a essência do socialismo, como regime de transição, nem implicam, lógica e historicamente, a liquidação do comunismo. Este é o ponto fundamental da questão. Após a vitória dos bolcheviques, Lênin apontou a necessidade de trocar o nome do partido e chamá-lo comunista. Com isso, não pretendia insinuar que se saltaria, de um golpe, da conquista do poder ao comunismo. Queria salientar que a imaginação política revolucionária deveria sofrer uma rotação de perspectivas. Empenhados no desmantelamento da herança czarista e capitalista, bem como na edificação de uma sociedade nova, os bolcheviques e seus aliados haviam deslocado o foco histórico do processo revolucionário.

Este não poderia mais ser o socialismo: o alvo revolucionário, dentro do marxismo, teria de ser o advento do comunismo. Ele, que escrevia que o socialismo era igual a sovietes mais carvão ou mais eletricidade etc., sabia muito bem quais eram os limites realistas do governo revolucionário. Longe de ter se esvaído com a crise do Leste ou da União Soviética, o comunismo permaneceu intocável ao longo desses dramáticos acontecimentos. De outro lado, os clássicos não são responsáveis por soluções que eles próprios não endossavam. É conhecido o eurocentrismo doutrinário de Marx e Engels e o quanto ele restringiu o crescimento teórico e prático do marxismo.

De repente, os mesmos autores que apontaram tal falha viraram a boca do canhão, desviando a mira em uma escala de 360 graus! Que os meios culturais de comunicação de massa, sob controle capitalista, façam isso, é compreensível. Todavia, os arrepios éticos e ontológicos de socialistas e antigos marxistas são de provocar dó. Mudaram subitamente suas lealdades políticas e suas concepções do mundo ou pretendem atrelar-se à social-democratização do radicalismo burguês?

O segundo tópico possui maior pertinência para países da periferia, de origem colonial ou não. Os clássicos do anarquismo, do socialismo e do comunismo concentraram suas últimas análises sobre a Europa em industrialização e sobre as perspectivas de países que eram grandes potências, como a Rússia. Por isso, negligenciaram vários problemas, como o das nacionalidades e do nacionalismo, do racismo, do desenvolvimento dependente etc., que só aos poucos foram se incorporando às reflexões teóricas e às implicações práticas de suas concepções. Um exemplo de como isso transcorreu nos é dado pelos vários ensaios coligidos na História do Marxismo, por Hobsbawm.

A preocupação sistematizadora, a orientação eurocêntrica e o caráter dos enfoques (puramente teóricos ou predominantemente práticos) deixaram à margem a observação sistemática da existência ou não de condições objetivas para a passagem do capitalismo para o socialismo. O único escrito pioneiro são algumas passagens de Marx em Crítica do Programa de Gotha e certas contribuições que resultaram de trabalhos de Bukharin e Preobrajenski. É certo que Trotski e Lênin, preocupados com o atraso da Rússia, fizeram várias excursões que podem ser unificadas na teoria do desenvolvimento desigual e combinado.

Mas eles se interessavam pela tática e estratégia do movimento revolucionário. Subestimaram ou omitiram os desafios históricos que estavam por trás do atraso e que iriam, mais tarde, fomentar a deformação da transição e a importância de sucessivas revoluções políticas, que foram bloqueadas pelo aparato repressivo estatal e do partido. Deutscher, por sua vez, em sua biografia de Stalin, realizou uma radiografia das descontinuidades do processo revolucionário e de suas causas. Mas ficou no ar que a revolução proletária teria o condão de forjar as condições históricas de seu desenrolar e, portanto, as pontes imediatas da transição para o socialismo.

Essa lacuna teórica parece espantosa. Ao contrário da revolução burguesa (em suas formas históricas “clássicas” e atípicas), que cresce por dentro da sociedade que a incuba, a revolução proletária e socialista só pode crescer (ou estagnar) depois da conquista do poder. É algo essencial, assim, conhecer de antemão como os obstáculos resultantes do colonialismo, do atraso cultural e do desenvolvimento desigual tenderão a interferir no processo revolucionário, retardando-o, deformando-o ou interrompendo. Os “elos frágeis” mostram-se fortes ao transcender os limites impostos pelo solo histórico, saltando-os e compensando-os pelo ardor da luta social e política.

Mas também salientam onde a fragilidade assemelha-se a uma muralha intransponível, por tempo indeterminado. A União Soviética permite conduzir tais observações muito longe, por ter se imposto como a tentativa mais avançada de chegar ao socialismo e por receber o impacto da herança cultural negativa com maior força. A sociedade russa era uma sociedade grávida de revolução, tanto quanto a sociedade soviética contemporânea também o é. Todavia, os economistas e os planificadores não investigaram a permanência de obstáculos, que derivavam de atrasos herdados e acumulados. Os sociólogos se absorveram em trabalhos que favoreciam o tratamento de tensões superficiais e permitiam “melhorar” o ajustamento dos operários e outras categorias de cidadãos insatisfeitos. Os historiadores mergulharam no estudo do passado ou de problemas mais ou menos tolerados pela crítica oficial. Os filósofos dedicaram-se à reformulação constante da versão de “pensamento dialético” fixada pelo padrão estabelecido de “marxismo-leninismo”.

A autêntica análise dialética refluiu ou perdeu seu impulso inventivo. Em conseqüência, o que havia de mais delicado e difícil no exame dos efeitos da ausência de premissas históricas para acelerar a transição acabou soterrado nos subterrâneos dos institutos de planejamento, de investigação científica e das universidades.

O “elo frágil”, que não impediu a revolução, interferiu de modo profundamente negativo em sua evolução. Dizer que não havia um clima de liberdade intelectual para não ir tão longe parece ser apenas uma parcela da verdade. O assunto escapuliu do horizonte crítico, como se a “marcha da revolução” fosse uma totalidade mecanicista. Ora, a transição só poderia caminhar e fortalecer-se, ganhando ímpeto crescente, sob a condição de que os trabalhadores e as instituições-chaves identificassem o que restava demolir do passado e o que era imperioso construir para que o socialismo se desenvolvesse e chegasse ao ponto histórico de autodissolução.

Os países do Leste oferecem exemplos ainda mais contundentes. As condições que deveriam ser criadas para que a própria transição se tornasse possível e alcançasse uma aceleração ininterrupta, neles sobressaem com maior nitidez. Somando-se os casos: o agente histórico humano cria as condições que poderão (ou não) tornar a transição possível. Conforme for a situação, ele cria as condições da pré-transição, para chegar, mais tarde, à transição propriamente dita (o que consegui observar e analisar na Revolução Cubana). A continuidade e a descontinuidade não são um produto puro e simples do fluxo histórico. Elas são o fruto daquilo que o agente histórico humano pode produzir graças às condições herdadas e aquelas que ele pode engendrar coletivamente, através da luta de classe ou da cooperação entre iguais.

Portanto, o assalto e a conquista do poder aparecem como mais acessível que dar continuidade à revolução, levando-se até ao fim e até ao fundo. O custo histórico do malogro inspira que se dê um balanço cuidadoso ao que se quer e ao que se pode lograr. Quanto mais magras forem as condições favoráveis a forjar continuidade, maiores são as responsabilidades dos revolucionários. Eles podem ficar prisioneiros da idéia de revolução e acabar interrompendo o processo revolucionário voluntária ou involuntariamente.

Quanto mais ricas forem as condições favoráveis à revolução, maiores são as probabilidades de êxito, se a vontade revolucionária estiver na cabeça de todos (e não apenas do pequeno número que toma o poder, o qual então se converte em poder deles, não em poder da coletividade). A relação entre promessa socialista e repressão defensiva, depende dessa proporção. O mesmo acontece com a relação entre a promessa socialista e a repressão contra-revolucionária, sempre ao alcance das mãos.

O que se pode afirmar, da União Soviética, pelo que se sabe, é que a vitalidade da perestroika e da Glasnost consubstancia uma tentativa de descongelar a interrupção do processo revolucionário de longa duração. Quanto ao Leste, a escolha que não foi feita no decorrer da ocupação militar poderá (ou não) ocorrer agora. A história não volta ao passado. Na situação atual, tanto o capitalismo poderá desvendar o que se perde através de uma escolha amarga, quanto o socialismo poderá ser encarado como um pesadelo. O mais provável é que as condições imperantes dificultem os dois tipos de avaliação e que as correntes históricas encaminhem alternativas nas quais a opção pelo socialismo brote das experiências truncadas e de baixo para cima.

Talvez essa seja uma visão muito otimista. Mas não devemos esquecer que houve momentos nos quais os rebeldes sustentaram que não queriam destruir o socialismo, porém democratiza-lo (dadas as circunstâncias). O mundo capitalista oferece compensações materiais, que são paupérrimas como sucedâneos de promessas calcadas em utopias igualitárias e libertárias, de fraternidade e felicidade entre os seres humanos.

Se as nações capitalistas não jogarem muito dinheiro para sufocar as tensões por igualdade, liberdade e humanismo integral, os anseios pela construção do socialismo terão fortes probabilidades de assumir em caráter ético e de tomar conta das consciências e do comportamento coletivo. O que a “revolução de cima para baixo” não poderia consumar, dentro das constrições que a anulavam, ações e aspirações espontâneas coletivas possuem chance de implementar. Não devemos esquecer que essas são sociedades de uma periferia muito especial, marcada profundamente por traumas e por muitas esperanças, ambas (traumas e esperanças) curtidas pela contra-revolução em surdina e por lutas sociais explosivas em campo aberto.

Ao cabo dessa sumária discussão, resta uma verdade irrefutável. Desaparecem as razões, falsas ou verdadeiras, que expunham o anarquismo, o socialismo e o comunismo à condenação irremissível. O marxismo, aceito até por círculos espiritualistas como um método e como ciência social, recobra sua estatura original. A moda interfere na recuperação do equilíbrio da razão. Mas todas as modas são passageiras… Ganhou-se com essa terrível crise a liberdade de pensar o impensável.

Doutro lado, a estigmatização do socialismo e do comunismo perdeu sua razão de ser. Os lobos alimentados não uivam à noite. Vão dormir sob a neve. A “história como proeza da liberdade” delineia-se como uma possibilidade. Ruíram o muro de Berlim e a guerra fria. Os dois símbolos e as duas trincheiras da intolerância cederam lugar a uma nova compreensão da realidade e de aceitação da história como produto das ações conflitantes dos seres humanos. A democracia deixou de ser imposta como vestal, pelos “neoliberais”, e como hipocrisia, pelos socialistas e comunistas. O século XX termina sem resolver os dilemas que nasceram com a revolução burguesa. Todavia, deixa todas as aberturas já inventadas para que o século XXI não se perca tentando decifrar a Esfinge, passatempo perigoso dos egípcios…

Resta saber onde ficamos, nós perdidos nos submundos da América Latina. O “quintal” dos Estados Unidos sai dessa história muito mais ameaçado que na era colonial. Os Estados Unidos perdem a sua grandeza imperial, pois sua posição de superpotência esboroa-se com velocidade. Durante o seu fastígio imperial, foram mais duros que Roma e mais piratas que a Inglaterra. Ainda desfrutarão o outono de um imperialismo decadente. Depois, a humanidade terá de fazer a última escolha: o Império das multinacionais ou a Civilização sem barbárie do comunismo?

Nesse ínterim, o Brasil e os demais países da América Latina precisarão proceder a sua escolha: “ser quintal” ou “marchar para o socialismo”? Dentro desse contexto, descobre-se que o marxismo não está morto. A internacionalização da economia, da cultura e do Estado significará, para nós, a rendição incondicional aos Estados Unidos. As compensações serão atraentes, quanto ao nível de vida material dos estratos sociais situados acima do nível de pobreza (sem distinguir entre a pobreza “relativa” e a “absoluta”, que seria o mesmo que separar a cadeira elétrica da forca). O diabo é que o capitalismo oligopolista contém todos os componentes nocivos da subalternização (ou da heteronomia) nacional: a dominação colonial, a dominação neocolonial e a dependência se entrecruzam e alimentam a mudança social destruída de qualquer compulsão coletiva revolucionária.

Nessas condições, o que é indesejável nos Estados Unidos renascerá aqui como estilo de vida. Impõe-se não esquecer: a alienação ou a brutalização produzida no trabalhador sob o capital industrial nos Estados Unidos resulta de todas as instituições-chaves em conjunto. Não se configura, aí, uma transação vantajosa. A desumanização constitui o produto final de muitos fatores convergentes incontroláveis. E eles são absolutos, disfarçados, endeusados: da educação, à igualdade de oportunidades e à democracia erigem-se vários biombos, que escondem a realidade (que os cientistas sociais explicam para a minoria esclarecida e “responsável”, interessada em manter por qualquer meio o status quo) e sacrificam a pessoa ao culto da competição, do lucro e da lei do mais forte.

Estamos, portanto, entalados entre um presente odioso e um futuro pior. O mandonismo de uma classe dominante insensível hoje; e sua intermediação de uma dominação externa repelente amanhã. Somente o socialismo – e note-se: o socialismo revolucionário – contém a chave de uma alternativa para a vontade de viver! As classes e a luta de classes ainda oferecem uma oportunidade histórica para as massas excluídas, os trabalhadores e outras categorias de assalariados. O “pós-moderno”, em termos capitalistas, ainda não bateu em nossas portas e não empreendeu a internacionalização que quer dizer norte-americanização (mesmo que tenhamos comércio com outros povos).

Os sinais emitidos na Guatemala, no Chile, no Panamá, na Nicarágua e em tantos outros lugares devem ser interrogados atentamente. Os processos históricos internos se tornam rapidamente não-determinantes. Enquanto isso, os processos históricos norte-americanos se internalizam e ganham envergadura a cada dia que passa: em torno e através deles se equacionam os “centros de decisão”.não se trata de uma contingência de um governo infantilmente desorientado,como o do presidente Fernando Collor de Mello. Mas de um complexo cultural que se orienta de fora para dentro,segundo a moral da estória do sapo e do ouriço–cacheiro.Diante dessa perspectiva,o marxismo ganha plena atualidade e necessidade.Só que o desfecho se apresenta em um quadro no qual já conhecemos a natureza das revoluções e do desenvolvimento do socialismo na periferia mais pobre do capitalista.

O PT e os demais partidos de esquerda não podem eximir-se de unir massas populares excluídas,classes trabalhadoras e setores radicais da pequena burguesia ou das classes médias em um processo que é de liberação nacional e de liberação dos oprimidos e dos menos iguais. Desse ângulo, ainda não existe “um socialismo petista”. Não se pode ignorar as classes dominantes nativas. Entretanto, o socialismo terá de ser calibrado à luz do inimigo mais forte e hegemônico, que não são os donos do poder brasileiros. Mas os detentores do sombrio “destino manifesto”, seus aliados, pertencentes à grande potência do norte. O mesmo sucede com outros países da América Latina, que têm de fazer a mesma escolha ou inspirar-se no modelo do Panamá.


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Pedro Micussi