Imunidade de rebanho e o fim da pandemia no Brasil
Se existe imunização de rebanho, o fim da pandemia pode estar no horizonte a partir de setembro, e custaria ao menos 200 mil vidas. Se não existe imunidade coletiva, o Brasil está fadado a viver um pesadelo sem fim.
Com pelo menos 70 mil mortes confirmadas [1] e outras 40 mil subnotificadas [2], muitas pessoas se perguntam quando tudo isso vai parar. Com os estados relaxando o isolamento social em meio à aceleração pandêmica no país [3], o fim da pandemia no Brasil pode se tornar menos uma questão de epidemiologia e mais de estatística.
A epidemiologia afirma que uma pandemia só pode acabar de duas maneiras: ou de maneira relativa, através da implementação de políticas de lockdown — o que gera o risco da ocorrência de ‘segundas ondas’, como ocorreu na China — ou de maneira definitiva, através da “imunização coletiva” ou “imunidade de rebanho” — quando ao menos metade da população seja infectada e crie anticorpos definitivos para evitar uma possível reinfecção [4]. No primeiro caso, atinge-se um pico e um platô de desaceleração de casos artificial, e no segundo caso, o platô é natural e definitivo — porém certamente com consequências desastrosas.
A imunização coletiva é o motivo pelo qual não existem mais epidemias de catapora ou tuberculose, por exemplo. As pessoas só adquirem tal doença uma vez, e conviver com pessoas que já tem tais anticorpos significa uma proteção natural contra estas infecções virais. Todavia, nem todos os vírus são da mesma forma. As gripes, por exemplo, são variedades virais com alta capacidade de mutação [5], motivo pelo qual a composição das vacinas é reformulada de ano em ano, de acordo com as variedades sazonais que então circulam no país.
A tese da imunização coletiva surgiu na Suécia, e foi adotada como estratégia temporariamente por lá e também no Reino Unido. Estes países acreditavam que seus sistemas de saúde eram fortes o suficiente para sustentarem todo o ingresso de pacientes em estado grave sem precisar adotar medidas mandatórias de isolamento social: ou seja, não temiam o colapso dos sistemas de saúde e esperavam que a imunização ocorresse naturalmente, tendo em vista que não havia nem cura e nem vacina. A estratégia veio a se tornar insustentável em curto período de tempo e os países voltaram atrás, adotando medidas de quarentena obrigatórias. Todavia, mesmo sem todo o requinte científico e talvez de forma inconsciente, Bolsonaro acabou transformando o Brasil em seu próprio laboratório das trevas e utilizando o povo brasileiro em seu anti-experimento de imunização coletiva [4]. É a consequência inevitável de viver em um país onde adotar a quarentena virou questão de opção ideológica e tudo volte a funcionar normalmente, mesmo com mais de mil pessoas morrendo todos os dias e sem qualquer sinal de desaceleração.
Imunização coletiva e o fim da pandemia no Brasil
Dado este cenário catastrófico, o Brasil seria o único país do mundo em que seria testada até o fim a hipótese da imunidade de rebanho: a curva de infecções teria sua ascensão e queda definitivas; o pico e a queda nacional no número de casos e mortes depois que ao menos metade da população fosse infectada, e consequentemente, imunizada (iremos voltar a este ponto mais adiante). Levando em conta esta premissa, é possível traçar estatisticamente quando o fim da pandemia chegará no Brasil. Vamos aos dados.
O Ministério da Saúde confirma ao menos 70 mil mortes devidas ao Covid-19 [1], mas também sinaliza ao menos 40 mil mortes subnotificadas [2]. O número de casos confirmados (que reflete basicamente o número de hospitalizações) é de 1,8 milhões. Porém as pesquisas da Fiocruz e da USP contestam este número: a subnotificação generalizada, devida à ausência de testagem em massa, faz perceber que o número de casos reais (incluindo assintomáticos, curados, casos leves que não vem dar entrada no sistema de saúde, óbitos confirmados e subnotificados) seria entre 12x e 20x a cifra divulgada pelo Ministério da Saúde [4]. Isto leva à conclusão provisória de que algo entre 10% a 20% da população já teria sido infectada pelo novo Coronavírus.
Se não existe quarentena obrigatória, a progressão geométrica de casos e óbitos tem toda a liberdade de seguir seu curso natural — e catastrófico. Considerando as informações acimas e analisando estatisticamente, somente em setembro alcançaríamos 50% da população infectada (o que equivaleria a 5 milhões de confirmações hospitalares). Neste mesmo mês, o Brasil alcançaria as 200 mil mortes devidas ao Coronavírus. Isto significa que uma em cada mil pessoas no país iriam falecer devido à pandemia. Somente a partir daí ocorreria o pico e o platô, e a curva de casos e óbitos passaria a decair definitivamente(os gráficos que demonstram estas previsões podem ser acessados aqui) [6]
A imunização coletiva em cheque: pesadelo sem fim?
Sendo assim, é possível afirmar com firmeza que o início do fim da pandemia no Brasil irá ocorrer em setembro? Somente se considerarmos que uma pessoa infectada seja normalmente capaz de criar imunidade, ie, anticorpos que impeçam uma reinfecção: ou seja, se o Covid-19 tiver uma dinâmica mais parecida com a catapora/tuberculose do que com uma gripe. Este estado de incerteza coloca em cheque a eficácia da tese da imunização coletiva, pois a ciência não consegue afirmar com certeza se a reinfecção é regra ou exceção. Existem estudos que apontam para uma [7] ou outra [5] hipótese. No Brasil, existe um possível caso de reinfecção sendo estudado em Minas Gerais, o que alertou as autoridades de saúde pública [8]
Porém, não é possível deixar de considerar que, se as milhões de pessoas no Brasil que já foram infectadas não forem realmente imunes, e puderem transmitir e contagiar novamente o vírus pelo país, a catástrofe no Brasil se tornaria verdadeiramente imprevisível. Se existe imunidade de rebanho, o fim da pandemia pode estar no horizonte nacional a partir de setembro, e custaria ao menos 200 mil vidas brasileiras [4]. Se não existe imunidade coletiva, o fim da pandemia no país dependeria unicamente da eficácia e produção em massa de uma vacina, ou da descoberta milagrosa de uma cura. E o pior, ainda dependeríamos de derrotar Bolsonaro e seu projeto obscurantista: mesmo infectado, o presidente segue defendendo a cloroquina. Lembremos que o Exército produziu mais de 2,2 milhões de comprimidos de cloroquina [9] e Trump mandou mais 2 milhões para o Brasil [10], após o protocolo com a controversa droga ser descontinuado até nos Estados Unidos. Bolsonaro está sendo acusado pelo investimento massivo de recursos públicos em um tratamento que não é mais adotado em qualquer outro país do planeta [11]. Politizando até sua doença, uma nova guinada cloroquinista pelo governo Bolsonaro poderia levar até o militarizado Ministério da Saúde a descontinuar os esforços na testagem de vacinas no Brasil [12].
Se não existe imunidade coletiva, a pandemia no Brasil está fadada a se tornar um pesadelo sem fim — e o fim desta tragédia dependeria ainda, se já não sobrassem motivos, de derrubar Bolsonaro e seu governo.
Referências
[4] https://jornalggn.com.br/artigos/quando-a-pandemia-do-coronavirus-vai-acabar-no-brasil-por-maite-ferreira/
[5] https://www.bbc.com/portuguese/geral-53256941?at_medium=custom7&at_campaign=64&at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_custom2=facebook_page&at_custom3=BBC+Brasil&at_custom4=096D48A2-C2C2-11EA-BA24-CA17933C408C&fbclid=IwAR0JCy1N095QP_2sd-jGcmRrXy-rhuN9OZY2-DyN8wP0B9NREjbRGamneTk
[7] https://pfarma.com.br/coronavirus/5498-imunidade-covid19.html
[11] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/19/cloroquina-exercito.htm
[12] https://jornalggn.com.br/artigos/vaso-ruim-nao-quebra-facil-por-maite-ferreira/