Noções emancipatórias de amor: contribuições feministas
Das dimensões políticas do amor.
O amor raramente é percebido como uma categoria política a ser discutida também na esfera pública e em diálogo com as estruturas que permeiam tudo o que temos sido e/ou tentamos ser. Dificilmente falamos de sua importância nos variados âmbitos da vida. Em seu artigo intitulado “O amor como a prática da liberdade”, a pensadora bell hooks afirma: Sem amor, nossos esforços para libertar a nós mesmas/os e nossa comunidade mundial da opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo afastando-se de uma ética de dominação.
Seja nas camadas populares, nos círculos progressistas, nas escolas, em igrejas, nas universidades e em tantos outros espaços, falamos de amor para Deus, amor romântico, amor livre; passamos pelo autoamor, chegamos aos amores afrocentrados ou à ausência de amor na vida de muitas mulheres e crianças negras; mas paramos ao criticarmos noções de amor que se sustentam basicamente com violência. Dificilmente abrimos espaço para outros imaginários, para que tantas de nós consigamos acreditar na construção de experiências verdadeiramente amorosas, implicadas em conciliação com a nossa expansão de Ser no mundo. Afinal, passamos anos ouvindo, assistindo, sendo consciente e inconscientemente afetadas por expressões amorosas bastante duvidosas, direta ou indiretamente, em âmbito sexo-afetivo, familiar, escolar, profissional, entre outros. É aceitável, portanto, que não estejamos imunes aos formatos dados, pelo simples fato de sabermos que estas variantes não funcionam. Por outro lado, se escolhemos amar, precisamos investigar profundamente o que queremos adiante. O que pensadoras como bell hooks, Maya Angelou, Audre Lorde e tantas outras que talvez não apareçam aqui, tecem, é a possibilidade de imaginarmos, desejarmos e construirmos coletivamente noções emancipatórias de amor.
Com frequência me perguntam como consegui vir a ser o que sou. Como eu, nascida negra num país branco, pobre numa sociedade em que a riqueza é adorada e buscada a todo custo, mulher em um ambiente que apenas grandes embarcações e locomotivas são favoravelmente descritas com o pronome feminino – como consegui tornar-me Maya Angelou? (…) Eu sabia que me tornara a mulher que me tornei por causa da avó que eu amava e da mãe que vim a adorar. O amor das duas me instruiu, educou e libertou.
Ao longo do livro Mamãe & Eu & Mamãe, a escritora Maya Angelou (1928 – 2014), que também foi atriz, bailarina e cantora, nos oferece memórias íntimas com sua mãe, avó, irmão, filho, tio, companheiro. Com a igreja que frequentava, com os trabalhos que teve, com a dança, com a complexidade da vida que viveu sem abrir mão de amar e reconhecer o amor sempre que ele se fizesse presente. De muitas maneiras, em uma literatura extremamente sensível e saborosa, Angelou costura dialeticamente sentimentos da vida cotidiana com as estruturas sociais que afetam todos os âmbitos de nossa existência.
Na contramão do olhar para o amor enquanto sentimentalismo ou subjetivismo, alheio ao mundo, seria pertinente pensarmos a tríade – amor, verdade e plenitude – para uma vida digna. Tais elementos, que aqui escolhi colocar como tríade e que por coincidência ou não, me chegam somados a partir de acúmulos teóricos e práticos de feministas negras, se mostram quase indissociáveis. Avançamos qualitativamente quando buscamos lidar de maneira honesta e generosa com o que temos sentido até aqui e com o que vislumbramos sentir – e convenhamos que isso está para além das palavras de ordem que nos surgem. Quer aparentamos ou não, quer esteja organizado em conceitos ou embaraçados em nossos corpos, em nossas falas ou em nossos silêncios, tudo isso remonta a forma como nos exercemos no mundo, individual e coletivamente, e no limite, influencia a maneira como chegamos as outras pessoas, como conversamos e compreendemos mais de perto inúmeras mulheres que ainda não se organizam por movimentos feministas, por exemplo, e como formulamos políticas feministas.
Essa noção ampliada de amor tem seus pés na psicanálise, onde é nomeada e reconhecida como “Eros”, pulsão de vida. Mas por aqui, deixemos que a poeta Audre Lorde (1934 – 1992) nos conte um pouco mais sobre “Os usos do erótico”: o erótico é um lugar entre a incipiente consciência de nosso próprio ser e o caos de nossos sentimentos mais fortes. É um senso íntimo de satisfação ao qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar. Porque uma vez tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e reconhecido seu poder, não podemos, por nossa honra e respeito próprio, exigir menos que isso de nós mesmas. (…) Porque o erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude.
Pode parecer imensamente desafiador versarmos sobre tudo isso quando percebemos a realidade que nos cerca. Violência e escassez nos é mais próximo, não? Afinal, a fome que Carolina Maria de Jesus sentiu ainda é sentida. Marielle Franco fora assassinada. E poucas são as infâncias que podem ser ingênuas e alegres. É legítimo que o estado de descontentamento e cansaço nos penetre muito mais, que saibamos e queiramos gritar e formular muito mais sobre a dor, do que sobre o amor. Por outro lado, enquanto feministas, se estamos e estaremos na linha de frente de uma transformação radical da sociedade, é preciso que nos esforcemos como tecelãs do novo e não apenas do que recusamos. E na verdade o novo não necessariamente é inédito ou utópico, pelo contrário, é concreto e justo; só que ainda invivido e talvez por isso desacreditado.
Em seu livro Erguer a Voz, bell hooks compartilha um contexto pessoal que poderia ser estendido a tantos outros espaços: num espaço privado com alguém que eu amo, conversávamos sobre honestidade e sinceridade. Eu falava de experiências difíceis da infância sobre as quais não queremos conversar, e discutíamos sobre o que deveria ou não ser falado. Foi naquele momento que percebi que há algumas pessoas para as quais a sinceridade não é sobre “vou escolher compartilhar isso ou aquilo”, mas sim “vou sobreviver – vou chegar até o fim – vou ficar viva”. E sinceridade é sobre como estar bem, e falar a verdade é sobre como pôr os cacos partidos do coração no lugar mais uma vez. É sobre ser completa – ser plena.
Em outras palavras, nos acostumamos a de pouquinho em pouquinho, um pedacinho por vez, abrir mão do que somos ou queremos ser. Caso contrário não estaríamos tão desconfiadas ou com água na boca ao ler o que vimos acima. Círculos feministas precisam ser espaço de expansão, e não o faremos sem o reconhecimento do poder do erótico para todas nós. O crescimento se dá justo na costura dessas histórias que parecem meramente individuais, mas que apesar do resguardo de suas singularidades, sabemos que não são. Compomos um terreno fértil ao percorrermos itinerários, histórias e pessoas sem deixar de lado o que tem morado em nós, sem nos negligenciar. Talvez ainda são saibamos subverter essas relações, mas é o cruzamento de tudo isso e não o costume de redução ou inferiorização, que nos permite estar à vontade no mundo.
Retomando o artigo de Lorde, ela continua: em contato com o erótico, eu me rebelo contra a aceitação do enfraquecimento e de todos os estados de meu ser que não são próprios de mim, que me foram impostos, como a resignação, o desespero, o autoaniquilamento, a depressão, a autonegação. E sim, há uma hierarquia. Existe diferença entre pintar a cerca do jardim e escrever um poema, mas é uma só de quantidade. E não há, de onde vejo, nenhuma diferença entre escrever um poema maravilhoso e me mexer na luz do sol junto ao corpo de uma mulher que amo.
As contribuições em amor que essas pensadoras refletem e nos convidam – de maneira bastante envolvente, eu diria – a também refletir, não cabem somente para mulheres negras, não são apenas para mulheres, e nada tem a ver com construções liberais. Intelectuais negras, apesar de muitas vezes lançadas de maneira limitante ao debate sobre raça, estão formulando sobre tudo e comumente em uma indissociação admirável de indivíduo e coletivo, esfera pública e privada. Historicamente reeducando movimentos feministas e, em diferentes instâncias, a sociedade como um todo.
Se sonhamos uma sociedade livre de opressão e exploração, e sei que sonhamos, mesmo em meio ao mundo, com ele e apesar dele, precisamos tornar possível o reconhecimento de nosso próprio erótico e junto a isso remontar o imaginário social acerca de amor, trazendo-o para a esfera pública. Lembro-me que ainda na infância, falei com minha mãe que quando eu crescesse não teria marido e filhos, afinal, meu pai batia muito nela e ela, por sua vez, batia muito em meu irmão. Ela me olhou, tragou o cigarro, e disse: tem outras formas de amor.
Referências:
ANGELOU, Maya. Mamãe & Eu & Mamãe. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2018.
HOOKS, bell. Erguer e Voz, pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019.
HOOKS, bell. “O amor como prática da liberdade”. Disponível em: https://medium.com/enugbarijo/o-amor-como-a-pr%C3%A1tica-da-liberdade-bell-hooks-bb424f878f8c
EVARISTO, Conceição. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.
LORDE, Audre. “Os usos do erótico: o erótico como poder”. Disponível em: https://peita.me/blogs/news/os-usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-por-audre-lorde