Por uma esquerda radical e de massas em SP com Sâmia prefeita

Um diálogo com o texto publicado por Valério Arcary (Resistência) na Fórum.

Pedro Serrano 7 jul 2020, 17:03

O PSOL está às vésperas de realizar, em São Paulo, prévias para decidir sua candidatura à prefeitura em 2020. Nos dias 18 e 19 de julho, a militância irá escolher — entre Sâmia Bomfim, Guilherme Boulos e Carlos Giannazi — quem representará o partido na dura batalha que se avizinha.

Não bastasse a importância que as eleições na maior cidade do país sempre possuíram, dessa vez, estamos inseridos numa crise inédita, de escala internacional, nacional e com sua expressão municipal. O desemprego, a fome, a doença, a violência e outras chagas assolam milhões. Em nível federal, somos governados por um presidente negacionista e protofascista; no estado e no município, pela direita “tradicional”, que é corresponsável pelo genocídio em curso no país.

Nessa conjuntura e frente aos desafios que ela abre, acredito, assim como grande parte da militância do PSOL, que Sâmia Bomfim — agora acompanhada de Alexya Salvador, como vice — é o melhor nome para representar o partido nas eleições de 2020. Na verdade, para liderar um movimento amplo, construído de baixo para cima e que expresse um programa capaz de postular o PSOL e aliados como uma alternativa de massas.

Não faltam motivos para confiar nisso. Do ponto de vista eleitoral, Sâmia é uma recordista de votos e tudo leva crer que seu crescimento, numa candidatura majoritária, possa alavancar o partido de conjunto. Como perfil e como “ideia”, será a melhor forma do PSOL se conectar com os movimentos mais dinâmicos dos trabalhadores e setores oprimidos. Por fim, política e programaticamente, há motivos de sobra para confiar que Sâmia encabece um programa radical, construído coletivamente, capaz de dialogar com as demandas concretas do povo, e que atualize as consignas da esquerda para além do “possibilismo” que gerou tantas derrotas até agora.

Com Sâmia e Alexya, está posta a possibilidade histórica de afirmar o PSOL como projeto independente e estratégico para transformações profundas no país, numa perspectiva antissistema. Projeto, por sua vez, que supere definitivamente a esquerda marcada pela traição de classe e pelas derrotas que nos trouxeram até o labirinto atual.

Isso é o que parece não compreender o importante historiador e dirigente da corrente Resistência/PSOL, Valério Arcary, em seu recente texto no portal Fórum. Defensor da pré-candidatura de Guilherme Boulos, Valério estabelece um debate confuso no qual, pretensamente reconhecendo as qualidades de Sâmia e Giannazi, insinua que ambos deveriam retirar suas pré-candidaturas. No ápice do argumento, ele diz que “o projeto do PSOL não é o de oferecer uma legenda eleitoral para carreiras solo”, beirando à calúnia contra as pré-candidaturas que ele deseja combater.

Trata-se de uma acusação absurda, a começar pelo fato de que, entre os pré-candidatos, é justamente aquele que Valério defende o que há menos tempo constrói o PSOL, o que mais tardiamente ingressou nas prévias para debater com a militância e o que menos se vincula organicamente ao partido. Também o próprio Valério e sua corrente, sabemos, não acumulam trajetória tão longínqua assim no PSOL, para pretenderem resguardar a “verdade” de seu projeto.

Mas o debate principal não é este. É, sim, como o próprio Valério tenta afirmar, de perfil, de programa e de estratégia. Ou seja, daquilo a que realmente se visa, num partido socialista, mesmo numa batalha de caráter tático, como as eleições.

Valério e a corrente Resistência têm razão ao afirmar que existem diferenças de projeto. Particularmente, na forma de postular o PSOL como polo independente em meio à necessária unidade para enfrentar Bolsonaro. O campo que Valério integra, na prática, subordina permanentemente as ações do PSOL às movimentações e negociações com o PT, seja por convenção, por cálculo eleitoral ou por acreditar que esta é a conduta inescapável para construir a frente única.

Essa política se expressa na disputa das prévias municiais, a começar por ser público e notório que Guilherme Boulos só aceitou postular seu nome depois de ter a confirmação de que Fernando Haddad (PT) não concorreria, distorcendo inclusive, para isso, o calendário previsto de debates partidários com a base. Na lógica de quem busca diluir o PSOL em projetos alheios, o espaço a ser disputado é o do espólio do petismo, e este equívoco atravanca a postulação de um projeto independente e de massas.

Valério afirma com todas letras e em diferentes espaços que a unidade com o PT não seria apenas para melhor enfrentar pontualmente Bolsonaro, o que aliás, exige uma unidade muito superior, mas que “reunificar a esquerda”, com o PT aí incluído, seria a tarefa estratégica do período. Ou seja, tomar o PT como um partido que pode compartilhar um espaço de frente comum, tendo Lula como principal referente dessa “frente única de esquerda”, é a estratégia, mais ou menos definida, da Resistência para o PSOL. Dilui assim a condição do PSOL de vetor da reorganização, para transformar em satélite na “grande família” da esquerda, que conta com o PT como astro maior. Por isso, supõe que o PSOL é um partido tático para chegar a algo maior, de outra natureza, com mais hibridez quanto ao PT e, portanto, com um programa menos delimitado e um balanço mais condescendente com a experiência (ou tragédia) histórica do que significou a estratégia que guiou a maior parte do movimento de massas nas últimas três décadas.

Nisso, vale lembrar que a principal divisão recente no PSOL não foi ligada a nenhum dos fatos que Valério, em seu texto, resgata, mas sim ao pedido de impechment de Bolsonaro em março de 2020. À época, por ainda não haver acordo com o PT, Guilherme Boulos, a corrente Resistência e a parcela majoritária do PSOL nacional se opuseram à iniciativa e inclusive a denunciaram publicamente, em pleno contexto de pandemia e de governo Bolsonaro! Semanas depois, revisaram posição.

As diferenças de projeto se expressam, ainda, em diferenças de programa. O que queremos que o PSOL proponha para São Paulo em 2020? Uma reedição do “possibilismo” reformista? Apenas um resgate de boas medidas de “gestão” já adotadas na cidade, mas dificilmente cogitáveis no atual período histórico, ao menos sem níveis de enfrentamento elevados? Uma ocupação, pelo PSOL, do “espaço eleitoral do PT”, sem qualquer projeto de ruptura antissistêmico em mente?

E ainda: como queremos construir esse programa? Com protagonismo da base militante do partido e dos movimentos dinâmicos da cidade, ou por meio de panaceias como o extinto “Vamos”, de 2018, que, além de exógeno ao PSOL, acabou produzindo retrocessos históricos nas formulações partidárias, como no tópico da dívida pública?

Aí estão os verdadeiros debates a serem realizados e que devem balizar a escolha das e dos filiados nas prévias que estão chegando.

Na superfície dessas questões mais profundas, temos também as ponderações imediatas. Uma das principais mobilizadas por Valério — a da suposta melhor colocação de Boulos em pesquisas eleitorais — simplesmente não se sustenta. A propósito, chama a atenção que o autor reivindique um balanço mais “político” do que eleitoral da campanha majoritária de 2018, mas, mesmo assim, faça promessas “eleitorais” para 2020.

Ora, todos sabemos que o desempenho eleitoral de Guilherme Boulos, que por sua vez foi consequência de uma política, foi o mais decepcionante do PSOL, ainda que a campanha tenha sido a mais cara. Isso não elimina os méritos de Guilherme no cumprimento da tarefa, porém é um fato objetivo. Baseado em que elemento, então, além da vontade e da promessa, poderia se supor que o desempenho eleitoral dele seria mais promissor do que o de Sâmia?

Também soa absurdo atribuir às outras pré-candidaturas, à exceção da pré-candidatura de Boulos, a suposta intenção de dividir o partido, ao invés de unificar. Embora prévias geralmente sejam disputadas entre cabeças de chapa, foi a pré-candidatura defendida por Valério que, desde o início, subverteu essa lógica, apontando no sentido do hegemonismo e não da composição. Já recentemente, também vetaram a possibilidade do voto online nas prévias, numa demonstração de preocupação com a ampliação da participação da base de filiados, o que, por seu turno, reflete também uma concepção de partido, que é conivente com o problema burocrático que há anos divide e atravanca o PSOL.

De nosso lado, temos certeza de que Sâmia e Alexya são as mais capazes de produzir o melhor resultado eleitoral e político da história do PSOL na cidade, colocando nosso partido e nosso projeto em outro patamar. Diferentemente do que afirma Valério, que ao elogiar Sâmia a apresenta como “uma jovem feminista que estabelece uma ponte do PSOL com uma nova geração de mulheres”, o projeto em torno de Sâmia — e ela própria enquanto quadro político do PSOL há quase 10 anos — vão bastante além disso.

É um projeto vocacionado para vencer, mas não sob as mesmas regras e as mesmas condições de uma esquerda que já comprovou historicamente trair a classe e produzir derrotas. É vocacionado para vencer expressando as lutas do nosso tempo, a auto-organização da classe e dos movimentos, a política como projeto coletivo e não personalista, o PSOL como uma aposta estratégica, um programa que aglutine para muito além de nossas fronteiras atuais.

Prévias democráticas, por fim, quando legítimas e leais, podem servir para unificar e não para dividir o partido. Quem tiver maioria na base, vencerá. E todos juntos construiremos o PSOL e a pré-candidatura legitimada na base.


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Pedro Micussi