Recuperação ou queda

Aspectos econômicos da crise mundial.

Michel Husson 20 ago 2020, 17:00

Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas. (Marx e Engels, O Manifesto Comunista, 1848)

A crise atual combina uma crise sanitária e uma crise econômica a escala mundial. E a interação entre estas duas dimensões da crise pode desencadear um ciclo específico que alterna derrapadas e acelerações em meio a uma trajetória recessiva.

     Esta é a hipótese que examinamos nesta contribuição.

O difícil ajuste do desconfinamento

     Atualmente, as medidas de confinamento afetam a quase 2,7 bilhões de trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, algo ao redor de 81% da mão de obra mundial[1]: esta crise não se parece com nenhuma outra. O efeito de paralisar uma boa parte da atividade econômica se multiplica por seus efeitos indiretos e coloca em marcha um ciclo infernal. No entanto, obviamente, o confinamento não pode ser total, nem se prolongar indefinidamente sob pena de solapar as próprias condições de subsistência da população. Esta importante retroalimentação (feedback) leva à necessidade de uma arbitragem difícil[2].

     Frente a este dilema real, podemos distinguir três tipos de reações dos Estados com base na classificação proposta por Jérôme Baschet: “o minimalismo sanitário liberal-darwinista; a atenuação implementada pelos Estados bem preparados e dotados com poderosos recursos materiais e técnicos; as medidas de confinamento generalizado, implementadas de maneira mais ou menos autoritária”[3].

     A primeira orientação minimalista foi inicialmente a de Boris Johnshon ou  de Donald Trump. Também se apresentou na Holanda e, o que é menos conhecido, no México, em relação ao qual vale uma esclarecedora pequena digressão. Efetivamente, seu presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) brandiu imagens religiosas como o melhor baluarte contra o vírus[4]. Isso foi em 18 de março. Porém esta deriva de AMLO também foi política. Quando prefeito da capital, entre 2000 e 2005, obteve um forte apoio popular graças a seus programas sociais[5]. Contudo é esse mesmo AMLO quem, desde 1 de janeiro, suprimiu o programa Seguro Popular que até então proporcionava proteção social a pessoas sem cobertura sanitária e o substituiu pelo fantasmagórico Instituto de Salud para el bienestar. O contraste é grande com a posição da direção zapatista que, dois dias antes desta famosa conferência do presidente, havia declarado alerta vermelho nos territórios rebeldes e convidado “os povos do mundo a medir a gravidade da enfermidade e a adotar medidas de saúde excepcionais, sem abandonar as lutas em curso”[6]

     Entretanto, a linha “liberal-darwinista” foi abandonada progressivamente frente à realidade e já não é seguida praticamente por ninguém, exceto por Trump (nos bastidores) e Jair Bolsonaro que, assumindo toda a responsabilidade, acaba de demitir seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em ambos os casos, a crise tem conduzido a um conflito entre o poder federal e alguns dos Estados. Portanto, na prática o que se impõe na maioria dos países é uma política de confinamento.

     Obviamente, a priori é a forma mais efetiva de reduzir as possibilidades de transmissão, como o ilustra este gráfico de um epidemiólogo (bastante) amador. À esquerda, cada pessoa infectada contamina a outras três segundo a revolução da taxa de reprodução inicial (Ro) do vírus. À direita, o confinamento bloqueia a propagação.

     Evidentemente, este mecanismo de atenuação depende de quanto dure o confinamento, como pôde explicar Angela Merkel numa intervenção muito pedagógica[7]. Mas confinamento não pode ser mantido por muito tempo, por razões que não somente se referem ao imperativo econômico, mas também sociais, em todos os sentidos do termo. Contudo, ao mesmo tempo, ainda há muitas incertezas sobre o modo exato de transmissão do vírus, sobre a proporção de pessoas infectadas mas assintomáticas, sobre a efetividade das provas, sobre a possibilidade de re-infecções, etc. Um internauta desenhou um quadro bastante divertido.

Charge: “Querida, é incrível, meus amigos, especialistas em economia, que se tornaram especialistas em climatologia, agora são especialistas em virologia!”

As aporias do confinamento[8]

  1. Você não pode sair de casa, mas tiver que fazer, você pode.
  2. As máscaras são inúteis, mas talvez você devesse usar uma, ela pode salvá-lo/a. Pode ser que não sirvam para nada, mas também podem ser obrigatórias.
  3. As lojas estão fechadas, exceto as que estão abertas.
  4. Este vírus é mortal mas não é realmente terrível, exceto que você poderia morrer dele, ou poderia tê-lo sem nem saber.
  5. As luvas não ajudarão, no entanto podem ser usadas.
  6. Todo mundo deveria ficar em casa, mas é possível sim sair para fazer exercícios, salvo que você pode correr algum risco, a menos que ninguém mais faça exercício no lugar onde você se encontra.
  7. O supermercado está bem abastecido, mas faltam muitas coisas, exceto pela manhã. Às vezes.
  8.  O vírus não tem nenhum efeito nas crianças, exceto nos infectados.
  9. Você terá muitos sintomas, caso adoeça, mas você pode estar enfermo sem sintomas ou ter sintomas sem estar enfermo.
  10. É possível comer imediatamente a comida distribuída a cada por um restaurante, mas você deve descontaminar seus alimentos fora durante três horas.
  11. Você está a salvo, caso se mantenha a uma distância de um metro dos demais, sempre que estas pessoas sejam estranhas. Está proibido ver seus amigos desde uma distância segura.
  12. O vírus permanece ativo em diferentes superfícies durante duas horas; não, quatro; não, seis; não, talvez dias? Mas é preciso um ambiente úmido. Mas também um ambiente seco.
  13. Contamos o número de mortes, mas não sabemos quantas pessoas estão infectadas porque somente avaliamos as pessoas que quase estavam mortas para determinar se é disso do que vão morrer.
  14. Não temos um tratamento, mas pode haver um que funcione, a menos que tomemos a dose incorreta. Não há nenhuma forma de saber isso.
  15. Deveríamos permanecer enclausurados até que o vírus desapareça, mas isso somente atrasará a imunidade coletiva, o que requer abandonar o seu lar. Assim, saia com moderação.

     Dadas estas incertezas, é possível imaginar uma sucessão de fases de re/desconfinamento, como se ilustra no seguinte esquema, proveniente do Imperial College[9]:

Este cenário induziria uma trajetória de aceleração e depois de frenagem da atividade econômica, o que levaria a uma recuperação vacilante da economia, em forma de uma sucessão em W. Os economistas, por outro lado, realizam um enorme exercício de imaginação para distinguir os diversos perfis possíveis: alguns evocam o acrônimo de uma famosa marca de calçado esportivo ou inclusive a letra Baa do alfabeto árabe.

     Poderíamos imaginar um relaxamento da quarentena com, por exemplo, o arranque progressivo das atividades (mas com ao menos 50% das atividades não essenciais paralisadas), ou a manutenção do fechamento dos estabelecimentos das pessoas de mais idade. Este é o cenário previsto num estudo minucioso do Institut national de la santé et de la recherche médicale (Inserm)[10] que proporciona elementos adicionais. O primeiro é que o nível atual de imunidade seria baixo – de 1 a 6% das pessoas já infectadas[11]-, enquanto que é necessário um limiar de 60%, quando menos, para assegurar a imunidade coletiva e a erradicação do vírus.

     Além disso, este cenário somente pode funcionar se for acompanhado de uma campanha massiva de testes e distribuição de máscaras. Entretanto, os recursos materiais e logísticos não estão disponíveis imediatamente, ao menos na França. Em resumo, no melhor dos casos se pode poupar tempo e achatar as curvas, mas não será possível evitar uma recaída, senão que, quando muito, fazer retroceder e diminuir o impacto. Como diz Vittoria Colizza, uma das líderes do estudo, “o confinamento vai durar muito tempo porque não se pode viver normalmente com esta epidemia”[12].

     A incerteza não é eliminada com o exame comparado das políticas levadas a cabo nos distintos países. Alguns êxitos são difíceis de transpor: inclusive admitindo a veracidade das estatísticas oficiais, a China recorreu a medidas ultrarreacionárias, inclusive totalitárias. O êxito da Alemanha provavelmente se baseie (como na Coreia do Sul), ao menos em parte, numa política sistemática de teste, mas isso está fora do alcance de outros países. Cita-se o caso da Suécia, que utilizou um confinamento muito moderado, mas tem sombras caso se compare com países vizinhos como Dinamarca, Noruega ou Finlândia[13].

     Segundo Annie Thébaud-Mony, especialista em enfermidades profissionais, a escassez de teste não é uma explicação satisfatória: “nossos dirigentes estão apresentando uma razão técnica, enquanto que claramente tomaram uma decisão estratégica: a opção de não fazer teste”[14]. A fórmula sem dúvida deve ser matizada: é verdade que o governo francês mostrou uma profunda desorganização, como no caso das máscaras, e inclusive mentiu descaradamente[15]. Mas esta debacle também se relaciona com a escolha de um método; ou seja, a negativa – ou a incapacidade – para tomar o controle das coisas, inventariando capacidade de produção, expropriando…, em resumo, planificando. 

     Neste contexto de incerteza, a possibilidade de um novo surto também é uma preocupação para os bancos, como o Morgan Stanley, que previu uma segunda onda no início de 2021[16]. É o que ilustra o gráfico abaixo, que aparece aqui somente como um exemplo da complexidade aleatória dos modelos implementados.

As idas e vindas do vírus a escala mundial

     O modo como se organiza a produção global em forma de cadeias de valor se viu brutalmente afetado pela crise, e de várias maneiras. Dentro de um território ou país, a queda da demanda conduz à bancarrota a curto ou médio prazo das e dos produtores que não tenham respaldos (financeiros) bastante sólidos. Este fênomeno, ao estender-se às empresas de transporte, pode inclusive levar à perda da produção de produtos alimentícios porque não se pode entregar aos que compram. 

     Nos Estados Unidos, o fenômeno já está funcionando. Por um lado, alguns agricultores se veem obrigados a destruir seus cultivos e, por outro lado, os habitantes urbanos de escassos recursos fazem a fila em food banks para conseguir os alimentos. A imagem abaixo, que relaciona dois artigos do New York Times, simboliza o absurdo de tal situação[17].

     A variante francesa também é reveladora: alguns cultivos carecem de mão de obra porque geralmente estava composta por trabalhadores temporários estrangeiros que não podem vir a assegurar esta produção[18]. O mesmo ocorre no Reino Unido, que está tratando de reimportar aos trabalhadores estrangeiros expulsos pelo Brexit.

     O comércio internacional já se reduziu consideravelmente, mas corre o risco de reduzir ainda mais com as interrupções nas cadeias de fornecimento. Com relação aos alimentos básicos, a OCDE teme que a curto prazo “as cadeias específicas de fornecimento de alimentos se verão seriamente afetadas, em particular pela falta de trabalhadores estacionais para a plantação ou a colheita de cultivos essenciais, por limitações logísticas e por medidas sanitárias[19]”.

     Entretanto, tais mecanismos já estão funcionando, como mostra um informe do Banco Mundial sobre a África subsaariana[20]. A propagação do vírus começou ali mais tarde e segue relativamente limitada (5.425 casos registrados em 45 dos 48 países). Porém seus efeitos econômicos já estão presentes e o Banco Mundial apresenta uma imagem muito sombria, com um crescimento negativo para 2020 entre -2.1 e -5.1%. Para além das cifras, o informe resume os principais canais de transmissão da crise.

     O primeiro canal é a perturbação do comércio e das cadeias de valor. Golpeia os setores exportadores de produtos da região, com o colapso dos preços internacionais das matérias primas, assim como os países que estão altamente integrados nas cadeias de valor, como Etiópia e Quênia. O segundo choque é o resultado de uma repentina retirada de capital e, em geral, da redução de todos os fluxos de financiamento estrangeiros (investimentos diretos, ajuda, remessa de fundos, rendas do turismo). Em geral, os países enfrentarão graves crises na balança de pagamentos, com deficits comerciais cada vez maiores e com quedas das taxas de câmbio. A seguir vêm os efeitos estritamente sanitários que terão um efeito multiplicador, levando em conta a dificuldade para organizar o confinamento[21].

     Esta imagem, já por si só sombria, deve ser completada agregando a forte dependência de vários países africanos das importações agrícolas. Efetivamente, observa-se que alguns países produtores estão tomando medidas de autoproteção que consistem em restringir suas exportações de produtos agrícolas. Isso poderia desencadear uma crise alimentar em países como a Argélia, o Egito, o Marrocos ou a Nigéria, que dependem particularmente do abastecimento exterior[22].

     Muitos países latino-americanos estão expostos aos mesmos perigos e por razões similares. Como mostra Pierre Salama, “experimentarão fortes quedas em suas entradas tributárias graças à diminuição das exportações de matérias primas que se somará à queda dos preços mundiais. Isso poderia conduzir a uma crise fiscal, reduzindo assim suas capacidades orçamentárias para responder à crise econômica e social”[23].

     Portanto, todos os países emergentes e em desenvolvimento estão afetados: enfrentam as mesmas dificuldades e devem solicitar empréstimos ao mesmo tempo. As saídas de capital, em proporções sem precedentes, já começaram devido a que os mercados financeiros preferem reduzir os riscos e financiar os Estados Unidos, a China e os países europeus. É por isso que a pandemia é uma “bomba-relógio de défauts soberanos”[24]. Logo, não é surpreendente que muitos países já tenham solicitado assistência financeira de emergência ao FMI, que a concedeu, não obstante a oposição de Trump. Mas esta ajuda chega a conta-gotas e a suspensão da dívida outorgada a certos países é somente temporal.

     Seria possível dizer que a pandemia está experimentando, como a economia mundial, um desenvolvimento desigual e combinado e ademais está mostrando isso. Os intercâmbios internacionais vão estar sujeitos aos mesmos ziguezagues que as conjunturas nacionais, porque é impossível adaptar as cadeias de valor mundiais em tempo real. Se um país da periferia já não pode abastecer a um país do centro porque, por sua vez, está golpeado pela pandemia, esta interrupção repentina da produção no primeiro país terá repercussões na atividade econômica do segundo.

Os efeitos rebote

     Os defensores de uma recuperação em V não compartilham as observações anteriores que permitiriam, desde 2021, compensar 2020. A versão mais radical desta tese é sem dúvida a da Office for Budget Responsability que é uma espécie de equivalente britânico do Tribunal de Contas. Prognostica uma queda de -12.8% do PIB em 2020, seguida de uma recuperação de incríveis +17.9% em 2021! Isso está no gráfico deupurado abaixo[25].

     No mesmo registro cômico, se pode citar a entrevista “trumpoide” de Larry Summers, ex-secretário de Estado de Clinton, ex-assessor de Obama, etc. Sua intuição “provavelmente otimista”, diz que “a recuperação pode ser mais rápida do que caberia esperar, porque é muito similar ao que se sucede depois da depressão total na economia Cape Cod a cada inverno [Cape Cod é o lugar de férias favorito para as elites de Boston e Nova York] ou da recuperação do PIB dos Estados Unidos todas as segundas-feiras”. Depois deste toque de humor, Summar agrega: “Portanto, creio que se conseguimos controlar a situação sanitária, a volta à normalidade será mais rápida que durante as crises financeiras ou as recessões habituais”; mas, prudente, agrega “não estou seguro”.[26]

     Nem todas as previsões quantificadas caem neste ridículo, mesmo porque se necessita muita coragem para levar a cabo semelhante exercício. Em qualquer caso, observa-se que a maioria das projeções esforçam-se por apresentar trajetórias otimistas. É difícil dizer se isso se deve a um método que subestima o alcance desta crise, ou é para tranquilizar (aos investidores?) minimizando o alcance do choque. Em qualquer caso, os seguintes gráficos se assemelham a desejos piedosos, wishful thinking, como se diz em inglês. À esquerda está o prognóstico de Xerfi para a França, à direita o do FMI, em forma de “swoosh[27]. De acordo com o FMI, os países emergentes e em desenvolvimento deveriam sair rapidamente da depressão e crescer 10% no final de 2021, o que na realidade está para além do razoável.

     Para fechar o capítulo, pode-se citar um artigo que também é bastante esclarecedor[28], no qual o autor estabelece um paralelo (sem dúvida de gosto duvidoso) com o jogo das topeiras (whack a mole)no qual é necessário acertar o maior número de topeiras que seguem tirando a cabeça de seus buracos.

A fábula da poupança forçada

     Um dos efeitos do confinamento é que os gastos de consumo caem mais do que as rendas. No caso da França, a taxa de poupança, que oscilava ao redor de 15%, deveria saltar para 35% no segundo trimestre de 2020[29]. Esta poupança forçada representaria algo em torno de 55 bilhões de euros por oito semanas de confinamento[30]. Se a taxa de poupança volta a seu nível anterior à crise, o consumo impossível durante o confinamento se atualizaria e respaldaria uma recuperação rápida em V. O gráfico abaixo, tomado do estudo já citado por Xerfi, ilustra este cenário ultra-otimista cuja probabilidade é próxima a zero (gostaríamos de ver a “equação” que conduz a esse resultado).

     Por outro lado, o autor do estudo matizou de imediato esse otimismo: “no papel”, explica, poderíamos contar com “as poupanças da famosa França de fim de mês”, “entretanto, não veremos este feliz resultado. Não haverá uma manhã que canta nem sequer um choque suavizado”[31].

O problema destes cenários é que implicitamente assumem um fim completo do confinamento e um reinício imediato da produção. E com isso, subestimam o ciclo pandemia/economia e o ciclo demanda/oferta. Além disso, enfrentam uma dificuldade clássica em relação à taxa de poupança. Mesmo antes da crise, era uma das variáveis determinantes num exercício de previsão econômica e, sem dúvida, é uma das mais difíceis de se criar um modelo. A razão é que não há uma taxa de poupança que estaria determinada pelo comportamento do agente representativo, ou seja, de um consumidor médio. Desde Keynes, sabemos que os ricos poupam mais. O gráfico a seguir ilustra isso perfeitamente: 20% dos lares com as rendas mais baixas (quintil Q1) tem inclusive uma taxa de poupança negativa (se endivida), o 20% seguinte tem zero poupanças, e a maioria das poupanças provêm das rendas mais altas[32]. Alguns estudos pontuais mostram que o comportamento de poupança depende da estrutura das rendas: em geral, os assalariados poupam menos[33].

Portanto, confiar na liberação dessa poupança forçada para relançar a economia é indicativo de uma forma de distanciamento social, que equivale a ignorar o destino dos mais desfavorecidos, dos que lutam porque perderam empregos e renda, dos que fazem fila para ter o que comer. Baseando-se na pesquisa domiciliar do INSEE e numa pesquisa do Ifop[34], Pierre Concialdi mostra que a queda da atividade vem tendo “um impacto nas rendas de mais de um terço da população ativa”, submergindo-a em grandes dificuldades financeiras. É verdade que foram tomadas medidas em relação ao desemprego parcial, mas “estão longe de compensar a perda total de renda. Em média, para os assalariados em questão, se pode estimar que a perda é de 400 euros por mês, ou 800 euros depois de dois meses de confinamento”. Concialdi estima aproximadamente entre 2,5 milhões e 2,8 milhões o número de lares de ativos inquilinos ou aderentes (ou seja, de 6 a 7 milhões de pessoas) que foram duramente golpeados pela recessão” e sugere “uma intervenção mais vigorosa dos poderes públicos a escala nacional, seja através de uma moratória dos aluguéis e/ou mediante a colocação em marcha de um fundo de solidariedade[35].

     Mesmo se várias medidas permitissem evitar uma forte queda nos salários, é principalmente sobre os ricos sobre os quais se conta para impulsionar o consumo e o emprego dos demais. Mas isso é esquecer que registrarão perdas em seu patrimônio, e não se vê nessas condições por que estariam incitados a consumir em excesso.

     Se os estudos citados (OFCE e Xerfi) proporcionam uma calibração meticulosa, elas também indicam outra dificuldade. A OFCE assinala que “as oito semanas de confinamento conduzirão a uma redução na taxa de margem das empresas de 2,9 pontos de valor agregado durante o ano, o equivalente a uma perda de 35 bilhões de euros”. Um dos efeitos imediatos da crise é reduzir a rentabilidade das empresas, sua taxa de margem (para aquelas que não terão ido à quebra). Deveria fazer-se tudo “para salvar o soldado Ryan”. A recuperação em V não somente implica uma retomada do consumo, mas também, a longo prazo, do investimento. Salvo que “não se pode fazer beber um burro que não tenha sede”. O investimento estará limitado de maneira duradoura pelo endividamento das empresas e pela falta de visibilidade da demanda. Depois da crise de 2008, as empresas se viram frente a frente com a mesma necessidade de reduzir a sua dívida e fizeram isso freando o investimento, os salários e o emprego. Estas evoluções “correm o risco de se repetir depois da crise do coronavírus”, como nos adverte Patrick Artus[36].

Recuperação, alguém disse recuperação?

     Seria possível imaginar um efeito rebote a priori favorável à recuperação econômica: aliviados por estar fora da crise, os consumidores vão decidir compensar os horrores da crise sanitária gastando suas poupanças forçadas e consumindo freneticamente para, de alguma maneira, tirar o atraso. Voltaria a confiança, e a atividade econômica poderia reiniciar-se vigorosamente. Já mencionamos por razões pelas quais um cenário deste tipo, que uma vez mais supõe implicitamente um desconfinamento integral e imediato, não leva em conta o campo de ruínas no qual teria lugar esta recuperação.

     Este cenário passa por alto outro fator: o medo à enfermidade. É o que sublinha a análise do epidemiólogo Joshua Epstein, que propõe o conceito de “contágio acoplado” que combina a enfermidade em si e o medo à enfermidade[37]. Segundo este modelo, o medo à enfermidade inicialmente leva a tomar medidas que limitam a propagação da epidemia. Quando as coisas parecem melhorar, o medo diminui e as medidas de proteção são relaxadas ou abandonadas gradualmente. Então é “o retrocesso do medo que causa estragos. Se ainda circulam alguns casos infectados, a retomada das atividades equivale a verter gasolina sobre estas brasas infecciosas (em forma de pessoas expostas), e se acende uma segunda onda”.

     É um tipo de recuperação completamente diferente a que deve ser considerada: a de um retorno às políticas de reequilíbrio fiscal. Aqui temos que abrir, com prudência, um pequeno parênteses para avaliar as medidas tomadas ou anunciadas hoje. Sob o risco de represálias, pode-se dizer, ao menos no que diz respeito à Europa, que os governos aceitaram um esforço orçamentário significativo, ou ao menos se resignaram a isso. Pode-se tomar a medida comparando a taxa de desemprego que explode nos Estados Unidos enquanto está relativamente contida na Europa. Obviamente, as medidas tomadas são insuficientes, estão focalizadas de maneira imperfeita e estão insuficientemente coordenadas. Entretanto, apesar destes limites, em qualquer caso implicam um aumento significativo da dívida pública.

     As avaliações do FMI[38] reproduzidas na tabela acima dão as ordens da magnitude: para a zona do euro em seu conjunto, a dívida pública passaria de 84,1 para 97,4% do PIB, um aumento de 13 pontos. Mas este impacto será ainda mais forte e dramático para a Grécia, seguida pelos países do Sul: Itália, Espanha, Portugal e… França. Para outros países, como a Alemanha e os Países Baixos, o impacto seria menos forte.

     Nossa hipótese é que os governos vão aproveitar a mais ínfima desculpa para justificar as medidas de saneamento segundo modalidades que podem diferir de um país para outro. A experiência da crise anterior reforça esta hipótese: as políticas de austeridade implementadas desde 2010 e 2011 levaram a uma recessão. Sem dúvida, os governos aprenderam disso e tentarão não endurecer muito cedo. Mas o debate se centrará mais no momento apropriado que na necessidade de tal ponto de inflexão. As oposições entre países frugais e dilapidadores não farão mais do que recrudescer apesar das intervenções do BCE e das diversas propostas que estão florescendo (e sobre as quais será preciso voltar). As idas e vindas das políticas orçamentárias dessincronizadas, combinando-se com os fluxos e refluxos da epidemia têm o risco de aportar sua contribuição para uma recuperação hesitante, em formato de “dentes de serrote”.

     Por outro lado, não será possível dizer que não nos foi advertido, como mostra esta pequena antologia.[39] “Será preciso fazer esforços para reduzir a dívida” (o Ministro francês da Economia); “Trabalhar mais do fizemos que antes” (seu Secretário de Estado); “O tratamento das dívidas herdadas da crise implicará necessariamente um esforço orçamentário rigoroso com gastos públicos mais seletivos” (o Governador do Banco da França); “cedo ou tarde teremos que nos colocar a questão do tempo de trabalho, dos dias festivos, dos feriados e das férias pagas para acompanhar a recuperação e facilitar, trabalhando um pouco mais, a criação de crescimento adicional” (o patrão dos patrões franceses). 

     Mas foi indubitavelmente Philippe Aghion quem proporcionou a chave essencial. Numa entrevista por rádio, repetiu várias vezes a ideia de que, em matéria de dívida pública, “o importante é a confiança que inspira os mercados”[40]. Pôs o dedo num ponto fundamental: para além dos debates técnicos, a realidade é que as dívidas públicas que supostamente financiam as necessidades sociais (e ambientais) devem se submeter aos mercados financeiros; em outras palavras, afinal de contas, ajustar-se aos interesses privados dos que os famosos mercados não são mais do que seus porta-vozes.

     Nossos dirigentes, portanto, estão preparando o próximo movimento. São acompanhados pelas exortações de editorialistas como Eric Le Boucher, o qual afirma que “a preservação da vida é um princípio sagrado, mas a volta ao trabalho e a defesa das liberdades individuais também representam um valor humano”[41]. Por outro lado, para o presidente de um instituto ultraliberal, “a vida é um risco e esse é seu preço”[42]. O raciocínio prossegue com o jornalista de Liberation, Jean Quatremer, que se deixa levar num tuíte de 9 de abril: “é uma loucura quando você pensa isso: afundar o mundo na pior recessão desde a Segunda Guerra Mundial por uma pandemia que até o momento matou menos de 100 000 pessoas (sem mencionar sua idade avançada) num mundo de 7 bilhões de habitantes”. Dois minutos depois, reitera sua indignação: “Eu me pergunto quando voltaremos à razão? Quando a recessão alcançar o patamar dos -20%?”[43].

     Os abutres também estão à espreita. Nos Estados Unidos, o Wall Street Journal[44] observa que “um número crescente de investidores está se preparando para o que acreditam ser uma oportunidade única para comprar bens imóveis em dificuldades a preços vantajosos. As sociedades de investimento como Blackstone Group Inc, Brookfield Asset Management e Starwood Capital Group dispõem de bilhões de dólares [e] estão interessadas em hotéis, negócios, valores respaldados por hipotecas e outros ativos que sofreram tensões na última semana”. A crise poderia ser uma “bonança”, como explica David Schechtman, do Meridian Capital Group. É certo que se preocupa por expressar toda sua compaixão: “nossos pensamentos e nossas orações estão com todos nossos cidadãos estadunidenses e ninguém busca se beneficiar da desgraça de ninguém” e logo “deixa de lado a emoção” para expressar seu pensamento profundo: “mas eu direi a vocês: um grande número de investidores imobiliários estiveram esperando isso durante uma década”. Este exemplo, entre outros, mostra que a saída da crise será uma aposta política e social.

Um capitalismo abalado

     O capitalismo recebeu um duro golpe e não poderá se recuperar facilmente. Este resumo rápido revela ao menos cinco mecanismos que vão frear uma possível recuperação:

  1. As empresas, endividadas e com incertas saídas de mercado, duvidarão em investir e tratarão de reduzir empregos e salários;
  2. Os lares, empobrecidos ou inquietos, reduzirão o seu consumo, favorecerão as poupanças preventivas ou adiarão suas compras de bens duradouros;
  3. Os Estados eventualmente buscarão sanear as finanças públicas;
  4. As cadeias de valor estão desorganizadas e o comércio internacional sofrerá desaceleração;
  5. Os países emergentes, afetados pelas fugas de capital e pela queda dos preços dos produtos básicos, contribuirão para a contração da economia mundial.

     Esta crise exacerba as tendências ou tensões que já existiam antes de que ela eclodisse. Mas se combina com a crise sanitária, que tem o efeito de introduzir um clima geral de incerteza e dar um perfil vacilante sobre a recuperação.

     O seguinte gráfico ilustra o prognóstico que se pode avançar hoje: obviamente é uma conjectura em vez de um impossível prognóstico. A curva verde corresponde à tendência anterior à crise. A curva azul representa de maneira estilizada a possível trajetória da atividade econômica. Durante o primeiro período, se observam flutuações (ou oscilações) causadas pelas alternâncias de confinamento e desconfinamento. Contribuem para gerar (combinadas com as contradições econômicas) uma tendência recessiva. A magnitude destas oscilações se reduz gradualmente para que a economia possa voltar aproximadamente à tendência anterior à crise, mas a um nível inferior.

Tradução de “Rebond ou plongeon?”, A l’encontre (29/04/2020) por Charles Rosa.


[1]      OIT, “COVID-19 e o mundo do trabalho. Estimativas e análises atualizadas”, 7 de abril de 2020.

[2]      Ver Michel Husson, “Sur l’inanité de la science économique officielle : de l’arbitrage entre activité économique et risques sanitaires”, A l’encontre, 14 de abril 2020.

[3]      Jérôme Baschet, “Qu’est-ce qu’il nous arrive?”, LundiMatin, 13 de abril de 2020.

[4]      “AMLO usa imágenes religiosas como ‘escudo protector’ contra el Covid-19”, Diario de México, 18 de março de 2020

[5]      Implementou uma prestação para as pessoas idosas de mais de 70 anos (Pensión Universal para Adultos Mayores), as mães solteiras e as pessoas com deficiência, além de colocar a disposição de cuidados médicos e medicamentos gratuitos a mais de 750 000 famílias pobres sem proteção social.

[6]      EZLN, “Communiqué du Comité Clandestin Révolutionnaire Indigène”, 16 março de 2020.

[7]      Angela Merkel, “Conférence de presse du 15 avril 2020”.

[8]      Segundo informação de Jane Maher, uma oncóloga, no Twitter.

[9]      Imperial College, « Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand », 16 de março de 2020.

[10]     Laura Di Domenico et al., “Expected impact of lockdown in Île-de-France and possible exit strategies”, Inserm, 12 de abril de 2020

[11]     Esta proporção seria “de forma muito verossímil inferior a 15%, mesmo nas zonas mais afetadas pela primeira onda da pandemia”, estima o Conselho científico Covid-19 em seu informe de 2 de abril de 2020: “ Etat des lieux du confinement et critères de sortie”

[12]     Citada por Paul Benkimoun, “Une levée du confinement sans mesures strictes de tests et d’isolement serait inefficace”, Le Monde, 12 de abril 2020.

[13]     Hans Bergstrom, « The Grim Truth About the Swedish Model »,  Project Syndicate, 17 de abril 2020.

[14]     Annie Thébaud-Mony, « Le gouvernement affaiblit notre capacité collective à lutter contre le virus », Bastamag, 10 de 2020.

[15]     Yann Philippin, Antton Rouget, Marine Turchi, « Masques: les preuves d’un mensonge d’Etat », Mediapart, 2 de abril de 2020; Ismaël Halissat et Pauline Moullot, « Masques : un fiasco et des mensonges », Libération, 28 de abril 2020.

[16]     Morgan Stanley, « COVID-19: A Prescription To Get The US Back To Work », 3 de abril de 2020.

[17]     Obrigado a Gilles Raveaud por ter me enviado esta montagem realizada por Matt Huber.

[18]     No caso dos morangos e aspargos tornados célebres pelo inenarrável porta-voz de nosso governo que evocava de passagem aos professores confinados “que não trabalham”. Ver Sibeth Ndiaye, « Fraises et asperges », BFMTV, 25 de março de 2020.

[19]     OCDE, “Covid-19 and International Trade: Issues and Actions”, Abril de 2020.

[20]     The World Bank, “Assessing the Economic Impact of Covid-19 and Policy Responses in Sub-Saharan Africa”, Abril de 2020.

[21]     Sarah Diffalah, “Comment gérer l’impossible confinement en Afrique”, L’Obs, 13 de abril 2020.

[22]     Antoine Bouët, “Coronavirus et sécurité alimentaire en Afrique”, Telos, 9 de abril de 2020.

[23]     Pierre Salama, “En Amérique latine, la pandémie s’ajoute à d’autres crises”, Libération, 8 de abril de 2020.

[24]     Pierre-Olivier Gourinchas, Chang-Tai Hsieh, “COVID-19 : Une bombe à retardement de défauts souverains”, Project Syndicate, 9 de abril de 2020.

[25]     Office for Budget Responsibility, «”OBR coronavirus reference scenario”, 14 de abril de 2020.

[26]     Larry Summers, “Recovery Could Be Faster Than Anticipated”, Vanity Fair, 2 de abril de 2020.

[27]     Olivier Passet, “Covid-19 : la contagion sectorielle de l’économie réelle L’ampleur du choc, les limites du rebond », Xerfi, 20 de abril de 2020 ; FMI, “The Great Lockdown », World Economic Outlook, Abril de 2020.

[28]     Ed Yong, “How the Pandemic Will End”, The Atlantic, 25 de Março de 2020.

[29]     Olivier Passet, “Covid-19 : la contagion sectorielle de l’économie réelle L’ampleur du choc, les limites du rebond”, Xerfi, 20 de abril de 2020.

[30]     OFCE, “Évaluation de l’impact économique de la pandémie”, 20 de abril de 2020.

[31]     Olivier Passet, “Le rattrapage après-crise : les illusions perdues” Xerfi, 24 de abril de 2020.

[32]     Mikael Beatriz, Thomas Laboureau, Sylvain Billot, “Quel lien entre pouvoir d’achat et consommation des ménages?”, Nota de conjuntura, Insee, junho de 2019.

[33]     Jean-François Ouvrard et Camille Thubin, “La composition du revenu aide à comprendre l’évolution du taux d’épargne des ménages en France”, Bulletin de la Banque de France, fevereiro de 2020.

[34]     Ifop/Fondation Jean Jaurès, “Les actifs et le télétravail à l’heure du confinement”, março de 2020.

[35]     Pierre Concialdi, “Confinement, récession et baisse des revenus?”, Ires, abril 2020.

[36]     Patrick Artus, “Comment les entreprises se désendettent-elles?”, 21 de abril de 2020.

[37]     Joshua M. Epstein, Jon Parker, Derek Cummings, Ross A. Hammond, “Coupled Contagion Dynamics of Fear and Disease: Mathematical and Computational Explorations”, PLoS ONE, Volume 3, Issue 12, 1 de dezembro de 2008.

[38]     FMI, “Policies to Support People During the COVID-19 Pandemic”, Fiscal Monitor, Abril de 2020.

[39]     Em ordem de aparição: Bruno Le Maire, “Il faudra faire des efforts pour réduire la dette”, Reuters, 10 de abril de 2020 ; Agnès Pannier-Runacher, “Travailler plus que nous ne l’avons fait avant », AFP, 11 de abril de 2020 ; François Villeroy de Galhau, “Il n’y a pas de miracle : nous devrons porter plus longtemps des dettes publiques plus élevées », Le Monde, 8 de abril de 2020 ; Geoffroy Roux de Bézieux, “La reprise, c’est maintenant ! » Le Figaro, 10 de abril de 2020.

[40]     Philippe Aghion, “Penser l’économie de demain”, France Culture, 24 de abril de 2020.

[41]     Éric Le Boucher, “Il faut sortir la France du confinement”, Les Echos, 10 de abril de 2020.

[42]     Jean-Philippe Delsol, “Confinement : jusqu’où peut-on aller?”, Les Echos, 10 de abril de 2020.

[43]     Jean Quatremer, “Uma seleção de tweets”, tweet, abril de 2020

[44]     Konrad Putzier and Peter Grant, “Real-Estate Investors Eye Potential Bonanza in Distressed Sales”, The Wall Street Journal, 7 de Abril de 2020.


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Pedro Micussi