A encruzilhada de Juarez Guimarães ou como organizar derrotas
A posição do professor que se apresenta como solução para os problemas é na verdade parte responsável da realidade que vivemos hoje.
O professor Juarez Guimarães, um dos teóricos daquela que se proclama a “ala esquerda” do PT, publicou recentemente um artigo no qual debate as tarefas da “esquerda e centro esquerda” no cenário eleitoral de 2020. Seu principal argumento é a denúncia de que a “desunião” entre estes setores poderia causar a derrota deste “campo político”. No texto, Juarez define esta desunião como fruto dos interesses particulares de cada um dos partidos e chama de “particularismo” a decisão de PSOL, PT, PCdoB, PSB e PDT de apresentarem chapas próprias em diversas cidades do país.
No mesmo sentido, Guimarães define as posições de independência política frente ao PT nos últimos anos como “minoridade política e moral” das organizações que não aceitaram a narrativa petista, invertendo papéis para defender uma posição que isenta o petismo e o lulismo de suas devidas responsabilidades sobre a situação vivida atualmente no Brasil. E este é o ponto inicial desta resposta.
A responsabilidade do PT na ascensão da extrema-direita
Para nós, a verdade é outra. O PT é o principal partido do país, possui o maior número de filiados e parlamentares, e governou o país por quase 14 anos durante as últimas duas décadas, sendo impossível entender a situação que vivemos hoje sem analisar o projeto levado adiante nos governos petistas. Não por acaso, Guimarães não cita este período e faz uma reflexão que parte de 2016, marcando o golpe parlamentar contra Dilma como o momento no qual a burguesia rompeu com as regras constitucionais mas esquecendo de avisar que esta mesma burguesia governou com o PT nos anos anteriores.
A crise econômica mundial de 2008, um tsunami apelidado de “marolinha” pelo então presidente Lula, trouxe consequências para o cenário político brasileiro. Junho de 2013 foi o marco histórico do esgotamento do padrão petista de gestão do capital, com imensas mobilizações contra o aumento da tarifa de transporte incendiando todo o país com a consigna “não são só 20 centavos” (grito curiosamente repetido no levante chileno de 2019). A crise do regime político começou ali, nas ruas, e a pressão popular fez a então presidenta Dilma responder propondo 5 pactos nacionais que nunca foram levados à cabo.
O lulismo, expressão principal do projeto petista, foi uma política de capitulação frente ao capitalismo nacional, aprofundando as desigualdades estruturais do Brasil, aderindo aos interesses econômicos do rentismo e das elites da casta política. Em seus anos de governo, o PT construiu um arco de alianças regionais com boa parte das oligarquias locais que hoje se voltam ao bolsonarismo, flexibilizou relações trabalhistas, atacou os ecossistemas e os povos originários (a exemplo da usina de Belo Monte), entre inúmeras outras ações realizadas organicamente com a burguesia brasileira.
A corrupção foi parte deste processo de “integração” e as relações espúrias entre dirigentes políticos e grandes empresas foram notáveis, com investigações nos anos recentes devolvendo mais de 4 bilhões de reais aos cofres públicos. Tal processo também se deu notadamente no Peru, onde a indignação popular contra o mecanismo de corrupção oriundo do Brasil levou a grande instabilidade política. A Operação Lava Jato foi nitidamente instrumentalizada por um setor da direita que tinha como objetivo derrotar o PT, mas as causas de sua existência também são um componente essencial para montar o cenário brasileiro.
A crise de 2016, que culminou com o golpe parlamentar contra Dilma capitaneado por seu próprio vice-presidente, representou um momento no qual o modelo petista de governar – em aliança com a direita – havia se esgotado, tornando muito mais fácil para o establishment político brasileiro descartar o aliado útil e impor de forma antidemocrática o governo Temer. Todas as promessas de campanha feitas por Dilma em 2014 foram esquecidas e seu governo perdeu bastante lastro social, deixando evidente que não havia enfrentamento possível contra a direita sem mobilização popular. Naquele momento, o chamado por eleições gerais surgiu mirando em uma saída popular para a crise de credibilidade do governo, mas foi negado e taxado como “golpismo” por um PT que não via qualquer possibilidade e aposta nas ruas e realizou concessões aos seus algozes até o último instante do governo Dilma.
A prisão de Lula, sem dúvidas um ataque antidemocrático para retirá-lo das eleições vindouras, foi parte da articulação golpista e novamente o PT realizou todas as concessões possíveis na ânsia de voltar aos círculos de poder para os quais antes era convidado. Não podemos esquecer que o Brasil viveu uma enorme greve geral em abril de 2017, colocando o governo Temer nas cordas, em seguida culminando numa manifestação de cem mil pessoas que cercou Brasília, após as revelações da crise da JBS. Uma segunda greve geral no fim do mesmo ano (que poderia ter derrubado o presidente enfraquecido) não aconteceu justamente pela ânsia de negociações e recomposição política que comandava as maiores centrais sindicais.
A CUT e a Força Sindical, entre outras, pisaram no freio de um promissor processo de lutas, desmobilizando a classe trabalhadora e facilitando inclusive a prisão de Lula meses depois. Assim como ocorrido no golpe parlamentar de 2016, as promessas de radicalização da direção petista se converteram em bravatas. Nem mesmo uma única greve política foi convocada pela maior central sindical do país, e a política de desmobilização popular operada pelo PT mesmo fora do governo foi essencial para a posterior consolidação da extrema-direita em setores da classe trabalhadora.
O PT no cenário das atuais eleições
Em breve teremos as primeiras eleições após a ascensão de Bolsonaro ao poder e a posição de Juarez Guimarães diz ser “injusta e parcial” responsabilizar o PT pela falta de unidade da esquerda e da centro-esquerda no primeiro turno. Ignorando todos os elementos da dinâmica citada acima, Guimarães transfere a responsabilidade de seu partido para o “sectarismo” do PSOL, para a posição de autoconstrução do PCdoB, para uma “postura nacionalmente difusa do PSB” e para a “busca da identidade de centro-direita” do PDT com Ciro Gomes.
Esta transferência de responsabilidade, na qual o PT torna-se praticamente uma vítima de seus possíveis aliados na esquerda e centro-esquerda, ignora todo os longos anos de governo deste partido para escamotear seu papel nocivo tanto para os interesses dos trabalhadores como para a reorganização da esquerda. Ao definir a questão como um problema de “minoridade política”, Guimarães retoma a mesma postura de quando o PT era governo, escondendo as contradições do petismo e taxando outros grupos de esquerda como sectários ou mesquinhos para demonstrar que não há saída na esquerda brasileira fora do PT.
Esta é uma afirmação falsa. Na verdade, o que vemos nas eleições municipais brasileiras a partir do campo da esquerda é um grande rechaço ao projeto hegemonista e capitulador do PT, que busca se reabilitar no cenário político a partir da relação com forças independentes – notadamente no PSOL – enquanto ignora tanto seus anos de governo em coalizão com a direita (com os escândalos de corrupção e ataques aos trabalhadores derivados disso) como sua própria postura nas eleições municipais deste ano.
Antes de debatermos questões levantadas sobre as eleições em algumas capitais do país, é interessante notar também as alianças petistas com setores da direita protagonistas no golpe de 2016 em cidades pequenas e médias, e até mesmo no caso de capitais como Fortaleza (com uma possível aliança com o PMDB). Nas cidades de Juazeiro do Norte (Ceará) e Palmeira dos Índios (Alagoas), o PT estará na mesma coligação do PSL, partido da extrema-direita que elegeu Bolsonaro.
Mas os casos mais notáveis estão no Rio de Janeiro, estado onde o direção nacional do PT historicamente intervém no partido estadual em favor das alianças à direita. Em duas cidades importantes da região metropolitana do Rio, os movimentos de aproximação com o bolsonarismo foram diretos: em São Gonçalo lançando à prefeitura um “ex-bolsonarista”, oriundo do DEM, e em Belford Roxo apoiando a reeleição de um prefeito bolsonarista. Todos estes casos são ignorados na denúncia de falta de “maioridade política” feita pelo professor Juarez ao PSOL.
“Maioridade política” não pode significar um puro pragmatismo eleitoral que Juarez Guimarães vê nos outros partidos mas ignora no seu próprio. Também não pode significar uma simples adesão ao projeto de reabilitação eleitoral do PT sem nenhum tipo de autocrítica sobre seus gravíssimos desvios na história recente do país. Este é uma grande diferença entre nós. Uma mostra de oportunismo, não de “maioridade política”.
As eleições municipais nas capitais
Os cenários eleitorais nas duas principais capitais do país dão um sinal do momento vivido pela esquerda brasileira. Em São Paulo, a candidatura de Boulos pelo PSOL reúne cada vez mais apoios, inclusive de petistas importantes, e desponta em 2º lugar nas pesquisas eleitorais enquanto a candidatura petista (representada pelo ultrapragmático deputado federal Jilmar Tatto) se mostra frágil e constrange até mesmo Lula em declarar publicamente seu apoio.
No Rio de Janeiro, a tentativa de construção de uma frente contra a direita com o forte nome de Marcelo Freixo foi impedida principalmente pela resistência de todos os outros setores progressistas em realizar a aliança com o PT, que no estado sempre teve como aliados prioritários personagens como o ex-governador Sergio Cabral (réu confesso preso por corrupção), o ex-deputado Eduardo Cunha (recentemente saído da prisão) e o hoje bolsonarista prefeito Marcelo Crivella. A disputa “contra a unidade com o PT” realizada no debate de prévias do PSOL citado por Juarez Guimarães era, na verdade, uma luta contra a unidade somente com o PT, que interditava a construção de um processo mais amplo e que levou à desistência de Marcelo Freixo.
Os exemplos destas duas cidades mostram o amplo espaço que o PSOL vem desenvolvendo enquanto alternativa política. Ao mesmo tempo, demonstram a decadência de um projeto político ainda majoritário na esquerda, mas que perde cada vez mais espaço na classe trabalhadora e em setores que sempre lhe deram importante retaguarda. E, para enfrentar esta situação, faz sentido Guimarães atacar o “sectarismo” do PSOL ao mesmo tempo em que ignora tanto os motivos da profunda rejeição ao PT na sociedade quanto o permanente hegemonismo petista.
Sobre Porto Alegre, importante capital para a esquerda brasileira, Guimarães falseia a realidade ao escrever que “a unidade esbarrou sempre com a postura ultra-sectária da maioria local do PSOL”. Esta afirmação é falsa porque a proposta pública do PSOL era a realização de prévias entre a esquerda, levando para a base o debate sobre a candidatura, enquanto o PT foi intransigente por uma chapa majoritária na qual o PSOL estivesse excluído. Isso levaria a uma chapa cujo discurso único seria da defesa do legado petista, apagando o necessário balanço do projeto petista de co-gerência do capitalismo brasileiro. A “ultra-sectária maioria do PSOL local” sempre esteve pela unidade da esquerda na cidade, mas sua posição foi insuportável para o debate eleitoral feito pelo PT.
Em Fortaleza, Guimarães novamente responsabiliza uma “posição sectária” do deputado estadual do PSOL pela falta de unidade, referindo-se ao companheiro Renato Roseno. Porém, novamente se esquece de dizer que lá também todo o debate eleitoral estava condicionado ao apoio à candidatura da ex-prefeita petista Luizianne Lins, sem uma consulta as bases que permitisse a possibilidade da apresentação de uma chapa de unidade de esquerda encabeçada pelo projeto político independente representado pelo PSOL.
O caso de Belém do Pará, para o qual Juarez dedica poucas linhas, é uma demonstração da importância da afirmação desse projeto político independente. Nosso deputado federal do PSOL Edmilson Rodrigues, também ex-prefeito da cidade pelo PT, possui boas chances eleitorais e reúne hoje toda a oposição de esquerda da cidade em seu apoio porque enfrentou as oligarquias locais no mesmo período que o PT do estado se alinhava ao MDB da família Barbalho que até hoje governa o estado. Nesse caso, nosso apoio a Edmilson se dá nos marcos do próprio PSOL, onde fazemos um corte programático.
Derrotar a extrema-direita exige ampla unidade de ação e um programa de ruptura profunda com o regime político
Para derrotar a extrema-direita é necessário buscarmos uma total unidade de ação para barrarmos Bolsonaro e a extrema-direita ao mesmo tempo que apresentamos um programa de emergência que contemple os principais anseios da população. Por um lado, necessitamos golpear conjuntamente com a mídia antibolsonarista, com setores da centro-esquerda, com as burocracias sindicais e todos os demais setores que também se enfrentam contra Bolsonaro. Por outro, necessitamos afirmar um programa que enfrente as consequências de uma múltipla crise social na vida da classe trabalhadora.
Enquanto a primeira tarefa nos coloca ao lado inclusive de certos inimigos de classe, a segunda nos exige radicalidade em diversos termos. Exige uma radicalidade que rompa com os receituários capitalistas mas também nos exige uma radicalidade que não tolere a corrupção nem a incorporação nos mecanismos do clientelista estado brasileiro. As grandes crises do governo Bolsonaro nos últimos dois anos foram aliviadas em parte porque não há nenhuma condição da esquerda burocrática se colocar contra a corrupção nem incidir nas inúmeras crises políticas intraburguesas que o governo enfrentou.
O PT age contra os dois polos das tarefas colocadas acima. Primeiro porque bloqueia a unidade de ação com seu hegemonismo, conforme dito acima, e segundo porque não tem acordo com um programa de ruptura que sempre combateu quando foi governo. Enquanto defendemos qualquer tipo de esforço para derrotar a extrema-direita sem deixar de exigir uma ruptura no modo de produção, o PT faz o inverso e defende a reafirmação de seu projeto em crise sem propor qualquer mudança real em sua agenda política e econômica.
A construção de uma alternativa já está em curso e o cenário eleitoral de 2020 prova isso. Após anos de ataques e calúnias contra o PSOL, ocupamos cada vez mais espaços e avançamos no tabuleiro político com um projeto radical e coerente. Defendemos fazer o necessário para derrotar Bolsonaro, mas defendemos também que a esquerda levante seu programa de emergência, tática inclusive favorecida pelo sistema eleitoral de dois turnos.
A posição de Juarez Guimarães hoje se apresenta como solução para os problemas políticos brasileiros, na verdade é parte responsável da realidade que vivemos hoje. Desde 2003, foram muitas traições que não podem ser apagadas, e podemos citar a reforma da previdência de Lula, a alianças com oligarquias locais em diversos estados, as grandes obras que beneficiaram empreiteiras e atacaram populações locais como Belo Monte, a política econômica defensora dos bancos e do rentismo, entre tantas outras.
Estas traições desmoralizaram a esquerda brasileira e ajudaram a nos colocar na difícil situação que vivemos hoje. Recuperar uma audiência de massas para as ideias socialistas passa necessariamente pela unidade contra a extrema-direita, mas também passa necessariamente pela afirmação de uma alternativa que não repita os enormes erros do nosso passado recente.
Juarez Guimarães sabe que nos encontraremos muitas vezes. Felizmente, e juntos, poderemos lutar e com as bandeiras erguidas. Mas a política principista exige dizer as coisas como são. Chamar as coisas pelo nome, como nos ensinou um velho camarada, que mesmo assassinato há 80 anos, segue sendo parte do nosso legado político.
O PSOL, que completa 15 anos de seu registro legal (em junho fizemos 16 anos de nossa fundação), atravessou o teste da independência política do governo social-liberal do PT, a oposição sem tréguas a Temer e agora empurramos com força para derrotar Bolsonaro e construir uma nova esquerda, tão urgente quanto necessária no Brasil. As eleições de novembro vão dizer mais sobre esse desafio.