Guernica, Argentina real

Principal acontecimento no país nos últimos dias foi o espetacular despejo da Ocupação Guernica na Província de Buenos Aires.

Israel Dutra 3 nov 2020, 18:23

O principal acontecimento na nossa vizinha Argentina, nos últimos dias, foi o espetacular despejo da Ocupação Guernica, que reunia centenas de famílias sem-teto, na Província de Buenos Aires; foram utilizados um efetivo de 4 mil policiais, em mais de seis horas de operação campal, resultando em dezenas de presos e feridos, por parte da resistência que as famílias ofereceram ao despejo.

Tal qual o famoso quadro de Picasso, o nome ‘Guernica’ enseja combatividade, numa situação extrema, de pobreza e precarização das relações sociais. Rodeada de solidariedade pela esquerda combativa, o que chegou a suscitar calúnias de que os sem-teto seriam “manipulados pela ultra”. A repressão foi encabeçada por Sergio Berni, autorizada pelo governador da Província, Axel Kiciliof

Quem é Sergio Berni? Ele é o chefe da repressão “K”. Foi figura de confiança de Nestor Kichner, sendo secretário de segurança do governo nacional de Cristina Fernandez Kichner, tendo uma extensa ficha nos serviços de inteligência, com desconfianças de que era parte das bandas ligadas à direita militar, como os que se alçaram no movimento golpista “Carapintadas”. Agora retornou a ser o homem de confiança do governo nacional pelas mãos de Alberto Fernandez e Kiciliof.

Mesmo que pareça algo secundário, a verdade é que é importante debater o ocorrido em Guernica, não apenas um desocupação brutal. Ainda que estejamos acostumados a ver dezenas de ações de despejo das forças repressivas por governantes comprometidos com interesses das elites em conluio com os da especulação imobiliária, a Guernica argentina impacta toda uma discussão continental. Duas questões se sucedem: em tempos de viragem contra as assonadas golpistas da extrema- direita na região, qual caminho a seguir? E qual o papel de alguns governos que setores de esquerda consideram parte do dito “progressismo” ?

Acabamos de sair de dois triunfos populares estratégicos: a vitória do MAS na Bolívia, liquidando o anterior golpe de Estado e a aprovação multitudinária do processo constituinte no Chile. Em breve saberemos o que se passa nas eleições dos Estados Unidos. Mesmo em tempos de congelamento da pandemia, a movida das cordilheiras acaba tendo efeitos sobre o conjunto como se nota no Equador, na Colômbia e na Costa Rica. Os ventos se espalham. Além do maior ativismo social, há um debate político. Será que as direções mais jovens, como as que desbordaram em El Alto e impuseram as mobilizações no Chile vão aceitar ser parte de um campo estratégico com o dito ‘progressismo’? Será que o governo de Fernandez é parte desse campo, articulando o chamado “Grupo de Puebla” em contraposição ao reacionário “Grupo de Lima”?

A Argentina fez uma experiência trágica com o neoliberalismo na sua versão Macri. O governo, eleito na esteira da crítica ao ciclo anterior, confundindo aspirações justas da luta anticorrupção, com uma instrumentalização brutal a serviço da elite e da classe média que girou à direita, foi marcado por conflitos sociais e uma piora nas condições gerais de vida da população.  Como expressão opositora a esse rechaço, a fórmula de unidade entre os dois setores peronistas, o grupo ligado a Alberto Fernandez e o Kichenerismo de Cristina,  ganhou a eleição, já no primeiro turno.  Alberto é considerado mais moderado e mais pro-mercado que o legado que Cristina representa, sendo indicada vice como modelo de que “aceita” as regras do jogo, diante da pressão do capital financeiro e das grandes empresas de mineração, petróleo e cereais. Como é esperado, a vitória de Alberto gerou muitas expectativas e ilusões, de construir um novo “acordo nacional” que tenha uma inclinação para a política social, depois da devastação que foi Mauricio Macri. Mesmo entre setores de esquerda essa ilusão foi creditada como um “mal-menor”.

O envolvimento direto numa repressão tão forte, que opôs o governo nacional, a mídia e todo patronato a resistência popular, apoiada pela esquerda combativa, foi um cartão postal do que está passando a Argentina. Depois de se apresentar como “exemplar” na primeira fase da pandemia, agora o Governo enfrenta o desgaste de um surto mais intenso. A crise econômica bate a porta, com a pobreza presente em todos os bairros e vilas do país, chegando a fome em algumas comunidades. O dólar dispara. A ilusão da narrativa ‘democrática-popular’ começa a ser desfeita. A gestão capitalista de negócios dos grandes empresários só pode significar mais ajuste. E quem paga a conta é a maioria social. A crise de Guernica é um ponto de viragem na conjuntura.

De outra parte, a oposição de direita segue sua agitação para capitalizar o rápido desgaste do governo: protestos vem sendo convocados pela classe média reacionária, extremamente numerosa nas grandes cidades do país, que está ainda à direita, numa posição intermediária entre o que foi Macri e as posições mais de ultra-direita, que ao contrário do Brasil de Bolsonaro, ainda não se desenvolveram plenamente.

A esquerda social tem presença no meio sindical e parlamentar. Há um acumulo importante, em diversos partidos e organizações, reconhecidas pela vanguarda e com audiência em setores de massas; no caso da ocupação Guernica, há que assinalar um amadurecimento de alguns setores, antes críticos ao movimento piqueteiro, por um desvio academicista, que agora se lançam para apoiar os sem-teto.  Isso é um saldo importante dessa jornada, até porque novas ocupações urbanas e rurais devem ter lugar no país, como fruto do efeito exemplo da luta por moradia.
Aliás, vale dizer que o movimento piqueteiro, expressão argentina do que conhecemos como “Movimento popular” é muito forte e organizada. Tiveram muitas conquistas, fruto do protagonismo que ganharam na grande rebelião do Argentinazo, em 2001.

Na última vez que estive na Argentina, quando da aprovação da “Lei de emergência alimentar” presenciei um protesto de 70 mil “piqueteiros”, com influência da esquerda radical e com consciência de classe e métodos organizativos sólidos. Esse base social será fundamental para defender o empobrecimento veloz que a Argentina começa a experimentar, mesmo sob o governo Fernandez.

Cabe, além de rodear de solidariedade os movimentos populares do país vizinho, ampliar o debate entre os novos sujeitos políticos e sociais emergentes na América do Sul, um duro balanço do que foram as experiências do ciclo anterior, sobretudo as duas que tiveram o papel mais regressivo, o Kichenerismo na Argentina e o PT no Brasil.

Esse é o caminho para não repetir erros do passado e sair do circulo de ferro do capitalismo dependente que é o responsável pela verdadeira catástrofe que ameaça os povos de nossa terra.


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Pedro Micussi