Você sabe o que é capacitismo?
É dever de toda sociedade combater atitudes capacitistas que ferem a vida humana e a dignidade das pessoas com deficiência.
Segundo Andrade (2015), capacitismo se configura como uma lógica que lê a pessoa com deficiência como não igual, incapaz e inapta tanto para o trabalho, quanto para cuidar da própria vida e tomar as próprias decisões enquanto um sujeito autônomo e independente. Nesse sentido, o capacitismo se traduz em toda e qualquer forma de preconceito e discriminação que põe em xeque a capacidade da pessoa, em razão de sua deficiência.
O autor salienta ainda que o capacitismo se manifesta nas esferas sociais, públicas e privadas, negando a estes sujeitos possibilidades de participação em políticas de saúde, acessibilidade, educação, cultura e lazer. Tudo isto se deve ao fato de que, historicamente, disseminou-se um ideal de corpo funcional tido como “normal” para a raça humana, conceito ao qual Mello (2014) denomina corponormatividade. Portanto, quem não se enquadra nesses padrões é considerado menos humano.
Nesta lógica, a pessoa com deficiência é caracterizada como um sujeito impossibilitado de realizar sozinho as mais simples atividades cotidianas, ou ainda, está subjugada à decisão de outros acerca de sua vida e de suas escolhas pessoais, o que, para pessoas cegas, por exemplo, materializa-se por meio de situações recorrentes que as levam a ser tomadas pela mão resultando em travessias em vias públicas sem seu consentimento.
Nesta perspectiva, a pessoa com deficiência é compreendida como um ser que habita um corpo não saudável, crença infundada, que tem suas raízes em processos históricos de extermínio, isolamento e segregação, ou seja, aqueles indivíduos considerados fisicamente incapazes são separados do corpo social funcional. Aqui nos localizamos no viés biomédico, o qual concebe a deficiência como um problema de saúde, necessitando, desta forma, de cuidados, de tratamento, ou mesmo, de ser curada de sua “enfermidade”.
Apesar de não fazer menção ao termo capacitismo, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015), estabelece em seu art.4°, que toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação em razão de sua condição. O art. 4º, §1º, da LBI, considera discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. A LBI é fundamentada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, que foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, com status de emenda constitucional, conforme previsto no art. 5º, 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
É certo que, em decorrência das recomendações internacionais e da adoção de políticas públicas locais, muitos foram os avanços no que tange ao debate acerca da inclusão das pessoas com deficiência. Contudo, tais avanços não são suficientes para impedir a manifestação de atitudes capacitistas, as quais se dão, em muitos casos, pela falta de informação, orientação, pelo pouco convívio com pessoas com deficiência ou ainda pelo preconceito para com este grupo social e culturalmente invisibilizado.
A seguir, uma pequena amostra de situações que revelam como o termo capacitismo, que ainda é tão desconhecido, se reflete na vida e nas relações sociais experienciadas por pessoas com deficiência visual:
- A concepção da deficiência como condição que limita o ser humano em sua totalidade, razão pela qual, qualquer conquista, ou atitude emancipatória adotada por pessoas é considerada como um ato de superação;
- Em determinados grupos sociais, a presença de pessoas com deficiência é tão rechaçada que se tornou recorrente a interlocução somente com as pessoas sem deficiência, sendo desnecessário cumprimentá-las, afinal, “elas sequer reconhecem nossa presença”;
- Em restaurantes, bares, lojas, é frequente que atendentes dirijam-se aos acompanhantes das pessoas com deficiência nos considerando incapazes de fazer as próprias escolhas;
- Discursos e atitudes sensacionalistas por parte de diversos veículos midiáticos que supervalorizam a condição da deficiência em detrimento da real capacidade e potencial dessas pessoas;
- Negação da ideia de que homens e mulheres com deficiência podem construir/gerir uma família e que eles deverão ser gratos quando cônjuges sem deficiência tomam a decisão de estabelecer relação comprometendo-se a zelar por seu cuidado;
- Questionamento acerca das possibilidades de sucesso e de felicidade de pessoas com deficiência em meio a tantos problemas e obstáculos resultantes desta condição;
- Infantilização da pessoa com deficiência, bem como uso abusivo de expressões no diminutivo a exemplo de: rostinho, bonitinho, dentre outras;
- Dificuldades em estabelecer contatos mais próximos com pessoas com deficiência cuja condição é, por vezes, concebida como doença, podendo, portanto, ser tratada ou curada;
- Rotulação de pessoas com deficiência como especiais, colocando em xeque sua capacidade de estudar, trabalhar, tomar decisões ou realizar com êxito as atividades cotidianas, das mais simples às mais complexas;
- Heroicização das pessoas com deficiência que, quando comparadas com as demais, são colocadas em posições superiores, já que seu desempenho se sobrepõe.
É dever de toda sociedade combater estas e tantas outras atitudes capacitistas que, ao longo da história, ferem a vida humana e, particularmente, a dignidade das pessoas com deficiência.
Para saber mais:
ANDRADE, S. Capacitismo: o que é, onde vive, como se reproduz? As gordas. 2015.Disponível em:<https://asgordas.wordpress.com/2015/12/03/capacitismo-o-que-e-onde-vive-como-se-reproduz/> Acesso em: 13 nov. 2017.
FARIAS, Adenize Queiroz de. Trajetórias Educacionais de Mulheres: uma leitura interseccional da deficiência. 2017. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pos-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
MELLO, A. G. de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC.Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.
______. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, narrativas e observações sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestre em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
PEREIRA, A. M. B. A. Viagem ao interior da sombra: deficiência, doença crónica e invisibilidade numa sociedade capacitista. 2008. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Mestrado e Doutoramento “Pós-Colonialismos e Cidadania Global”, Faculdade de Economia, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009