Defender a cultura como trabalho, defender a cultura como direito
No programa que queremos apresentar ao País a cultura não é um detalhe decorativo.
A Câmara Federal aprovou nesta quarta-feira (21) o PL 795/21, que regulamenta a Lei Aldir Blanc, autorizando prorrogação dos prazos para execução de projetos, prestação de contas e também permitindo mais tempo para utilização dos recursos remanescentes dessa Lei de Emergência Cultural. Essa é uma vitória importante para trabalhadores da cultura em todo o país, já que dos R$ 3 bilhões destinados à iniciativas de auxílio emergencial para o setor, sobraram quase R$ 800 milhões nas mãos de estados e municípios. Tinha demanda, mas sobrou dinheiro porque os prazos iniciais foram insuficientes para que a estrutura desse conta da sua execução total. Por isso era tão urgente a regulamentação, com as prorrogações de prazo, evitando o risco de que o valor que restou voltasse para a União. Com mais tempo para a cultura, vai ser possível garantir que esse recurso chegue à ponta, até artistas e espaços culturais que precisam de socorro para sobreviver. Aqui, eu queria falar sobre essa vitória, sobre outras que ela abarca e sobre futuro, porque é preciso.
Mas antes, gostaria de voltar um pouco no tempo. No começo de 2016, um espetáculo de teatro meu com temática LGBT sofreu forte ataque e tentativa de censura por parte de setores conservadores e fundamentalistas no Ceará. Foi a peça Histórias Compartilhadas, do Outro Grupo de Teatro. Recebi moções de repúdio de casas legislativas, ameaças à minha integridade física e até tentativa despropositada de judicialização da obra. Era ano de eleição municipal e, visivelmente, figuras localizadas à extrema direita estavam buscando com quem polarizar para capitalizar no pleito. Isso não foi algo isolado, na verdade se repetiu Brasil à fora, e também fez parte da estratégia utilizada pelo bolsonarismo para chegar ao poder. A cultura e obras artísticas, principalmente as que versavam sobre direitos afirmativos de mulheres, LGBTs, povo negro e periférico, foram elencadas entre os inimigos públicos na campanha do horror que chegou à Presidência da República em 2018. E isso não é cortina de fumaça, faz parte do projeto.
Já era de se esperar que, sob Bolsonaro, o desmantelamento das políticas públicas para a cultura atingissem patamares alarmantes e isso se deu por ação direta de agentes ideológicos que aparelharam as instâncias, perseguindo artistas e censurando trabalhos. Mas se deu também pela negligência, pela instalação de uma inercia e paralisia na estrutura, colocando em risco até mesmo a continuidade de iniciativas consolidadas ao longo das últimas décadas. Já com a pandemia provocando a crise econômica severa que se abateu sobre todos nós, o Congresso Nacional aprova a política de Auxílio Emergencial, mas Bolsonaro veta que profissionais das artes sejam incluídos como público dessa medida, porque para ele o nosso ofício não é trabalho. Mas é. E dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, de 2018, sinalizam o tamanho dessa força de trabalho. São mais de cinco milhões de pessoas empregadas formal ou informalmente no setor cultural, o que representa cerca de 6% do total de brasileiros trabalhando.
A aprovação da Lei Aldir Blanc e, agora, também do PL que prorroga os seus prazos reconhece isso: é trabalho, envolve muita gente e precisa de medida específica de socorro, urgente, é o setor que parou imediatamente com o início das medidas de restrição e, provavelmente, será o último a retomar quando isso for possível. Se uma das bases de ataque de Bolsonaro às artes e aos artistas está na falácia de que é desperdício de dinheiro público destinar orçamento para a área, também podemos vislumbrar uma vitória sobre isso, já que tanto na Câmara quanto no Senado as aprovações da matéria foram quase que por unanimidade. Por meio da Aldir Blanc foi garantido auxílio emergencial para artistas, no mesmo formato que as demais categorias de trabalhadores acessaram, os R$ 600,00 em três parcelas. Foi viabilizado socorro para espaços de cultura não fecharem suas portas. E também financiamento para elaboração e circulação de obras em ambiente virtual.
Mas as dificuldades de subsistência enfrentadas por trabalhadores da cultura são anteriores à pandemia e vão continuar depois que ela passar. Por isso, essa política de renda básica e de suporte à manutenção de espaços culturais deveria ser mantida, permanente, como política de Estado. Isso não diz respeito apenas a artistas, pelo contrário. Partindo da compreensão de que a cultura é um direito comum e não uma mercadoria, defendemos a necessidade da continuidade do trabalho desenvolvido por esses milhões de agentes, nesses milhares de espaços independentes, porque é através deles que chegam ao Brasil mais profundo ações de fruição e formação em arte e cultura. O que deveria ser assegurando pela União, pelos estados e pelos municípios já que é um direito constitucional. No programa que nós, a esquerda socialista, queremos apresentar para o País e através do qual queremos disputar os corações e as mentes a cultura não é um detalhe decorativo nem algo a que só tem acesso quem pode pagar.
Defender a cultura como trabalho, defender a cultura como direito e manter isso percutindo forte como tambor, junto ao som dos passos de uma multidão que avança com seus gritos e com seus cantos, com seus versos e com suas danças, encontrando brechas por onde continuar imaginando um futuro possível, desejando firmemente a superação de tudo isso que ai está atravancando o nosso caminho, até a vitória.