Em Porto Alegre, o #12M pela educação
Neste texto jornalístico, Bruna Porciúncula fala sobre a luta travada pelos estudantes da UFRGS contra os cortes na educação, que culminou em uma brutal repressão durante a visita do Ministro Milton Ribeiro em Porto Alegre.
Com a crise na saúde dominando as atenções, a visita do ministro da Educação, Milton Ribeiro, a Porto Alegre passaria assim, sem grandes investimentos, para não se perder o trocadilho com a realidade da pasta que o pastor presbiteriano, ex-vice-reitor da Universidade Mackenzie, assumiu em meados de 2020. Ribeiro é o quarto ministro da Educação de Bolsonaro. Não se expõe a polêmicas, tampouco se arrisca a remar contra no mar de descaso e sucateamento a que o governo mergulhou o ensino público federal, e evita exposições além do necessário. Talvez por isso, a passagem dele por solo gaúcho tenha pego de surpresa um pequeno grupo de estudantes do DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre eles, três alunos que acabariam presos por protestarem cara a cara com a comitiva ministerial.
Na manhã de 12 de maio, o diretório dos estudantes da UFRGS abriu em um regime de plantão para ajudar os universitários com os Cartões TRI, os bilhetes eletrônicos utilizados no transporte coletivo de Porto Alegre. Gustavo Cirello, 20 anos, e Daniel Oliveira, 21, estavam nessa tarefa, quando receberam a ligação de uma colega informando que o ministro faria agenda na Capital, depois de visitar a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na região central do Rio Grande do Sul.
A partir dali, o plantão dos guris ganhou outro sentido. Às pressas, improvisaram faixas e cartazes com palavras de ordem e tentaram mobilizar o máximo de integrantes do Coletivo Juntos, do qual fazem parte, para construir um ato simbólico contra os cortes no orçamento das universidades, guilhotinado pelo governo Bolsonaro em quase 40% só no que diz respeito às despesas discricionárias, aquelas que envolvem custos com água, luz, bolsas de estudo e auxílio estudantil, por exemplo. O momento político e a oportunidade de tornar essa ação simbólica combustível para mobilizações maiores não poderiam ser desperdiçados.
Gustavo, Daniel e outro colega almoçaram no DCE mesmo, um cardápio rápido como pedia a ocasião: xis e coca-cola dois litros. Dali, partiriam para a prefeitura de Porto Alegre, onde encontrariam Júlio Câmara, 28 anos, militante do Juntos e tesoureiro do DCE, e outros colegas de universidade. As informações davam conta de que Milton Ribeiro se encontraria ali com o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Mas era uma quarta-feira de rotas alteradas. O ministro, em vez de ir ao Paço Municipal, como é chamada a sede do governo da capital gaúcha, resolveu participar de um programa na Rádio Guaíba, emissora tradicional do Rio Grande do Sul vendida ao Grupo Record, da Igreja Universal, em 2007. Os estudantes só ficaram sabendo disso em frente à prefeitura e, inclusive, foram eles que alertaram a equipe de reportagem da TV Record sobre a alteração nos planos do ministro. A sede da rádio fica a poucos metros da prefeitura. Então, os estudantes, àquela altura um grupo de oito pessoas, cortaram a Praça da Alfândega e chegaram à Rua Caldas Junior com a intenção de aguardar a saída do ministro dos estúdios. Na calçada estreita em frente ao prédio histórico do Correio do Povo, o pequeno protesto topou com a comitiva. Não era um dia previsível.
Ah, esses guris mal educados
Surpreendidos pelo séquito que acompanhava Milton Ribeiro, os estudantes correram para encontrá-lo e deixarem visíveis as faixas e os cartazes. As lições dos estudantes ao ministro não eram confortáveis, talvez por isso a velocidade com que a comitiva virou a esquina foi mantida até a porta de acesso à rádio. O ministro não pediu passagem. Passou por cima do protesto e deixou para trás uma aula de repressão com ajuda da Guarda Municipal, que distribuiu gás de pimenta e tiros de efeito moral como se estivesse em luta campal contra um exército inimigo. Gustavo Cirello, o estudante de Relações Públicas que vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, conseguiu acessar a recepção do prédio da rádio, numa tentativa de escapar das agressões e registrar a violência contra os colegas. Uma das manifestantes teve de ser levada ao hospital por conta do jato de gás de pimenta que recebeu nos olhos. Gustavo ainda tentou se passar por estagiário da empresa, mas foi arrancado do prédio por um guarda municipal. Mesmo sem resistir, o garoto, filho de uma doméstica e egresso de um cursinho popular, foi parar no camburão da polícia, depois de inalar muito gás de pimenta e ser algemado na calçada. O “luxo” da violência empregada sobre o grupo de estudantes está registrado em meia dúzia de vídeos que os próprios manifestantes conseguiram gravar.
– Eu estava de máscara, então, quando me jogaram o spray de pimenta, eu não conseguia respirar. Como eu estava algemado, não dava para limpar o rosto. Salvei o vídeo com os olhos fechados.
Parte dessa cena, Júlio Câmara, estudante de Jornalismo em reta final de curso, presenciou do meio da rua. É ele quem grita aos guardas municipais que o protesto havia terminado, como se previsse que a truculência buscaria guarida no discurso de que os estudantes insurretos deram início à violência. Como resposta, mais balas de borracha e uma detenção que o levaria a fazer companhia a Gustavo na viatura policial até o Palácio da Polícia. Júlio é neto do lendário cantor e compositor Lupicínio Rodrigues, o inventor da dor de cotovelo e autor do hino do Grêmio. Não herdou do avô o dom musical, mas recrudesceu o envolvimento tímido da família na política, algo que não ia além de uma simpatia pelo trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Entrou cedo para o movimento estudantil e milita há 10 anos no Movimento Esquerda Socialista (MES) do PSOL. Como secundarista, foi vice-presidente do grêmio estudantil do Colégio Parobé, uma das principais instituições públicas de ensino de Porto Alegre, e protagonizou a ocupação, em 2011, da escola Infante Dom Henrique, em um protesto para que a direção cedesse uma sala ao grêmio estudantil, instalado em uma barraca improvisada pelos alunos no pátio do colégio, no bairro Menino Deus.
No caminho para o Palácio da Polícia, Júlio viu o amigo em apuros pela reação ao gás de pimenta. Gustavo respirava com dificuldade e tinha um edema nos olhos provocado pela substância, ainda assim, conseguiu fôlego para cumprimentar o amigo. Júlio estava de aniversário. Para quem gosta de luta, a festa estava só começando.
O negão é o pior
Enquanto Gustavo e Júlio eram levados ao Palácio da Polícia, os outros estudantes se mobilizavam para acompanhá-los. Daniel Oliveira, estudante de História, já tinha certa experiência em protestos. Em 2016, havia participado das ocupações de secundaristas nas escolas estaduais, uma mobilização por melhorias nas escolas e contra projetos na linha Escola Sem Partido. Num dos atos, foi apreendido e levado ao Departamento Estadual da Criança e do Adolescente. Era menor de idade. O receio dessa vez era de que os amigos presos fossem levados para “dar uma banda”, o método policial de aumentar propositalmente o trajeto entre o lugar da detenção e a delegacia para causar desgaste emocional em quem está na viatura.
– Como a repressão estava desproporcional e a polícia tem um histórico de fazer isso, a gente só queria ter a certeza de que eles iriam direto para o Palácio da Polícia. Chegamos juntos lá – conta Daniel.
O ato simbólico diante do ministro Milton Ribeiro parecia já ter sua contabilidade: 8 manifestantes “violentos”, entre eles uma estudante ferida e dois presos. Para a polícia, a conta ainda não estava fechada. Na sala de custódia, Julio e Gustavo foram reconhecidos como agressores por uma pessoa da qual não sabem nem o nome.
Um guarda apontou a câmera de um celular para o rosto dos estudantes, que ouviram a acusação proferida por um homem anônimo e sem rosto. Foi com o mesma ferramenta “virtual e instantânea” de reconhecimento que Daniel também acabou preso enquanto esperava a definição da situação dos amigos na recepção do Palácio da Polícia.
– O guarda apontou o celular para mim e perguntou para quem assistia do outro lado: e esse, fez o que? “Esse me deu um chute”. Essa pessoa já saiu me imputando algo – relembra.
Daniel é um rapaz negro. Só encontra no racismo a explicação para ter sido algemado mesmo estando sentado na recepção do plantão policial, sem expressar qualquer resistência. Foi levado para a mesma sala – ou cela – onde Júlio e Gustavo já dividiam espaço com outros dois homens, presos naquela mesma tarde por assalto. Daniel ainda ouviu de um policial a frase que reforçava suas suspeitas: o negão é o pior deles!
A tarde já se aproximava da noite em Porto Alegre quando os três jovens fizeram exames de corpo de delito. No Palácio da Polícia, o advogado Ernani Juliatti, acionado pelo Coletivo Juntos, o vereador Roberto Robaina (PSOL), Bernanrdo Corrêa, dirigente do PSOL e Gabrielle Tolotti, ex-coordenadora do Juntos e assessora da deputada estadual Luciana Genro (PSOL) acompanhavam os procedimentos para tentar liberar os estudantes. A presença dessas pessoas mudou o tom dos guardas municipais. Daniel sentiu que a hostilidade dava espaço ao receio de que ficaria claro o exagero na repressão a um ato simbólico de oito estudantes.
Até os dois supostos assaltantes notaram que o acesso do advogado dos jovens e das ouras pessoas que os acompanhavam havia ficado mais fácil. Um deles estava prestes a voltar para a cadeia, então, sabia que a custódia que nomina essas salas às vezes é uma ironia ao que de fato ocorre nelas.
Confronto de narrativas
Gustavo, Julio e Daniel foram liberados no começo da noite, quando parte dos noticiários, os mesmos que quase ignoraram a visita do ministro, disparava a narrativa vendida pela comitiva e a Guarda Municipal de que os estudantes haviam começado a violência. Os vídeos gravados pelos manifestantes serviram para mostrar o tratamento da comitiva ao protesto e a força com que a Guarda Municipal o reprimiu. As imagens garantiram que a versão dos estudantes fosse contemplada nas reportagens, demonstrando que a educação e a luta por qualidade no ensino são tratadas pelo governo como suas inimigas.
Depois de deixarem o Palácio da Polícia, os três universitários comemoraram a amplitude que o protesto simbólico acabou ganhando. Era um recado dado a Bolsonaro com o bônus de registrar o caráter violento de seu governo e daqueles que o apóiam. Neste sábado, 29 de maio, os oito de Porto Alegre se transformarão em milhões nas ruas. Os guris estão prontos.