Assimilação estrutural stalinista das periferias do leste europeu
5ª parte da série “Operários e Burocratas”.
Antes dos partidos comunistas assumirem o poder estatal na Europa Oriental, que, devido à divisão do mundo entre as potências vencedoras da guerra, se situava na “zona de influência” soviética, eles passaram pela primeira de uma série de mutações políticas sucessivas, quebrando sua própria continuidade política. Isto era necessário para transformar estes partidos operários em partidos da burocracia no poder. No caso extremo da Polônia, a ruptura ocorreu muito cedo e de forma radical, antes mesmo da guerra. No final dos anos 30, a direção da Internacional Comunista dissolveu, por ordem de Stalin, o Partido Comunista Polonês (KPP), e seus muitos quadros exilados na URSS foram quase todos exterminados. O novo Partido Operário Poloneses (PPR), criado no início de 1942, foi uma profunda descontinuidade em relação ao antigo KPP. Este não era o caso dos partidos comunistas dos outros países pertencentes à “ zona de influência ” soviética[1]. Os processos de quebra de continuidade ali foram escalonados, graduais e, embora não difíceis de demonstrar analiticamente, mascarados com sucesso.
No período entre as duas guerras, a estalinização desigual e incompleta do movimento comunista fora da URSS, combinada com sua crescente subordinação ao aparato estatal soviético, ainda não havia erradicado completamente seu internacionalismo. Pouco antes do início da guerra germano-soviética, Stalin ordenou um novo rumo para o movimento. Georgi Dmitrov, Secretário Geral do Komintern, registrou em seu diário a seguinte mensagem de seu chefe soviético, transmitida a ele e a seus associados por Andrei Zhdanov: “Será necessário desenvolver a ideia da combinação de um nacionalismo genuíno e bem compreendido com o internacionalismo proletário. Nos diversos países, o internacionalismo proletário deve estar enraizado em tal nacionalismo. (O camarada Stalin explicou que não pode haver contradição entre nacionalismo, devidamente entendido, e internacionalismo proletário. Um cosmopolitismo sem raízes que nega o sentimento nacional e o conceito de pátria não tem nada a ver com o internacionalismo proletário. Tal cosmopolitismo abre o caminho para o recrutamento de espiões, agentes inimigos)” [2].
Durante a guerra, portanto, todos os partidos comunistas que operavam na futura “ zona de influência ” soviética sofreram uma mutação que consistia em “enraizar definitivamente o internacionalismo” – o que passou a significar uma subordinação absoluta aos interesses estatais da URSS – em um “nacionalismo genuíno e bem compreendido“. O estalinismo, ao instilar nestes partidos um nacionalismo contrário a sua natureza, os submeteu a uma “modificação genética”. Após a guerra, a derrubada do capitalismo nos países da Europa Central e Oriental resultou da necessidade de ajuste estrutural e assimilação dos sistemas políticos e socioeconômicos desses países ao sistema soviético. Assim, a derrubada do capitalismo não se deu através de revoluções – Moscou as havia inexoravelmente descartadas.
Os partidos comunistas não foram levados ao poder por movimentos de massa. Estes partidos não procuraram fazê-lo, mesmo onde o sentimento anticapitalista popular era generalizado. Se os conselhos de empresa estabeleciam o controle operário nas empresas e aspiravam a gerenciá-las, os comunistas stalinistas rapidamente acabavam com eles. Em vez disso, eles procuravam penetrar no aparato estatal, começando, na medida do possível, com o aparato de segurança (polícia política secreta). Eles tomaram o poder sob o disfarce ou à sombra do exército soviético, serviços especiais e outros aparelhos do Estado soviético. Em alguns países isso aconteceu rapidamente, em outros levou vários anos, dependendo de muitos fatores: correlação internas de força e possíveis combinações políticas, considerações internacionais na política soviética, a importância estratégica primária, secundária ou terciária de um determinado país para o Kremlin etc. As novas autoridades decretaram a expropriação do capital e das classes proprietárias em geral através da nacionalização generalizada da economia e da reforma agrária [3]. Os partidos comunistas “geneticamente modificados” legitimaram seu monopólio de poder gradualmente estabelecido através do nacionalismo. O nacionalismo se materializou na limpeza étnica, na opressão das minorias nacionais e sua assimilação forçada, assim como na reprodução dos modelos políticos, ideológicos e culturais do estado uninacional desenvolvidos no período entre as guerras pelos regimes e movimentos de direita radical. Antes da “modificação genética“, estes partidos não tinham seus próprios modelos nacionalistas, então os tomavam emprestados daqueles que tinham [4].
O caráter de satélite desses partidos também se devia ao fato de serem minorias não apenas nas sociedades, mas até mesmo nos movimentos operários de seus países. Entretanto, uma vez integrados aos aparatos estatais, e especialmente quando tomaram o poder, viram aumentar fenomenalmente o número de membros e se tornaram instantaneamente partidos de massa. Nos locais de trabalho, “os funcionários foram forçados a se filiar ao partido contando pra isso com ampla participação dos departamentos de pessoal e outras pressões administrativas” [5]. De acordo com a historiografia do período da Polônia Popular, até julho de 1944, ou seja, ainda sob a ocupação alemã, o número de membros do PPR era de 20.000. Em janeiro de 1945, as fileiras do partido contavam oficialmente apenas 30.000, mas em fevereiro, o PPR já contava com 176.000 membros, e em abril de 302.000. Este crescimento, seja real ou apenas no papel, causou à direção do partido seja ansiedade, seja um reflexo de bom senso, de modo que após uma “verificação” o número de membros foi reduzido para 189.000 até julho. Até meados de 1948, segundo dados do partido, as fileiras do PPR aumentaram novamente em relação a julho de 1944, até 50 vezes; entretanto, a grande maioria dos membros formais não pagavam quotização [6].
As pesquisas de Jędrzej Chumiński mostram que os operários membros do PPR – ao contrário dos operários do Partido socialista – constituíam nas fábricas o setor dos assalariados menos instruídos e menos experientes [7]. Sua filiação ao PPR “foi o resultado de uma intensificação significativa das atitudes conformista-oportunistas e de um alto nível de autoritarismo” e, portanto, também o resultado de uma tendência a se submeter a “um estado não democrático no qual todas as esferas da vida social estavam subordinadas à burocracia centralizada do partido“. A falta de cultura política entre a massa de membros do partido foi uma das principais razões para a “influência relativamente fraca do Partido Comunista nos meios operários” [8]. Isto foi visível durante as grandes greves das trabalhadoras têxteis em Łódź em 1947 e Żyrardów em 1951. Em ambos os casos, “se uma operária com experiência [adquirida antes da guerra] de métodos de resistência e conhecimento da tradição da greve desligava sua máquina, o resto a seguia” [9], independentemente da filiação partidária.
Nas outras sociedades deste bloco emergente, os partidos de massa stalinistas se formaram de maneira igualmente milagrosa. Em proporção à população do país, diz-se que o Partido Comunista Tchecoslovaco se tornou o maior partido comunista do mundo nos anos do pós-guerra. Legal, massiço e parlamentar antes da guerra, agora devia seu enorme apoio popular principalmente a dois fatores. Por um lado, foi a radicalização anticapitalista do proletariado nas grandes indústrias (que não foi alterada pelo fato de que o PCT paralisou vigorosamente o movimento de autogestão dos conselhos de empresa). Por outro lado, foi o papel desempenhado por este partido após a guerra na campanha chauvinista de limpeza étnica generalizada, contra as minorias alemã e húngara. Ambas as minorias foram expulsas com a participação dominante dos comunistas [10].
Como em outros países da Europa Oriental, na Tchecoslováquia a limpeza étnica foi, além da assimilação estrutural, uma das bases para a construção de um estado satélite, neste caso não uni- mas bi-nacional. Os comunistas tchecoslovacos já estavam firmemente estabelecidos nos principais aparelhos de estado, especialmente no aparelho de segurança pública, quando a coalizão governamental nacionalista à qual pertenciam entrou em colapso em fevereiro de 1948. Nestas circunstâncias, eles encenaram um golpe de Estado apoiado por uma greve geral altamente simbólica – com duração de apenas uma hora – e assumiram todo o poder. Eles mesmos nunca chamaram este golpe de revolução. Jon Bloomfield, usando o conceito desenvolvido por Antonio Gramsci – ou pelo menos o termo cunhado por ele – chamou o golpe na Tchecoslováquia de “revolução passiva”, observando que seu impulso “veio de cima e do exterior, com enormes implicações” [11]. Tratando-se de uma “revolução passiva”, fica imediatamente claro qual era a principal diferença entre ela e uma “revolução ativa” como a iugoslava: o fato de que, ao contrário desta última, era estruturalmente assimilável pelo regime estalinista.
Na Europa ocupada pela Alemanha, os comunistas iugoslavos foram os únicos a não adotar a linha de “resistência antifascista” imposta por Moscou, mas a travar uma guerra revolucionária, e o poderoso Exército Popular de Libertação que formaram libertou o país essencialmente por seus próprios meios. Eles rejeitaram a divisão de influência na Iugoslávia acordada por Winston Churchill e Stalin – tratava-se de uma divisão “meio a meio” [12]. Após a ruptura com Stalin em 1948, Josip Broz Tito declarou que desde o Pacto Molotov-Ribbentrop, e especialmente desde a conferência dos “Três Grandes” em Teerã, a União Soviética vinha participando de “um acordo sobre a divisão de zonas de influência- um acordo imperialista” e “seguindo conscientemente o antigo caminho czarista do expansionismo imperialista” [13].
Os comunistas iugoslavos entenderam bem por que o Kremlin estava travando uma guerra ideológica incrivelmente agressiva contra eles, projetada para esmagar sua revolução. “É bem conhecido que a Segunda Guerra Mundial criou condições extremamente favoráveis para que qualquer partido comunista organizasse uma luta revolucionária“, escreveu Svetozar Vukmanović-Tempo, um dos principais líderes comunistas iugoslavos, ao explicar por que Stalin levou à derrota da revolução na Grécia. Essas condições, ele observou, foram perdidas porque “para executar sua política hegemônica, a liderança soviética era resolutamente hostil aos movimentos e lutas revolucionárias em qualquer país sobre o qual não tivesse assegurado o controle (seja por causa da distância geográfica, ou da “falta de confiabilidade” da direção local, ou por qualquer outro motivo) ou que se tornasse objeto de barganha com os imperialistas (conduzida com base na divisão das zonas de influência). Por isso, quando as hostilidades da Segunda Guerra Mundial terminaram, ordenou que os comunistas franceses e italianos desarmassem o povo, dissolvessem todos os comitês populares que haviam sido formados durante a guerra como órgãos potenciais e até mesmo parcialmente reais de um regime revolucionário, participassem de coalizões burguesas (o que na realidade significava liquidar todos os avanços da luta revolucionária e renunciar à continuação da luta), etc.”, etc. Vukmanović-Tempo explicou que os líderes do Kremlin “estavam interessados no desenvolvimento do movimento somente nos países que estavam dentro da ‘zona de influência’ da URSS e sobre os quais tinham certeza de que poderiam estender o controle do governo soviético”. Quanto aos movimentos revolucionários em outros países, na prática o governo soviético procurou impedir sua vitória” [14].
Vsevolod Holubnytchy, então um ativista radical de esquerda na diáspora ucraniana, escreveu sobre isso em 1953: “Stalin tem medo de uma revolução” que pode irromper em algum lugar na Europa ou no mundo, “porque uma verdadeira revolução, não controlada pelo exército russo e pelo MGB [Ministério de Segurança do Estado], tem 99 chances sobre 100 de tomar um caminho diferente do de Stalin, e que o estado revolucionário que emerge dela seja independente da URSS. Em outras palavras, Stalin tem medo do ‘Titismo’, especialmente como era em 1948″ [15]. Então Stalin tinha medo exatamente da mesma coisa que temia durante a Guerra Civil Espanhola e que ele então chamava de trotskismo.
Os países da Europa Oriental que faziam parte do bloco soviético foram chamados pelo Kremlin de “democracias populares”. Este termo enganoso, que não se baseia em nenhum conceito [16], foi avançado nas bases teoricamente frágeis do “marxismo transgênico” soviético, apenas para indicar que os estados periféricos do bloco oriental estavam em um nível de desenvolvimento sistêmico não especificado, mas inferior ao de seu centro soviético. Este último se apresentava como socialista e assim justificava sua superioridade e supremacia.
A pré-condição para a assimilação estrutural das “democracias populares” foi a formação da camada burocrática governante estalinista e a instalação do modo de exploração da classe trabalhadora inerente a sua dominação. Na URSS, o processo de formação da burocracia estalinista durou mais de dez anos e teve um curso catastrófico: ele só se cristalizou após o Grande Terror. Aqui, o processo deveria se desenrolar muito mais rapidamente, em um período de poucos anos, e de uma maneira diferente, sobretudo com muito menos reviravolta. O ponto de partida foi, na melhor das hipóteses, a burocracia ainda parcialmente ligada ao movimento operário (“unificado” nos primeiros anos do pós-guerra), bem como os círculos adquiridos da intelligentsia e da pequena burguesia.
A rápida construção de uma nova camada burocrática sobre esta base só foi possível através do transplante para as “democracias populares” dos modelos estalinistas de aparelhos, práticas e doutrinas de dominação desenvolvidos na URSS. Eles foram instalados e implementados sob a supervisão da burocracia soviética, inclusive, nos lugares, sob a supervisão dos ramos periféricos de seus aparelhos – significativamente, não tanto dos aparelhos ideológicos do estado, mas principalmente dos aparelhos repressivos [17]. Isto necessariamente aconteceu no decorrer de crises políticas dramáticas – mas não catastróficas – e lutas facciosas, intervenções e amplas repressões dos órgãos de segurança pública e dos serviços secretos militares – que, apesar de estar acima das direções do partido, estavam ao mesmo tempo sob forte controle soviético e cujo papel neste processo era enorme – e até mesmo tribunais políticos dignos da Vehme Sagrada [18], grandes julgamentos políticos e execuções.
Não apenas foi feita uma tentativa de colocar os operários sob tutela de acordo com o modelo estalinista, privando-os do direito à auto-organização, à greve e a qualquer forma de autoatividade, e quebrando a resistência à exploração através de legislação trabalhista repressiva e forte pressão da “massa de manobra” vinda da várias categorias de trabalho não livre [19]. Aproveitando-se do fato de que a industrialização fornecia em grande parte novos elementos operários, desprovidos de raízes de classe, a experiência soviética particularmente eficaz de seu recrutamento maciço para as fileiras da burocracia também foi utilizada. Como na URSS, isto foi crucial para a introdução de um tipo estalinista de exploração dos trabalhadores.
Em nenhum lugar foi possível obter cópias fiéis da burocracia e do modo de exploração soviética original moldados sob diferentes condições históricas. A morte de Stalin, o “caso Beria” e a “desestalinização khrushcheviana” mergulhou a burocracia em todo o bloco em uma profunda crise política. Esta crise desencadeou tendências rebeldes em alguns segmentos da burocracia periférica. Uma delas sob a forma timidamente “revisionista”, que em contato com os movimentos sociais gerou a demanda por um “socialismo com rosto humano“. A outra, paradoxalmente no terreno criado pelo estalinismo, tomou uma forma radicalmente nacionalista – foi o caso da Romênia (e também, na periferia do extremo oriente, na Coréia do Norte).
Mas a morte de Stalin e a reabilitação de suas vítimas mais recentes – os médicos do Kremlin – foram suficientes para que os protestos dos operários abalassem as relações de exploração. Em 1º de junho de 1953, levantes operários estouraram na grande cidade industrial de Pilsen, na Tchecoslováquia. Também eclodiram greves em vários outros centros industriais do país, em pelo menos 129 empresas e envolvendo pelo menos 32.000 trabalhadores [20]. Em 16 de junho, um protesto dos trabalhadores da construção civil de Berlim no Stalinallee desencadeou um movimento de greve em mais de mil empresas (meio milhão de trabalhadores participaram) e manifestações e comícios em mais de 700 cidades e vilarejos da Alemanha Oriental. Pela primeira vez na periferia do bloco, o exército foi utilizado contra os trabalhadores – neste caso, as forças de ocupação soviéticas [21].
Três anos depois, a revolta dos trabalhadores em Poznań, também pacificada pelo exército, desta vez nacional, e os acontecimentos poloneses de outubro abalaram de tal forma a periferia da Europa Oriental que a revolução húngara teve que ser reprimida pelo exército soviético para evitar o colapso do bloco. “Parece que, numa reviravolta furiosa da história, as sementes estão crescendo na forma de conselhos de estudantes, trabalhadores e soldados – como sovietes ‘anti-soviéticos’” [22] escreveu E.P. Thompson em outubro de 1956, então ainda membro do Partido Comunista, impressionado com o que estava acontecendo em Budapeste. Sabemos hoje que os destacamentos insurrecionais dos trabalhadores, os conselhos de trabalhadores, sua coordenação em nível de distritos e regiões e as greves de massa tiveram um papel enorme nesta revolução [23].
Na União Soviética, “as greves, e até mesmo formas mais brandas de ação dos trabalhadores, eram extremamente perigosas: eram violentamente reprimidas e os organizadores corriam grande risco de acabar em um campo de trabalho ou mesmo de serem executados – não apenas sob Stalin, mas também sob [Nikita] Khrushchev e [Leonid] Brezhnev” [24]. Desde que a burocracia estalinista consolidou sua dominação até meados de 1989, a maior greve de massa, combinada com manifestações de rua, estourou em junho de 1962 na fábrica de locomotivas de Novotcherkassk e incendiou aquela cidade da operária. Os trabalhadores que manifestaram nas ruas carregavam bandeiras vermelhas e retratos de Lenin. A manifestação foi reprimida pelas tropas dos Ministérios do Interior, da Segurança do Estado e da Defesa. Tudo aconteceu sob a supervisão de dois membros da Politburo enviados ao local. Sete participantes foram condenados à morte e executados [25]. Isto aconteceu durante o reinado de Khrushchev – o mais liberal antes da perestroika.
Após um longo período de estagnação, os trabalhadores soviéticos só começaram a recuperar sua força coletiva em julho de 1989, quando uma súbita avalanche de greves explodiu nas principais bacias carboníferas de Kuzbass, Donbass, Vorkuta, Ekibastuz e Karaganda [26]. Como os movimentos independentistas das nações oprimidas, que foram os primeiros a usar a arma da greve de massa durante a perestroika, este movimento operário ressurgente minou de tal forma o estado soviético que, sem guerra civil ou intervenção militar estrangeira, ele desmoronou como um castelo de cartas. Tinha resistido ao teste histórico da Segunda Guerra Mundial. Algumas décadas mais tarde, ela caiu da noite para o dia sob o peso de suas contradições internas, expondo a fragilidade de sua natureza.
Em seu livro Marxismo e História, S.H. Rigby escreveu que em A Revolução Traída Trotsky ofereceu “uma tentativa clássica de caracterizar a União Soviética a partir de posições marxistas“. Trotsky, explicou Rigby, “viu a apropriação do poder pela burocracia como uma forma de transição e não de organização social duradoura. Ou a União Soviética estava progredindo para o “verdadeiro” socialismo, ou para o capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção”. Mas Rigby tinha suas dúvidas: “No momento, parece que nem uma aquisição revolucionária pelo proletariado nem a restauração do capitalismo é uma opção muito provável para a União Soviética. Pelo contrário, até mesmo os dissidentes acreditam que a sociedade soviética goza de uma estabilidade deprimente. A União Soviética não é, portanto, uma forma transitória de sociedade, mas uma nova forma de sociedade”. Rigby tinha certeza de que não se tratava de socialismo. Ele concluiu, portanto, que ela estava “melhor conceitualizada como uma nova forma de sociedade de classes” [27].
Rigby estava escrevendo isto em 1987, quatro anos antes da queda da URSS. Embora em seus trabalhos como historiador ele seja geralmente infalível em distinguir entre fenômenos e processos de vida longa e curta, neste caso lhe faltava a perspectiva histórica. Na época, muitos outros pesquisadores, estudiosos e teóricos da esquerda radical cometeram erros semelhantes. Logo ficou claro que a suposta permanência e estabilidade do regime soviético, do próprio Estado e do bloco soviético como um todo eram pura ilusão. Nenhuma “nova forma de sociedade de classes” que tenha surgido na história durou poucas décadas. O caráter muito efêmero e radicalmente instável desta “nova forma” atesta o fato de que na URSS, e mais tarde no bloco soviético, um novo modo de produção (do tipo do enigmático “coletivismo burocrático“) não surgiu, nem poderia um velho modo de produção (como o “capitalismo de estado” quimérico em suas diversas variantes teóricas) renascer sob qualquer forma. A União Soviética, escreveu Filtzer, era “uma formação social historicamente instável que não era capitalista nem socialista e, como tal, não tinha um regulador eficaz da economia ou da reprodução de sua estrutura social” [28]. “Operava em tal nível de contradição e instabilidade interna que nunca poderia ser nada além de uma formação social efêmera” [29].
Durante algum tempo após a revolução de 1917, a sociedade soviética foi uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo. “Entre” – isto não significa “tendo que passar do capitalismo ao socialismo” nem “construindo o socialismo” (muito menos uma sociedade que “tinha construído o socialismo“, ao contrário do que Stalin já havia proclamado antes da guerra). Ela poderia evoluir – ou em direção ao socialismo ou em direção ao capitalismo, e também poderia ficar parada em algum lugar nesta estrada de mão dupla e degenerar. Não apenas devido ao subdesenvolvimento, mas especialmente porque o socialismo em um país ou mesmo em um grupo de países é impossível, o destino da sociedade soviética dependia de revoluções em outras partes do mundo, principalmente altamente desenvolvidas. A degeneração burocrática da Revolução de outubro, coroada pela contrarrevolução de Stalin, finalmente bloqueou a possibilidade de evolução para o socialismo. Um retorno a uma sociedade em transição do capitalismo para o socialismo não era possível sem uma nova revolução operária que derrubasse o regime burocrático e estabelecesse seu poder. Sem ela, a sociedade soviética só poderia ser uma sociedade de transição, no sentido de estar temporariamente “desligada” do sistema capitalista mundial.
Continua aqui.
Este texto constitui a maior parte do livro de Michał Siermiński, Pęknięta “Solidarność”. Inteligencja opozycyjna a robotnicy 1964-1981 (Solidarność rachado. The oppositional intelligentsia and the workers 1964-1981), Książka i Prasa, Warszawa 2020. Tradução de Alain Geffrouais para a Revista Movimento da versão francesa publicada pela Inprecor e estabelecida por Jan Malevsky.
[1] Alguns historiadores acreditam que com o rapto de Stefan Foris, secretário-geral do Partido Comunista Romeno, pela chamada “facção das prisões” (composta por militantes liderados por Gheorghe Gheorghiu-Dej que tinham passado a guerra nas prisões romenas, não em esconderijos, como Foris, ou na URSS, como Anna Pauker) em 1944 e o seu assassinato dois anos mais tarde, houve também uma ruptura completa na continuidade histórica do partido. “O comunismo romeno do pré-guerra e do pós-guerra são dois mundos completamente diferentes” e a ruptura que ocorreu em 1944 “é tão completa como o fosso entre o socialismo dos seguidores de Constantin Dobrogeanu-Gherei e o comunismo leninista em 1921 era profundo”. A. Cioroianu, Pe umerii lui Marx. O introducere în istoria comunismului românesc, Curtea Veche, București 2005, p. 50. Ver também P. Câmpeanu, Ceauşescu, anii numărătorii inverse, Polirom, Iași 2002, pp. 106-151.
[2] I. Banac (sob dir. de), The Diary of Georgi Dimitrov, 1933-1949, Yale University Press, New Haven-London 2003, p. 163.
[3] B. Fowkes, The Rise and Fall of Communism in Eastern Europe, Macmillan Press, Houndmills, Basingstoke-London 1995, pp. 6-71 ; J. Rothschild, N.M. Wingfield, Return to Diversity. A Political History of East Central Europe Since World War II, Oxford University Press, New York-Oxford 2000, pp. 75-146.
[4] K. Verdery, National Ideology Under Socialism. Identity and Cultural Politics in Ceauşescu’s Romania, University of California Press, Berkeley-Los Angeles-Oxford 1991 ; M. Savova-Mahon Borden, The Politics of Nationalism Under Communism in Bulgaria. Myths, Memories, and Minorities (Dissertation), University of London. University College London. The School of Slavonic and East European Studies, London 2001 ; M. Mevius, Agents of Moscow. The Hungarian Communist Party and the Origins of Socialist Patriotism 1941-1953, Oxford University Press, Oxford-New York 2005 ; Y. Sygkelos, Nationalism from the Left. The Bulgarian Communist Party during the Second World War and the Early Post-War Years, Brill, Leiden-Boston 2011 ; J.C. Behrends, « The Stalinist volonté générale: Legitimizing Communist Statehood (1935-1952). A Comparative Perspective on the USSR, Poland, Czechoslovakia, and Germany », East Central Europe/L’Europe du centre-est vol. 40 n° 1/2, 2013, pp. 37-73 ; S. Bottoni, Stalin’s Legacy in Romania. The Hungarian Autonomous Region, 1952-1960, Lexington Books, Lanham-Boulder-New York-London 2018.
[5] J. Chumiński, Robotnicy polscy 1945-1956. « Stary » i « nowy » ośrodek przemysłowy na przykładzie Krakowa i Wrocławia, Wydawnictwo Uniwersytetu Ekonomicznego we Wrocławiu, Wrocław 2015, p. 155.
[6] N. Kołomejczyk, M. Malinowski, Polska Partia Robotnicza 1942-1948, Książka i Wiedza, Warszawa 1986, pp. 51, 225, 262 ; M. Szumiło, Roman Zambrowski 1909-1977. Studium z dziejów elity komunistycznej w Polsce, Instytut Pamięci Narodowej, Warszawa 2014, pp. 165, 183-184 ; P. Kenney, Rebuilding Poland. Workers and Communists, 1945-1950, Cornell University Press, Ithaca-London 1997, p. 219.
[7] J. Chumiński, op. cit., pp. 163-168.
[8] 123. Ibidem, pp. 180, 163, 182.
[9] P. Kenney, op. cit., p. 128 ; M. Fidelis, Kobiety, komunizm i industrializacja w powojennej Polsce, W.A.B., Warszawa 2010, p. 110.
[10] M. Heimann, Czechoslovakia. The State That Failed, Yale University Press, New Haven-London 2011, pp. 150-176.
[11] J. Bloomfield, Passive Revolution. Politics and the Czechoslovak Working Class, 1945-1948, Allison & Busby, London 1979, p. 11.
[12] Churchill relatou que em outubro de 1944, em conversas com Stalin, “era a hora certa para os negócios” e que ele disse: “Vamos acertar os nossos negócios nos Bálcãs. Seus exércitos estão na Romênia e na Bulgária. Temos interesses, missões e agentes lá. Mas não vamos criar disputas para bagatelas. No que diz respeito à Grã-Bretanha e à Rússia, seria conveniente que você tivesse 90% de sua influência na Romênia, com nossos 90% na Grécia e uma divisão de 50% a 50% na Iugoslávia”? Quando sua pergunta foi traduzida para Stalin, ele a escreveu em um pedaço de papel. Stalin “pegou seu lápis azul, colocou uma grande assinatura na folha de papel e a moveu na nossa direção. Tudo foi resolvido em menos tempo do que o necessário para dizê-lo”. W.S. Churchill, The Second World War vol. VI, Houghton Mifflin, Boston 1953, p. 198. Veja também a apresentação da discussão privada dos comunistas iugoslavos Milovan Ɖjilas, Vladimir Dedijer e Joze Brilej com Churchill em 1951, em V. Dedijer, The Battle Stalin Lost. Memoirs of Yugoslavia, 1948-1953, Spokesman, London 1978, p. 65.
[13] J. Broz Tito, « H kritiki stalinizma », Časopis za Kritiko Znanosti, Domišljijo in Novo Antropologijo vol. VIII n° 39/40, 1980, pp. 158, 161. Voir aussi Z.M. Kowalewski, « Jugosławia między Stalinem a rewolucją », Le Monde diplomatique – edycja polska n° 7, 2013, pp. 30-32.
[14] S. Vukmanović [-Tempo], How and Why the People’s Liberation Struggle of Greece Met With Defeat, The Merlin Press, London 1950, pp. 2-3.
[15] 130. V.H. [Holubnychy], « Stalin’s Theory of “Capitalist Encirclement” », Labor Action vol. 17 n° 3, 1953, p. 5.
[16] Uma tentativa seria, mas que só podia se revelar infrutuosa de reencontrar e reconstruir o conceito de « democracia popular » baseando-se na “teoria soviética” foi ensaiada por H.G. Skilling, « “People’s Democracy” in Soviet Theory (I-II) », Soviet Studies vol. 3, n° 1, 1951, pp. 16-33, et n° 2, 1951, pp. 131-149.
[17] O papel nestes processos dos aparelhos do Comissariado do povo para assuntos internos (NKVD) e depois do Ministério de Segurança de Estado (MGB) da URSS foi apresentado baseado numa pesquisa profunda nos arquivos por Н.В. Петров, По сценарию Сталина. Роль органов НКВД-МГБ СССР в советизации стран Центральной и Восточной Европы. 1945-1953 гг. [N.V. Petrov, Seguindo o script de Stalin. O papel dos órgãos do NKVD-MGB soviético na sovietização da Europa central e oriental 1945-1953], РОССПЭН, Москва 2011.
[18] Fehmgerichte (o termo vem de uma palavra em alemão baixo que significa “castigo”). A Vehme Sagrada era uma sociedade secreta de inspiração religiosa criada na Vestfália no século XIII e ativa até sua dissolução em 1811. A Vehme Sagrada praticava uma justiça expeditiva, reunindo-se em segredo e proferindo apenas duas sentenças: ou absolvição ou morte. Seus juízes estavam obrigados ao sigilo sobre o status, o funcionamento e as deliberações deste tribunal secreto. A instituição alegava agir em nome da Santa Sé. (ndt)
[19] A criação e utilização de tal “massa de manobra” pelo poder burocrático emergente como meio de pressão sobre a classe trabalhadora foi uma das condições básicas para o estabelecimento de relações de exploração. Ver P. Barton [J. Veltruský], A. Weil, Salariat et contrainte en Tchécoslovaquie, Marcel Rivière, Paris 1956, pp. 204-307.
[20] J. Smula, « The Party and the Proletariat: Škoda 1948-53 », Cold War History vol. 6 n° 2, 2006, pp. 153-175 ; K. McDermott, « Popular Resistance in Communist Czechoslovakia: The Plzeň Uprising, June 1953 », Contemporary European History vol. 19 n° 4, 2010, pp. 287-307.
[21] B. Sarel [Sternberg], La classe ouvrière d’Allemagne orientale. Essai de chronique (1945-1958), Les Éditions ouvrières, Paris 1958, pp. 54-170 ; G. Dale, Popular Protest in East Germany, 1945-1989, Routledge, London-New York 2005, pp. 9-56.
[22] E.P. Thompson, « Through the Smoke of Budapest », dans C. Winslow (sous la dir. de), E.P. Thompson and the Making of the New Left. Essays & Polemics, Monthly Review Press, New York 2014, p. 37.
[23] B. Lomax (sob dir. de), Hungarian Workers’ Councils in 1956, Social Science Monographs-Atlantic Research and Publications, Boulder-Highland Lakes 1990 ; J.C. Sharman, Repression and Resistance in Communist Europe, Routledge Curzon, New York 2003, pp. 72-92.
[24] D. Filtzer, Soviet Workers and Late Stalinism, p. 202.
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