Construção da burocracia stalinista e consolidação do modo de exploração
4ª parte da série “Operários e Burocratas”.
Tirando proveito da “revolução dos arquivos” na Rússia pós-soviética, Jeffrey Rossman tem reconstituído a história da grande onda de greves, protestos e outras formas de resistência em massa com as quais os operários – e principalmente as operárias – da indústria têxtil da Região Industrial de Ivanovo reagiram na primavera de 1932 às consequências sociais desastrosas de uma industrialização incrivelmente forçada. Em 1917, nesta região a concentração da classe trabalhadora era a maior de toda a Rússia e era um grande bastião do bolchevismo. “Até entre os operários qualificados da metalurgia do ‘Vyborg Vermelho’ de Petrogrado, os bolcheviques não desfrutavam de tal incontestável hegemonia ” [91]. Na região, o poder havia de fato passado para as mãos dos conselhos de delegados operários muito antes do que em Petrogrado.
Entretanto, em abril de 1932, a região “tornou-se o epicentro na escala da União Soviética da resistência dos trabalhadores à revolução stalinista ‘a partir de cima’“. Nas fábricas de Ivanovo trabalhavam “operários com sua própria experiência e sua própria interpretação da Revolução de outubro que eles reivindicavam“. Deste sentimento surgiu a convicção de que era seu dever julgar aqueles que estavam pilotando a revolução em seu nome. A avaliação foi severa. Eles esperavam pelo menos que o partido lhes oferecesse um melhor padrão de vida, menos encargos dentro e fora do local de trabalho, e algum nível de democracia na fábrica. Falta crônica de pão, salários cada vez mais atrasados, aumento brutal da carga de trabalho, (des)organização taylorista da produção, perseguição daqueles que apresentavam reinvindicações legítimas – isto não era o que eles esperavam. Nem se entusiasmavam em construir novas fábricas – mesmo aquelas nas quais eles mesmos poderiam um dia trabalhar, ou nas quais seus filhos poderiam trabalhar – se elas fossem construídas a um custo tão alto” [92].
Em nenhuma outra região industrial o nível de filiação dos operários ao partido foi tão baixo como aqui e, ao mesmo tempo, provavelmente em nenhum outro lugar os operários opuseram de forma tão maciça e vigorosa à exigência de poder dos conselhos contra a ditadura do partido e da polícia. Durante a maior e mais violenta greve da região, que se tornou uma insurreição na cidade de Vichuga, 17.500 operarios o demonstraram inequivocamente, saqueando a sede do Partido comunista, da milícia e da GPU (polícia política), mas sem tocar na sede do soviet, pois aos seus olhos poderia muito bem servir como sede do novo poder, desta vez eleito democraticamente [93]. Além da drástica redução das rações alimentares, a “revolução a partir de cima” significou para eles um forte aumento na exploração absoluta de sua força de trabalho e seu empobrecimento drástico.
Rossman documentou o fato que o termo “exploração” era então comum na expressão dos trabalhadores. No entanto, os aparatos ideológicos do estado soviético tinham espalhado e inculcada com força em suas mentes a afirmação, atribuída a Marx e Engels, de que a exploração estava inevitavelmente abolida com a abolição da propriedade privada dos meios de produção. A “revolução a partir de cima” estava destruindo exatamente o que restava desta propriedade. Na região, porém, este “marxismo transgênico” [94] estava rejeitado pelos operários. Há todos os motivos para acreditar que os dirigentes operários locais, que, via de regra, já haviam estado ativos em 1917, e que agora denunciavam o avanço da exploração absoluta, entenderam muito bem o que isto significava – esta exploração esgotava a mão-de-obra e, portanto, era fundamentalmente diferente da exploração relativa, que se baseia no aumento da produtividade da mão-de-obra através da melhoria de seu equipamento técnico.
Rossman conclui que a história da luta travada pelos trabalhadores da Região industrial de Ivanovo em abril de 1932 é tão importante e que tinha que ser erradicada da memória humana tão profundamente pelo Estado porque “testemunha o fato de que os trabalhadores perceberam a revolução stalinista ‘de cima’ como uma traição à Revolução de outubro” e que “embora o partido afirmasse administrar todos os recursos humanos e materiais da sociedade, não conseguiu monopolizar a linguagem de classe e muito menos os processos de construção da identidade. Este fiasco deve ser acrescentado à lista das causas do colapso do comunismo“, assim como devemos “acrescentar a ele o paradoxo de que a legitimidade do comunismo se devia a uma ideologia que, apropriada (novamente) pelos próprios trabalhadores, derrubava as intenções e a autoridade do partido que governava em seu nome” [95].
Foi então, durante a “revolução a partir de cima” stalinista e o primeiro quinquênio, que as relações de exploração entre a burocracia estatal governante e a classe operária foram firmemente estabelecidas – e foram ainda mais consolidadas durante os dois quinquênios seguintes. Relações de exploração que se tornaram simultaneamente as relações dominantes da produção. Ao mesmo tempo, o regime stalinista também introduziu dois outros modos de exploração relacionados: o modo de exploração do trabalho do campesinato colcoziano e o modo de exploração do trabalho forçado no sistema do campo subordinado desde 1934 à Administração Geral dos Campos de Trabalho Corretivo (Gulag). Os dramáticos acontecimentos na Região Industrial de Ivanovo mostraram à burocracia a enormidade da ameaça que a classe operária representava ao seu poder.
“Mesmo que os desenvolvimentos não fossem tão longe, as ações industriais, greves e manifestações de rua poderiam neutralizar o desejo do regime de consolidar seu poder através da industrialização forçada. O regime, portanto, teve que derrotar a classe operária enquanto disfarçava seu ataque com a retórica da construção do socialismo“, escreve Donald Filtzer. “Em sua política, tentava sobretudo romper a classe trabalhadora, minar sua coesão e solidariedade, cortá-la de uma vez por todas de suas tradições militantes e destruir sua capacidade de ação coletiva enquanto força histórica consciente dela mesmo” [96].
No decorrer de suas pesquisas, Filtzer identificou os meios pelos quais o regime stalinista conseguiu isso. Eles “operaram simultaneamente e reforçaram-se mutuamente: repressão física; inchamento das fileiras da classe operária com camponeses que não tinham nenhuma tradição de vida industrial e, portanto, nenhuma experiência de ação grevista e de ação coletiva em geral; remoção de muitos operários mais velhos da produção; enfraquecimento da coesão do proletariado, oferecendo uma minoria considerável das oportunidades de avanço nas fileiras da burocracia e da elite“. A chamada emulação socialista e trabalho dito “de choque” serviram para desintegrar a unidade da classe trabalhadora. “A pobreza e as condições de trabalho mais duras fizeram com que a luta pela sobrevivência individual tivesse precedência sobre os protestos coletivos, mesmo de natureza puramente defensiva”. Por um lado, “a forte diferenciação dentro da classe trabalhadora corroeu ainda mais sua coesão interna, separando os trabalhadores modelo – os stakhanovistas, os privilegiados – dos operários da base. Desta forma, o regime acabou conseguindo quebrar a classe trabalhadora enquanto força coletiva. O outro lado deste processo foi o recrutamento efetivo no meio da classe operaria de numerosos membros do regime que, uma vez no aparelho, se comportaram não como operários, mas como aqueles que exerciam o poder sobre os operários”. O paradoxo é que “divisões de classe cada vez mais acentuadas ocorreram ao mesmo tempo em que a classe exploradora se tornava mais ‘proletária’ pela sua origem” [97].
Entretanto, tudo isso não foi suficiente para abafar a classe trabalhadora. Foi necessário transformar radicalmente a própria burocracia. O domínio da burocracia termidoriana desenvolveu-se no terreno, excepcionalmente fértil para ela, de sucessivas derrotas de revoluções em todo o mundo, para as quais ela mesma contribuiu, em particular a derrota da revolução chinesa em 1927. Em seu livro sobre a evolução da Internacional Comunista publicado em 1930, Trotsky o designava em subtítulo como o “grande organizador das derrotas” [98]. Em escala internacional, porém, nada consolidou melhor o domínio da burocracia soviética do que a vitória do nazismo na Alemanha em 1933, para a qual deu uma contribuição particular. Com sua campanha associando a corrente social-democrata do movimento operário ao fascismo (“social-fascismo”), ela efetivamente sabotou a frente única operária na Alemanha, sem a qual nenhuma luta efetiva contra o movimento nazista estava possível. Por sua vez, forçou os comunistas alemães a uma rivalidade com os nazistas no terreno nacionalista, uma rivalidade que levou ao abismo. O reverso da terrível derrota do movimento operário alemão – até então o mais poderoso do mundo – foi a solidificação do regime burocrático na União Soviética, assim como, por sua vez, a eclosão da revolução operária na Espanha, em julho de 1936, logo após a onda maciça de ocupações de fábricas pelos trabalhadores na França, resultou na eclosão do Grande Terror na URSS.
No mesmo dia em que em Moscu o Politburo aprovava formalmente a decisão de conceder ajuda militar à República espanhola, também adotou uma resolução sobre a repressão do trotskismo, ou seja, sobre o extermínio físico de todos aqueles estigmatizados no Kremlin como trotskistas, mesmo que a esmagadora maioria não o fosse. Esta tarefa foi confiada a Nikolai Yezhov, que havia sido nomeado três dias antes como Comissário do Povo para o Interior. Na verdade, a resolução também dizia respeito à Espanha, tendo o Kremlin ficado muito impressionado com o relatório de um funcionário do Comintern. Na Europa Ocidental, relatou ele, os trotskistas afirmaram ter previsto a revolta dos generais fascistas contra a república e asseguraram que, diante dos exércitos dos fascistas, “a Espanha não será salva por uma república burguesa, mas por uma revolução proletária” [99].
O que era importante para Stalin na Espanha não era a influência política dos trotskistas, que eram apenas um punhado, enquanto entre os trabalhadores revolucionários os socialistas e os anarco-sindicalistas eram de longe a maioria. O que era importante era que, após o estouro da revolução na Espanha, no Kremlin “havia a impressão de que a Espanha era um terreno fértil para a implementação bem sucedida das teses e previsões trotskistas. Isto não era algo que pudesse ser observado calmamente em Moscou“, diz Ángel Viñas. Ele ressalta que “nenhum aspecto significativo da política comunista ou soviética da época“, incluindo a intervenção da URSS na Espanha, “pode ser compreendido sem ligá-lo a ações dirigidas contra o trotskismo” [100] e, de fato, contra a ameaça real ou potencial de revolução – na URSS e em outros lugares.
Em maio de 1937, a polícia republicana liderada pelos stalinistas ataca a central telefônica de Barcelona, que era controlada por anarco-sindicalistas. Isto provocou uma greve geral na cidade e confrontos armados entre as forças governamentais e as milícias operárias. Estas ações foram realizadas por militantes anarquistas radicais que se opõem ao ministerialismo praticado pela direção de seu próprio movimento [101]. O emissário de Stalin, Stoyan Minev, relatou inicialmente que se tratava de um “putsch anarquista”, observando ainda que as milícias do Partido dos Trabalhadores da Unificação Marxista (POUM) aderiram à revolta, como uma força secundária ou de apoio. Ele chamava o POUM como trotskista, enquanto o próprio Trotsky não considerava o POUM um partido revolucionário e o criticava severamente.
Alguns dias depois, presumivelmente sob ordens de Moscou, Minev corrigiu substancialmente seu relatório – ele agora alegava que era principalmente um putsch trotskista, e não anarquista. Ele escreveu: “Os inspiradores, os organizadores, e os dirigentes do putsch foram os trotskistas (Poumistas), a juventude anarquista libertária (entre os quais há muitos trotskistas) e a fração extremista da FAI (Federação Anarquista Ibérica), atuando com a ajuda de alguns grupos e líderes da CNT” (Confederação Nacional do Trabalho). Desta vez Minev chamava o POUM de “destacamento organizado da quinta coluna de Franco”, enquanto elogiava os líderes do CNT, incluindo os ministros anarco-sindicalistas, que “fizeram grandes esforços para impedir a participação das massas trabalhadoras no putsch” [102]. Em Moscu, após o recebimento da nova versão do relatório de Minev, mesmo nos documentos secretos, era obrigatório descrever estes eventos como “uma tentativa de golpe contrarrevolucionário, empreendida por trotskistas e elementos extremistas entre os anarquistas” [103].
O Kremlin precisava da versão de Minev revisada deste jeito dos eventos de Barcelona para acusar o Marechal Mikhail Tukhachevsky e uma grande parte dos quadros do Exército Vermelho de participação na URSS em uma “conspiração militar-fascista trotskista anti-soviética“. Tukhachevsky foi preso 10 dias após o segundo relatório corrigido de Minev sobre o ‘putsch da Catalunha’ ter chegado ao Kremlin. Stalin, tentando ligar este ‘putsch’ a uma ‘conspiração’ dentro do exército soviético, anunciou: os conspiradores ‘querem fazer da URSS uma segunda Espanha’ [104]. O ‘putsch’ e a ‘conspiração’ estavam supostamente ligados pelo fato de que uma das duas organizações políticas que formavam o POUM tinha anteriormente, apenas por um tempo, sido parte da Oposição de Esquerda Internacional liderada por Trotsky, e que os ‘conspiradores’ comandantes militares soviéticos tinham pertencido à direção do Exército Vermelho na época em que Trotsky estava à sua frente.
O regime estalinista nascente estava então confrontado com duas tarefas inter-relacionadas. A primeira era esmagar a revolução na Espanha, mesmo à custa de condenar a república à derrota e abrir o caminho para a vitória das tropas fascistas. A derrota do levante na Catalunha e a proibição do POUM permitiram que as tropas republicanas em Aragão, comandadas pelo stalinista Enrique Lister, empregassem abertamente o terror contrarrevolucionário para derrubar o poder revolucionário, exercido de fato naquela região pelos anarco-sindicalistas, e para liquidar as fazendas coletivas criadas por iniciativa deles [105]. Isto foi conseguido “pela força militar dos comunistas, socialistas de direita e outros elementos antirrevolucionários. A queda do Conselho de Aragão foi um grande passo no caminho para a derrota da revolução espanhola” [106]. A repressão da polícia secreta republicana, que era liderada por oficiais soviéticos, fez o resto. As autoridades soviéticas logo começaram a se retirar de seu envolvimento na Espanha. O pessoal chamado de volta foi reprimido preventivamente ao voltar para a URSS por suspeita de estar infectado pela revolução. Somente os emissários de Stalin, como mencionado por Minev, não foram reprimidos porque Stalin estava certo de que não estavam ameaçados pela “peste” revolucionária.
A segunda tarefa era desencadear o Grande Terror. Tratava-se de esmagar, através de assassinatos em massa e outras medidas repressivas, todas as forças sociais atuais ou potenciais, incluindo em particular a classe operária, que havia crescido com a industrialização, e todas as tendências coletivas e até mesmo individuais de contestação. Mas este terror também tinha um propósito muito particular: assassinar, mandar para campos de trabalho forçado e, em geral, quebrar a própria burocracia termidoriana de várias maneiras. O primeiro passo nessa direção foi a liquidação dos quadros do exército. Certamente, devido ao seu caráter termidoriano, a burocracia soviética tinha raízes revolucionárias, mas estas tinham, afinal de contas, há muito secado. Aos olhos de Stalin e da direção stalinista, no entanto, havia o perigo de que a vida nascesse novamente dessas raízes, a partir das centelhas da revolução espanhola ou sob a influência de outros fatores, em vários pontos e níveis do aparelho burocrático. Esta burocracia não garantia que manteria a longo prazo os métodos de exploração introduzidos durante a “revolução a partir do alto”, que alguns de seus segmentos não se afastariam da ditadura stalinista, ou mesmo que não se pronunciariam contra ela. Alguns anos antes, Rakovsky havia descrito a União Soviética como um “Estado burocrático com sobreviventes do proletariado comunista“. Agora estes sobreviventes tinham que ser impiedosamente erradicados.
Trotsky escreveu sobre Stalin que na primeira metade dos anos 20, “antes que ele mesmo tivesse decidido seu caminho, a burocracia o havia escolhido” [107]como seu dirigente. Agora era ele quem criava sua própria burocracia. A fim de consolidar e salvaguardar o sistema formado na “revolução a partir do alto”, era necessário substituir em grande parte a burocracia termidoriana por uma nova burocracia, já puramente stalinista, na qual predominariam novos elementos. Sua principal vantagem: eles seriam isentos do defeito fatal da burocracia existente – eles não teriam raízes revolucionárias e não carregariam os “traços sobreviventes proletários comunistas”. Em vez disso, eles estariam enraizados na “revolução a partir de cima” contrarrevolucionária nos aparatos que coletivizaram o campo, industrializaram a economia e ao mesmo tempo garantiram a estes novos elementos uma promoção social. Foi precisamente “graças a eles que a atmosfera de juventude e progresso começou a reinar, o triunfo da jovem geração estalinista, que ocorreu no exato momento em que as forças das trevas representadas pelos velhos bolcheviques estavam se dispersando” [108].
Hoje existem sérias evidências de que o Grande Terror estava preparado há vários anos. Balazs Szalontai estabeleceu que Stalin experimentou antecipadamente na Mongólia, a primeira “República popular”, já em 1933-1934, pelo menos as táticas e técnicas, se não toda a estratégia do Grande Terror contra a camada burocrática existente. Foi precisamente contra a elite do poder mongol que os agentes da polícia secreta soviética aplicaram pela primeira vez “os métodos característicos do Grande Terror Soviético (purga e execução de altos funcionários do partido, julgamentos encenados, uso sistemático de tortura para extrair falsas confissões e acusações de espionagem)”. “É totalmente improvável que tenham inventado métodos tão sofisticados apenas para o uso mongol e não tivessem a intenção de usá-los em casa” [109].
A construção a partir de cima de uma nova burocracia, desta vez puramente stalinista, coroou a contrarrevolução. A relação de exploração entre a burocracia governante e a classe trabalhadora agora só poderia ser consolidada somente como uma relação de produção. Filtzer escreve: “Os contornos da estrutura de classe emergente foram muitas vezes obscurecidos durante este período por uma enorme fluidez e mobilidade social. Muitos membros do antigo aparelho burocrático perderam seus cargos e até mesmo suas vidas, enquanto ao mesmo tempo dezenas e eventualmente centenas de milhares de ex-operários – alguns dos quais eram recrutas recentes oriundos do campesinato dizimado – entraram na elite como funcionários do partido e burocratas do estado ou como administradores de fábrica. É importante perceber que sob o caos e a fluidez social, o colapso das estruturas tradicionais e a formação de novas subestruturas dentro da classe trabalhadora aparentes, formou-se uma relação de classe particular entre a nova força de trabalho, que criava o sobreproduto social, e a nova elite, que o expropriava. Independentemente de quantos membros da burocracia morreram na campanha contra os ‘parasitas econômicos’ nos primeiros anos da industrialização ou durante as Purgas e Terror de 1936-1938, e independentemente de quantos trabalhadores se tornaram parte da elite, esta relação de classe evoluiu ao longo dos anos 30 até finalmente se solidificar em uma forma reproduzível, mesmo que historicamente instável” [110].
Com o estabelecimento da dominação da nova burocracia stalinista, a nova classe trabalhadora, derretida no caldeirão das relações de exploração, também deixou de ser uma força social coletiva, ou seja, capaz de auto-atividade e auto-organização em massa, por quase 60 anos. A burocracia governante da URSS conseguiu fazer algo que os poderes em todo o mundo raramente conseguem fazer. Ela despojou os trabalhadores de seu poder inato e potencial, mas também muito real, o qual, a partir da segunda metade dos anos 1830, primeiro na Inglaterra e depois com a expansão do capitalismo em escala internacional, exerceu uma influência cada vez maior no curso da história. No mesmo tempo em que o regime estalinista conseguia conter a classe operária, que crescia para se tornar uma grande e numerosa força no vasto território do estado soviético, o regime nazista na Alemanha esmagava o movimento operário com seu terror.
O movimento sindical americano, por outro lado, desde 1934, vinha passando pela maior expansão de sua história e o movimento sindical moderno, industrial, estava nascendo. Graças às grandes greves, este movimento até derrubou os muros dos bastiões mais poderosos do capital, ali se estabeleceu e impôs os acordos coletivos de trabalho [111]. Depois, aproveitando a situação de pleno emprego em condições de economia de guerra e encorajados pela luta grevista persistente e bem sucedida do sindicato dos mineiros, os trabalhadores quebraram em massa a promessa do sindicato de não fazer greve durante a guerra. Os lucros dispararam, os preços subiram e os salários deveriam ser congelados, mas a febre das greves os descongelou com eficácia [112]. Nas oficinas de muitas grandes fábricas, o controle dos trabalhadores sobre os processos de trabalho desenvolveu-se ao ponto de criar situações de duplo poder [113]. Ainda nos primeiros anos do pós-guerra, C. Wright Mills – muito impressionado com o impulso do controle dos trabalhadores nas empresas e o poder social do movimento sindical – parecia pensar que seus dirigentes em breve teriam a chance de assumir o poder no estado. Ele expressou isto em seu primeiro trabalho sociológico [114].
Na União Soviética, nos anos do pós-guerra, a classe trabalhadora estava sob a tutela do regime stalinista e de suas draconianas leis trabalhistas, mais do que em qualquer época anterior ou posterior: “uma das diferenças mais importantes entre o processo de acumulação dos anos 30 e o do pós-guerra foi a erosão da distinção entre trabalho forçado e livre” [115].
Dentro do movimento operário internacional, então, houve uma divergência, de grande consequência em seus efeitos históricos, entre seus três principais centros cruciais. Enquanto o movimento operário se espalhava na América do Norte, ele foi varrido na Alemanha e na Rússia. O destino de nenhuma luta social na história dependeu tanto de sua interação e convergência internacional quanto do destino das lutas operarias.
Continua aqui.
Este texto constitui a maior parte do p livro de Michał Siermiński, Pęknięta “Solidarność”. Inteligencja opozycyjna a robotnicy 1964-1981 (Solidarność rachado. A inteligência de oposição e os trabalhadores), Książka i Prasa, Warszawa 2020. Tradução de Alain Geffrouais para a Revista Movimento da versão francesa publicada pela Inprecor e estabelecida por Jan Malevsky.
[91] D. Mandel, « October in the Ivanovo-Kineshma Industrial Region », dans E. Rogovin Frankel, J. Frankel, B. Knei-Paz (sous la dir. de), Revolution in Russia. Reassessments of 1917, Cambridge University Press, Cambridge-New York 1992, p. 157.
[92] J. Rossman, Worker Resistance Under Stalin. Class and Revolution on the Shop Floor, Harvard University Press, Cambridge-London 2005, pp. 232-233.
[93] Ibidem, pp. 207-230.
[94] Claudia Korol forjou a expressão escrevendo sobre os « manuais soviéticos de um marxismo adulterado, transgênico ». C. Korol, « Volver a Camilo », dans C. Korol, K. Peña, N. Hurtado (sous la dir. de.), Camilo Torres. El amor eficaz, América Libre, Buenos Aires 2010, pp. 13–14.
[95] J. Rossman, op. cit., p. 236.
[96] D. Filtzer, Soviet Workers and Stalinist Industrialization. The Formation of Modern Soviet Production Relations, 1928-1941, Pluto Press, London-Sydney-Dover-New Hampshire 1986, pp. 254-255
[97] 97. Ibidem, p. 255.
[98] L. Trotsky, L’Internationale communiste après Lénine, ou Le grand organisateur des défaites, PUF, Paris 1979.
[99] Relatorio de P.A. Choubine (Willenski), dans С.П. Пожарская, А.И. Саплин (sob a dir. de), Коминтерн и гражданская война в Испании. Документы [S.P. Pojarskaya, A.I. Saplin, O Kominterm e a guerra civil espanhola. Documentos], Наука, Москва 2001, p. 116.
[100] Á. Viñas, « La decisión de Stalin de ayudar a la República: un aspecto controvertido en la historiografía de la Guerra Civil », Historia y Política. Ideas, Procesos y Movimientos Sociales n° 16, 2006, pp. 96, 99. Ver também D. Kowalsky, « Operation X: Soviet Russia and the Spanish Civil War », Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin America vol. 91 n° 1/2, 2014, p. 175.
[101] D. Evans, Revolution and the State. Anarchism in the Spanish Civil War, 1936-1939, Routledge, Abingdon-New York 2018, pp. 89-148.
[102] Relatorios de I. Stiepanov (Moreno) [S. Minev] dos 4-7 et 11 de maio 1937, em С.П. Пожарская, А.И. Саплин (sob dir. de), op. cit., pp. 263-265, 276-279.
[103] Ver o primeiro estudo da experienvia da guerra da Espanha, realizada no mais tardar no 5 de junho 1937 pela Direção Geral de Informação (GRU) do Exercito Vermelho em А.Р. Ефименко, Н.А. Мышов, Н.С. Тархова (sob dir. de), РККА и Гражданская война в Испании 1936-1939 гг. Сборники информационных материалов Разведывательного управления РККА [A.R. Efimenko, N.A. Mychov, N.S. Tarkhova, O Exercito vermelho e a guerra civil espanhola. Coleção de material de informação da GRU] vol. 1, РОССПЭН, Москва 2019, p. 484.
[104] Discurso de Staline em Н.С. Тархова (sob dir. de), Военный совет при народном комиссаре обороны СССР. 1-4 июня 1937 г. Документы и материалы [N.S. Tarkhova, O Conselho militar ao Comisario do Povo para a defesa da l’URSS. 1-4 junho 1937. Documentos et material], РОССПЭН, Москва 2008, p. 133.
[105] G. Kelsey, Anarchosyndicalism, Libertarian Communism and the State. The CNT in Zaragoza and Aragon, 1930-1937, Kluwer, Dordrecht-Boston-London 1991, pp. 148-180 ; R.J. Alexander, The Anarchists in the Spanish Civil War, Janus, London 2007, pp. 802-830.
[106] R.J. Alexander, op. cit., pp. 829-830.
[107] L. Trotski, De la révolution, Éditions de Minuit, Paris 1963, p. 503.
[108] R. Conquest, The Great Terror: A Reassessment. 40th Anniversary Edition, Oxford University Press, Oxford-New York 2008, p. 93.
[109] B. Szalontai, « The Dynamic of Repression: The Global Impact of the Stalinist Model, 1944-1953 », The Mongolian Journal of International Affairs vol. 10, 2003, p. 124. Além da Republica popular de Mongólia, o Grande Terror envolvia também 2 protetorados soviéticos: a República popular de Touva (incorporada mais tarde, em 1944, na URSS) e o Xinjiang, uma província da China, que, na época, era também uma “República popular” informal dirigida pelo senhor da Guerra dissidente do Kuomintang, Sheng Shicai, admitido no Partido comunista soviético pessoalmente por Stalin.
[110] D. Filtzer, « Stalinism and the Working Class in the 1930s », dans J. Channon (sous la dir. de), Politics, Society and Stalinism in the USSR, Palgrave Macmillan, Houndmills, Basingstoke-New York 1998, p. 165.
[111] I. Bernstein, Turbulent Years. A History of the American Worker, 1933-1941, Houghton Mifflin, Boston 1971 ; N. Lichtenstein, The Most Dangerous Man in Detroit. Walter Reuther and the Fate of American Labor, Basic Books, New York 1995, pp. 74-247.
[112] M. Dubofsky, W. Van Tine, John L. Lewis. A Biography, Quadrangle/The New York Times Book, New York 1977, pp. 203-440 ; M. Glaberman, Wartime Strikes. The Struggle Against the No Strike Pledge in the UAW During World War II, Bewick, Detroit 1980
[113] N. Lichtenstein, « Conflict over Workers’ Control: The Automobile Industry in World War II », dans M.H. Frisch, D.J. Walkowitz (sous la dir. de), Working-Class America. Essays on Labor Community and American Society, University of Illinois Press, Urbana-Chicago-London 1983, pp. 284-311.
[114] C.W. Mills, The New Men of Power. America’s Labor Leaders, New York, Harcourt Brace 1948. Voir également N. Lichtenstein, « The New Men of Power », Dissent vol. 48 n° 4, 2001, pp.121-130.
[115] D. Filtzer, Soviet Workers and Late Stalinism. Labour and the Restoration of the Stalinist System after World War II, Cambridge University Press, Cambridge-New York 2004, p. 8.