Dê as ruas de Nova York as mulheres

Sobre a trajetória política e a renúncia de Andrew Cuomo, governador de Nova York

Isabelle Ottoni 10 ago 2021, 17:03

Sendo mulher, a maior parte dos ambientes não é seguro. O metrô, vazio ou cheio. O caminho até em casa. Dentro de casa, já que 60% dos casos de assédio e violência acontecem entre as paredes do lar. O seu local de trabalho. Não importa se o seu chefe for o Governador de Nova York: se você é mulher, você não está em segurança.

Era outubro de 2017 quando o New York Times publicou a primeira matéria sobre as acusações de violação sexual do ex-produtor de Hollywood Harvey Weinstein. Nascia o movimento #MeToo, e o Governador de Nova York garantiu às mulheres do Estado que teriam nele um aliado. Com a bandeira de “Governador Feminista”, Andrew fortaleceu sua plataforma de campanha, ganhou dinheiro, recebeu apoio de muitas atrizes de Hollywood. Em novembro de 2018, seu e-mail de campanha pedindo por doações dizia “Se você continua a fechar seus olhos para o assédio sexual, esse novembro seu tempo chegou”. Andrew instituiu uma política de treinamento anual contra o assédio sexual em seu gabinete e trabalhou com o movimento Time’s Up para mudança das leis sobre violência sexual em Nova York. Andrew Cuomo sempre soube exatamente o que significa violência sexual, assédio contra mulheres, ambientes tóxicos de trabalho e, inclusive, a legislação sobre o tema.

Andrew Cuomo, atual Governador de Nova York, estava sendo processado, desde o começo de 2021, por assediar várias funcionárias do seu gabinete. O caso, que estava sob investigação, foi finalizado na última semana, quando a Procuradora-Geral do Estado, Letitia James, o determinou culpado. A denúncia aconteceu como tantas outras: duas mulheres tiveram a coragem de ser as primeiras a denunciar. A partir daí uma avalanche de denúncias apareceu. Era hora de interromper o ciclo da violência.

O comportamento predatório de Cuomo, relatado em audiências por diversas mulheres, incluiu a tentativa de beijar mulheres à força, apalpar partes do corpo de mulheres, outros toques não-consensuais indesejados e perguntas pessoais desconfortáveis. Ao todo, o gabinete da procuradoria ouviu 179 pessoas, incluindo vítimas e outras testemunhas. Um dos casos mais emblemáticos é o de Charlotte Bennett, uma sobrevivente de violência sexual, que foi contratada pelo governo para auxiliar na criação de políticas a mulheres vítimas de violência. Em audiência, Charlotte relatou que Andrew costumava fazer uma série de perguntas desconfortáveis a ela, como seu estado civil, perguntas extremamente pessoais sobre seus relacionamentos anteriores e sua vida privada. Em coletiva de imprensa Cuomo admitiu que fez a Bennett perguntas que não faria a qualquer pessoa.[1]

Não é nenhuma surpresa que o Governador Cuomo negue quase a totalidade das acusações. Seu suposto pedido de desculpas é algo que todas as mulheres estão cansadas de ouvir: é tudo parte de um comportamento geracional, comum no passado, mas estranho a mulheres mais jovens. E diz que seu comportamento de toques não-consensuais é só parte da sua personalidade extrovertida. Faz parecer razoável a algumas pessoas que não sabem que o que ele chama de “comportamento geracional” é perguntar a funcionárias de vinte anos se elas teriam um relacionamento com “um homem como ele”, ou convidar uma funcionária para jogar “strip poker” com ele. Não conta que sua “personalidade extrovertida” significa dizer que ele colocou a mão embaixo da blusa de mais de uma funcionária de forma não-consensual. E ousa dizer que só está “descobrindo agora” que esses comportamentos não são aceitáveis, quando na realidade assinou a lei que torna todos esses comportamentos criminosos, pela lei promulgada em seu mandato como Governador, em 2017. O relatório da procuradoria mostra que, no dia seguinte da coletiva de imprensa em que assinou a nova lei, Cuomo assediou uma mulher, perguntando o porquê dela não usar vestidos para o trabalho. Dias depois Cuomo também passou a mão na barriga dessa mesma mulher, durante o trabalho, de forma totalmente não-consensual. Ele havia acabado de olhar para as câmeras e dizer “Vamos mudar as coisas em Nova York”, se referindo a violência contra mulheres. 

Leis, sozinhas, não são capazes de promover a mudança que as pessoas precisam. É necessário a mobilização das massas, exigências da sociedade civil, gritos de rebeldia nas ruas. Uma semana depois de ser formalmente declarado culpado, Cuomo seguia no cargo de Governador de Nova York. Foi a voz das mulheres que fez com que isso mudasse. A grande repercussão do caso na mídia fez com que Joe Biden, presidente dos Estados Unidos e colega de partido de Andrew Cuomo, fosse obrigado a vir à público e declarar que Cuomo deveria renunciar do seu cargo. Nancy Pelosi, presidente da Câmara Federal, disse o mesmo. Eric Adams, recém-eleito próximo prefeito de Nova York, também. São algumas das figuras políticas mais importantes dos Estados Unidos.

A Assembleia Legislativa de Nova York abriu seu processo de impeachment, e analistas políticos concordam que não haveria chances dele conseguir se manter no cargo após a votação. Após exigências dos eleitores, Cuomo foi retirado do ActBlue, plataforma para doação financeira às campanhas do Partido Democrata. Nessa terça-feira, 10/08, Andrew Cuomo decidiu renunciar.

Mas a triste realidade é que sua saída não dará às mulheres o que elas realmente precisam: segurança. Na coletiva de imprensa, ao renunciar, Andrew se limitou a dizer, diretamente para sua filha: “Seu pai cometeu erros, e pede desculpas, e vai aprender com isso. A vida é sobre isso”. O caso de Andrew Cuomo é só mais um, longe de ser o primeiro e longe de ser o último caso que um legislador abusa do seu poder político para violar o corpo de mulheres. Sua queda será sim uma vitória do movimento feminista, das mulheres do #MeToo, e um respiro para além da impunidade. Mas, como lembra Anita Hill, “Também é preciso mudar a mentalidade das pessoas que possam acreditar que estão acima da lei”.

Acreditar estar acima da lei foi o que levou Harvey Weinstein, produtor milionário de Hollywood, a abusar sexualmente de mais de oitenta mulheres, incluindo atrizes, produtoras e funcionárias. Foi o que levou Fernando Cury, deputado estadual de São Paulo, a assediar a deputada do PSOL Isa Penna, às vistas de todo o plenário. O mesmo com o ex-presidente de Israel, Moshé Katzav, declarado culpado por dois estupros e vários casos de assédio sexual. A recorrente impunidade e a dificuldade de denunciar tornam essa percepção ainda mais forte.

No Brasil as mulheres só conquistaram isonomia perante à lei em 1988. Até aquela mudança constitucional, o estupro matrimonial era uma violência legalizada. Simone de Beauvoir disse que “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” Nada poderia ser mais verdade. A lei Maria da Penha, sancionada só em 2006, sofre diversos ataques de grupos que dizem ser uma lei que fere o princípio de isonomia, dando mais “poder de denúncia” às mulheres. A verdade é que, no Brasil, só 7% das cidades tem delegacias especializadas em violência contra a mulher[2]. O suposto princípio da isonomia ignora que nem todas as mulheres podem denunciar seus agressores, porque precisam do próximo salário, porque ele é sua única fonte de renda, porque são proibidas de sair de casa, porque não tem coragem de enfrentar um sistema judicial que privilegia homens.

Estamos em 2021, mas os planos de saúde brasileiros ainda se negam a realizar colocação de DIU em mulheres sem autorização do marido. Médicos do SUS ainda se negam a realizar procedimento de ligadura de trompas em mulheres sem filhos. Em 2015, o ex-Presidente da Câmara Federal Eduardo Cunha era um dos autores do Projeto de Lei que proibia a venda de “pílulas do dia seguinte” e limitava a venda de pílulas anticoncepcionais. Milhares de mulheres tomaram as ruas do Brasil, no que ficou conhecido como Primavera Feminista. O projeto foi arquivado.

Até aqui, a violência sexual pautou a vida de mulheres por todo o mundo. O assédio desconhece barreiras de classe e raça. É tempo de resposta e ação, porque os governos capitalistas em crise não tornarão políticas para mulheres sua agenda de prioridades. Movimentações de mulheres tem sido fator relevante na conscientização da população, mas também na conquista de direitos fundamentais. A Greve Feminista do 8 de março 2017, que tomou lugar na maioria dos países do mundo, precisa ser refeita. E precisa desconhecer as barreiras que a violência contra mulher desconhece: ela precisa ser internacional, construída por mulheres negras, brancas e indígenas. Por mulheres LBT. E também por homens. Como escreveram Angela Davis, Nancy Fraser e outras feministas no texto chamando à greve “Juntas, elas anunciam um novo movimento feminista internacional com uma agenda expandida – ao mesmo tempo anti-racista, anti-imperialista, anti-heterossexista e anti-neoliberal.”[3] É o movimento que precisamos.

Hoje, uma sociedade de mulheres livres ainda é uma visão distante. O capital global explora nossos corpos, nos destina ao desemprego e ao subemprego, e é incapaz de reconhecer nosso papel na divisão sexual do trabalho. Mas, como sempre fazem, as mulheres seguem em marcha e em luta. Batalhamos e vencemos com a queda de Trump e seguimos na batalha pela queda do Bolsonaro. A renúncia de Andrew Cuomo será mais um passo para fazer acender em várias mulheres o poder da coragem. A capacidade que vozes unidas tem na transformação. O poder das ruas dizendo Ni Una a Menos, Ele Não, #MeToo. Como diz a poeta Conceição Evaristo “Vagos desejos insinuam esperança.” E, muitas vezes, vitórias.


[1] https://www.nytimes.com/2021/08/03/nyregion/charlotte-bennett-cuomo.html

[2] https://piaui.folha.uol.com.br/no-brasil-so-7-das-cidades-tem-delegacias-de-atendimento-mulher/

[3] https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/07/por-uma-greve-internacional-militante-no-8-de-marco/


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