Em busca das raízes do mal haitiano
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Em busca das raízes do mal haitiano

De todas as experiências recentes de transição política de ditaduras para democracias, a longa, caótica e adiada democratização do Haiti é a única que ainda não conseguiu definir as regras certas do jogo para a disputa do poder e as alternâncias necessárias.

Ricardo Seitenfus 30 ago 2021, 11:41

O assassinato do seu presidente e o mais recente terramoto despertaram uma vez mais os preconceitos internacionais sobre o Haiti. A imprensa, os políticos, e mesmo os chamados especialistas repetem o mesmo velho ditado: a maldição de um país e de um povo castigado por Deus pelos seus repetidos pecados. Nada poderia estar mais longe da verdade.

O Haiti não é o país mais pobre das Américas. É o seu país mais empobrecido. Tudo começou com a sua tripla revolução pela independência, descrita por Alejo Carpentier como um “milagre” tornado possível pela crença “nos poderes licantrópicos de Mackandal” (prólogo de “O Reino deste Mundo”).

A revolução haitiana foi vista pelo Ocidente como absurda e inaceitável. O facto de um grupo de negros escravizados e analfabetos ter infligido uma derrota ao exército considerado o melhor treinado e equipado da época choca com o espírito da época.

Comandado por Charles Victoire Emmanuel Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte, quando ancora no Cabo Francês, o Exército do Reno continua a exalar o cheiro a pólvora das múltiplas vitórias conquistadas nos campos de batalha europeus. Estamos diante de um evento pioneiro: pela primeira vez na história, um exército branco foi derrotado pelas forças armadas de outra raça.

Os derrotados tentarão apagar qualquer vestígio da catástrofe da memória coletiva. Os vencedores sublimarão o acto heróico, transformando-o na certidão de nascimento de uma nação e um exemplo a ser seguido pelos povos então colonizados.

Após mais de duas décadas, em 1826, foi assinado um tratado através do qual a França reconheceu a independência e obteve uma compensação financeira equivalente a 27 mil milhões de dólares atuais. Isto abriu um ciclo de dependência e endividamento que comprometeu o desenvolvimento económico e hipotecou o futuro do Haiti até ao pagamento integral em 1947.

Os Estados Unidos acompanharam a França na sua estratégia de negar a existência do Haiti. O Presidente Jefferson declarou em 1801 que, caso a ilha conseguisse a independência, deveria permanecer sob controlo: “Enquanto impedirmos que os negros possuam navios, podemos deixá-los existir e continuar a manter contactos comerciais muito lucrativos uns com os outros”.

A estratégia de manter os haitianos presos na sua própria ilha, tornando o Mar das Caraíbas uma barreira intransponível, tem impedido o Haiti de ter até hoje uma marinha mercante. Mais do que um instrumento indispensável para a integração nos fluxos comerciais mundiais, o navio é um intercâmbio de ideias e experiências. Vindo do Haiti, ambos são perigosos.

A posição dos EUA sobre a possibilidade de um Saint-Domingue independente não deixa margem para dúvidas: “O Haiti pode existir como uma grande aldeia pitoresca, um quilombo ou um palenque. Mas isso não significa aceitá-lo no concerto das nações”.

Os libertadores procederiam de forma semelhante. Encurralado, deprimido e à beira do suicídio, um desesperado Simon Bolívar encontrou refúgio na Jamaica em Dezembro de 1815. Foi então para Les Cayes com o que restava da sua frota, recebeu apoio haitiano e liderou uma expedição para a costa oriental da Venezuela em Maio de 1816. Bolívar foi derrotado e regressou ao Haiti para procurar refúgio e ajuda.

Mais uma vez, os arsenais haitianos forneceram a Bolívar espingardas e munições, e 300 homens juntaram-se ao projeto. Comandando uma frota de oito navios, o futuro libertador zarpou para a Venezuela a 28 de Dezembro de 1816 para finalmente conhecer a sua tão sonhada vitória.

Sem o apoio do Haiti, a vitória de Bolívar teria sido impossível, como o próprio reconheceu quando consultou Alexandre Pétion sobre a pertinência de o considerar “o autor da libertação americana”. O presidente haitiano nunca respondeu. Ele tinha exigido apenas uma condição, que era que, uma vez alcançado o sonho de independência, os libertadores se comprometessem a abolir a escravatura.

Promessa feita. Promessa não cumprida. Os libertadores temiam o possível contágio das ideias e da violência que prevaleciam em Santo Domingo. A vitória dos affranchis e dos escravos foi um alerta para os esclavagistas das Américas e um aviso para as consequências temíveis da propagação de ideias liberais de igualdade racial e direitos humanos universais.

Quando o Congresso do Panamá foi convocado em 1826, com o objectivo de lutar contra a dispersão e a favor da integração da América Latina, Simon Bolívar surpreendentemente convidou os Estados Unidos, que se recusaram a participar.

O convite ao Haiti para participar no evento não é sequer considerado. O episódio marcou a marginalização definitiva do país nos assuntos continentais. Assim se completa o círculo em volta da turbulenta república negra e começam os 200 anos de solidão haitiana nas relações internacionais.

Para além destas raízes históricas, existem raízes contemporâneas. A novíssima Constituição de 1987, a mais democrática da história do Haiti, indica a vontade dos legisladores de fazer com que o poder legislativo exerça controlo sobre o poder executivo. Obcecados pela maldição do Palácio Nacional, segundo a qual os chefes de Estado, mesmo os democraticamente eleitos, se tornam autocratas assim que são instalados no poder, os eleitores decidiram atar-lhes as mãos, forçando o primeiro-ministro e o seu gabinete a obter uma maioria parlamentar.

Neste regime, o chefe do executivo propõe e o parlamento decide. Trata-se portanto de um regime híbrido, uma porta aberta à crise. O modelo constitucional prevê incompatibilidades entre o presidente da república e o primeiro-ministro. Alguns analistas vão ao ponto de ver o último como um contrapeso para o primeiro. A bicefalia do ramo executivo haitiano é o seu tendão de Aquiles. Um tal sistema eleitoral não serve os objectivos previstos nos sistemas democráticos modernos. Nestes, as eleições são um controlo da instabilidade e da ilegitimidade. Uma vez que nenhum dos 264 partidos que perdem as eleições reconhece os seus resultados, as eleições tornam-se fatores adicionais que alimentam as crises e provocam a violência.

De todas as experiências recentes de transição política de ditaduras para democracias, a longa, caótica e adiada democratização do Haiti é a única que ainda não conseguiu definir as regras certas do jogo para a disputa do poder e as alternâncias necessárias. Os exemplos bem sucedidos apontam na mesma direção: os atores políticos devem, por um lado, curar as feridas do passado e, por outro, estabelecer regras para o futuro.

As transições políticas latino-americanas que restabeleceram a democracia representativa sofreram tensões que levaram mesmo a conflitos armados. Mas o denominador comum era a assinatura de um pacto de governabilidade em que as partes eram obrigadas a respeitar as regras do jogo democrático, favorecendo a coexistência pacífica entre as forças políticas.

A transição haitiana não conheceu, até agora, tal evolução. As partes derrotadas tendem tradicionalmente a contestar a legitimidade da disputa e o vencedor abusa do seu poder ao tentar subjugar a oposição. Sem a assinatura de um pacto de liberdades e garantias democráticas, a salvação é impossível.

Artigo originalmente publicado em La Brecha. Reprodução da tradução realizada pelo esquerda.net.


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Camila Souza